Será a nossa obsessão com as aplicações de beleza saudável?
Mudar os contornos do rosto está à distância de um toque, mas a pessoa que somos na vida real difere daquela que somos online. Porém, qual é o peso dessa dualidade?
Quando éramos crianças, jamais achávamos que um dia os telefones iriam funcionar sem teclas, que poderíamos alterar o rosto através de filtros e aplicações ou que uma impressora seria capaz de imprimir a três dimensões. Esse tipo de pensamentos pertencia ao futuro, um futuro que não iríamos conhecer no nosso tempo de vida… achávamos nós.
Porém, a tecnologia evoluiu num curto espaço de tempo e permitiu-nos testemunhar esse tipo de inovações ainda na nossa idade adulta. Mas apesar de estas inovações nos terem facilitado a vida e maravilharem-nos com as suas características, nem tudo é positivo.
A recente obsessão com as diversas aplicações de beleza levanta várias questões. Por um lado, ponderamos se o futuro da maquilhagem está nos produtos ou nos nossos telefones. Isto porque podemos aplicar batom, sombra e até pestanas falsas sem comprar um único produto.
Por outro, consideramos se estas aplicações criam problemas como ansiedade ou falta de autoestima, uma vez que apps como o Facetune permitem-nos criar o efeito de pele perfeita ou remover marcas de qualquer zona do corpo numa questão de segundos.
Será que estas aplicações se tornam perigosas ao ponto de ficarmos obcecadas com um ideal de beleza que não é real?
O cenário social: online vs offline
Numa altura em que a nossa vida virtual tem mais impacto do que a vida real, para onde caminhamos? Se chegamos ao ponto de criar uma denominação para quando estamos com pessoas fora das redes sociais – IRL, in real life –, qual é o impacto que estas aplicações têm não só nas gerações mais novas, mas também nas outras?
Segundo a psicóloga Cristina Sousa Ferreira, da Oficina de Psicologia, “os mais jovens vivem num constante casting, onde muitas vezes se sentem inadequados e feios por não corresponderem na vida real à imagem que criaram no seu computador ou telemóvel. Uma imagem tão apreciada pelos outros”.
É preciso ter em conta que esta situação e o facto de sentirem que não estão à altura das expectativas foram criadas pela sociedade atual. Ao dar considerável importância à aparência, cria-se a ideia de que ser belo permite alcançar felicidade, amor e sucesso.
Para a especialista, “as imagens editadas que nos acompanham criam o medo inconsciente de que as nossas imperfeições são inaceitáveis e que não alcançamos a felicidade se formos menos perfeitos. As selfies com filtros podem fazer com que as pessoas percam o contacto com a realidade, criando a expectativa de que devem estar sempre perfeitas e arranjadas. Algumas pesquisas mostram que os adolescentes que manipulam as suas fotografias tendem a preocupar-se mais com a imagem corporal e alguns recorrem às redes sociais à procura de validação sobre a mesma”.
Logo, se não existe uma definição universal de beleza, já que esta é uma experiência subjetiva e difere de pessoa para pessoa, não deveríamos estereotipar, nem tão-pouco as aplicações deveriam fomentar o conceito de beleza ideal.
Ao fazê-lo, tornamo-nos vítimas do nosso próprio reflexo. Gostamos daquilo que vemos no ecrã e, como qualquer ser humano, gostamos de ser apreciados. Porém, “como estas imagens se tornaram a norma, a perceção das pessoas sobre a beleza também mudou”, afirma Cristina Sousa Ferreira.
Realidade (im)perfeita
Esta obsessão com a beleza e a ideia de que temos de estar perfeitos não é nova e acompanha-nos desde que somos pequenos. Quer seja através das campanhas publicitárias, nos próprios media ou no cinema, os padrões de beleza apresentados são irreais.
Este ideal “tem sido alvo de preocupação pela comunidade científica, pois padrões de beleza inatingíveis podem resultar em sentimentos individuais de falha ou na sensação de não se ser suficientemente bom. Não há evidência científica sobre um impacto direto, mas é um trigger num terreno já vulnerável e não há dúvidas de que atinge a autoestima”, afirma a psicóloga.
Refere ainda que “estas campanhas podem ser particularmente prejudiciais para jovens que já são suscetíveis à insatisfação corporal. Faz parte da natureza humana fazer comparações e, infelizmente, muitas pessoas chegam à conclusão errada de que não são suficientes, independentemente do aspeto em que se estejam a focar: imagem, capacidade intelectual, humor. A comparação traz uma avaliação e juízo em que raramente se sai a ganhar. Um dos maiores problemas destas aplicações é que tornaram muito mais fácil a comparação com amigos e seguidores”.
O outro lado da moeda
Enquanto alguns filtros podem ser engraçados – quantas vezes não perdeu tempo a experimentar orelhas e bigodes? –, outros aperfeiçoam-nos a pele, emagrecem o rosto ou aumentam os olhos, deixando- nos mais perto de um certo ideal de beleza.
Para a psicóloga, “aplicações como o Snapchat e o Instagram colocaram a tecnologia de aperfeiçoamento de selfies na ponta dos dedos de milhões de pessoas que as utilizam todos os dias. Com um toque pode-se fazer desaparecer manchas ou sinais, retocar o nariz ou redefinir os lábios e parecer que se é capa de revista. Algumas pessoas chegam a procurar intervenções cirúrgicas para ficarem parecidas com uma versão delas próprias fabricada por uma destas apps. Já não querem o rosto da Angelina Jolie ou o nariz de outra atriz, mas sim uma versão diferente, ‘melhorada’, delas mesmas.”
“Em 2017, 55% dos cirurgiões plásticos relataram ter pacientes que lhes mostraram como queriam melhorar a sua aparência em selfies. A dismorfia do Snapchat é um fenómeno emergente que, de acordo com as pesquisas, faz com que algumas pessoas procurem a cirurgia plástica com o objetivo específico de alterar sua aparência para parecerem um filtro”, acrescenta.
Cristina Sousa Ferreira refere ainda que “cada vez mais cedo vemos jovens a investir em cirurgia plástica para modificar o corpo, tratando-o como um objeto que se pode manipular. Isto acontece porque são condicionados por exigências de beleza virtual”.
Mas não são apenas os adolescentes que mudam e se adaptam à sociedade, essa adaptação é inevitável em qualquer um de nós. No entanto, os adolescentes são um dos grupos mais suscetíveis ao peso e consequências das aplicações de beleza, pois estão num processo de desenvolvimento de identidade e afirmação.
Segundo a especialista, “o ambiente desempenha um papel enorme no início de uma insatisfação corporal e baixa autoestima, uma vez que vivemos nesta cultura desordenada onde padrões específicos de beleza são sobrevalorizados e podem provocar algum grau de insatisfação corporal. Porém, apesar de o ambiente desempenhar um papel no desenvolvimento da dismorfia corporal, só por si não é suficiente para a causar”.