Gestão de tempo: mais um peso sobre os ombros das mulheres?
A gestão de tempo é um tema mais googlado hoje do que nunca. É mesmo possível organizar melhor a agenda ou depois de já nos fazerem sentir mal por não sermos suficientemente magras, giras, boas mães também vamos passar a ser vistas como desorganizadas, por não termos tempo para nada?
Foi quando resolvi voltar a fazer desporto que senti pela primeira vez a gestão de tempo como um peso na consciência. Quis inscrever-me no clube mais próximo do trabalho (claro!), para poupar tempo nas deslocações, e o comercial que me atendeu disse-me que eu não fazia desporto há anos porque era uma pessoa desorganizada. Assim, a frio. “Faz uma má gestão de tempo,” sentenciou ele.
Há cinco anos tinha um trabalho intenso que adorava e me fazia sentir realizada e uma vida afetiva compensadora – com marido, filhos pequenos e amigos chegados. Sentia-me feliz com o que já conseguira aos trinta e poucos anos. E, de repente, aparece um tipo que não me conhece de lado nenhum e diz-me, basicamente, que eu sou incompetente. “Não faz desporto porque não sabe gerir o seu tempo. Não tem as suas prioridades bem definidas”.
A oportunidade de negócio que é o tempo
A gestão de tempo andava, já nessa altura, na mente de muito boa gente. Hoje há sites, cursos online, cursos ao vivo, livros e palestras capazes de nos ensinarem as mil estratégias para a produtividade e a conciliação familiar…
São cerca de 100 milhões os resultados encontrados pelo Google só em poucos segundos, para a expressão ‘gestão de tempo’. Só para se ter um termo de comparação, quando se escreve ‘Benfica’ no motor de busca as entradas encontradas são apenas 50 milhões.
Parece que a gestão de tempo é um novo filão de negócios que vale muito. E se é verdade que os problemas existem e que as estratégias são boas (ou pelo menos bem intencionadas), há uma grande parte delas que, para funcionarem, dependem do contexto. E o contexto, em Portugal, não é o mais favorável ao desenvolvimento pessoal e aos hobbies.
Estratégias para gerir melhor o tempo
Respeitar os horários de trabalho à risca é uma das formas encontradas por Ana Tapia para que as mulheres tenham mais tempo para si mesmas. A psicóloga publicou em 2017 o livro STOP, 50 estratégias para mulheres sem tempo. Nele pode-se ler “se lhe pedem para sair depois do seu horário, ou a penalizam por não estar disponível para reuniões fora do seu tempo de trabalho, trata-se de um pedido ou de uma ação que não é legítima. Pode e deve dizer que não.”
Do ponto de vista teórico não há nada que faça mais sentido. Em muitos países da Europa é impensável marcar reuniões de trabalho que comecem depois das 15h00. Mas em Portugal isso também se aplica. Ou dizer “não” pode ter um custo?
Luísa (nome fictício), 44 anos, trabalha numa empresa pública do sul do país. Quando foi chamada para desempenhar funções como assistente da administração, em 2008, assinou um contrato com uma componente de isenção de horário no valor de 22% do salário – ela tinha que estar sempre a postos, fins de semana incluídos, para assistir os administradores.
– Luísa, 44 anos
Há dois anos, a administração mudou e Luísa foi conduzida para novas funções na mesma empresa, que não implicavam tanta disponibilidade de tempo. Luísa teve o cuidado de referir a manutenção da componente salarial por via da isenção de horário: “Se fosse para ir ganhar menos é claro que não aceitava.”
Acrescenta que as funções que assumiu são de maior responsabilidade às anteriores mas que, como não depende tanto das agendas de outras pessoas, consegue terminar as suas tarefas dentro do horário normal de trabalho. “Nunca ultrapassei um prazo. Entrego tudo, inclusivamente relatórios para tribunais, em tempo útil. Para isso, não paro enquanto estou no escritório – não fumo, não faço conversas de café e almoço em meia-hora.”
Passou a sair às 17h00, aproveitou a oportunidade para dar mais assistência à família e “passei a estar mais com os meus amigos.” Dois anos depois, Luísa foi aconselhada oficiosamente pelos recursos humanos a ficar no local de trabalho para lá do seu horário.
“A diretora dos RH é minha amiga e disse-me que estão a pensar retirar-me a componente de isenção porque eu saio sempre às cinco. Pelos vistos ninguém olha para o trabalho que fica feito a essa hora. Vou ficar lá a fazer o quê? Querem que vá para o Facebook?”
É possível gerir o tempo sem horários fixos?
É costume ouvir-se dizer que quem é promovido nas empresas não é quem trabalha de facto ou apresenta resultados mas quem fica para lá do horário de trabalho no escritório. Como é que podemos arriscar o emprego pela boa gestão do nosso tempo pessoal?
O mundo está em mudança mas isso não significa necessariamente que seja para melhor. O Inquérito ao Emprego do Instituto Nacional de Estatística (INE) mostra que há, desde 2011, uma tendência crescente para a flexibilização do horário de trabalho.
Em junho de 2018, 42% da população ativa portuguesa dizia trabalhar ao sábado e o número de pessoas que afirmava trabalhar ao domingo também estava em crescimento. Segundo o mesmo estudo, o trabalho noturno aumentou todos os anos desde os tempos da crise. As respostas dos trabalhadores ao Inquérito do INE fazem crer que “horário de trabalho” é um conceito cada vez mais obsoleto.
Mesmo quando não há uma flexibilização oficial do horário de trabalho estipulada por contrato com a correspondente componente salarial, ter um emprego em 2018 significa muitas vezes levar tarefas para casa, fazer uma parte delas quando a família já dorme prescindindo do descanso, resolver questões pendentes ao fim-de-semana e até nas férias. Trabalha-se até à exaustão para fazer o que há para fazer e, se percebemos que a quantidade de trabalho que temos dava para duas pessoas, não é líquido que o segundo posto de trabalho seja criado.
Porque é que isto está a acontecer ao ponto de ser um fenómeno? De acordo com o Fórum Económico Mundial, há uma relação entre a sobrecarga do horário e os países que passaram por uma crise financeira.
O organismo aponta num artigo que “vários comentadores sugerem que os gregos trabalham consideravelmente mais horas do que [cidadãos de] outros países da União Europeia por causa da ameaça financeira que pende de forma mais pesada sobre as suas cabeças do que em qualquer outro lugar da EU”.
Se os gregos vão à frente, com 42,3 horas de trabalho por semana, os portugueses não ficam muito atrás – temos 39,4 horas. Nos países com economias mais sustentadas as horas de trabalho por semana chegam a ser apenas 32, de acordo com dados recentes do Eurostat.
– Paula, 52 anos
Paula (outro nome fictício), 52 anos, está em burnout. É diretora de distribuição na indústria alimentar, tem uma carreira longa, com várias promoções no caminho, viagens constantes, um salário muito confortável. “Pergunto-me se isto tudo vale a pena. Sinto-me pouco mais do que uma escrava. E acho-me ingrata por ter estes pensamentos, mas a verdade é que cheguei a uma altura em que olho para trás e acho que não compensa. Acho que não vivi. Trabalhei imenso isso, sim”.
Apesar da sua boa posição na empresa em que trabalha, Paula diz que se sente à prova a toda a hora, que além de trabalhar tem de jogar para agradar à maioria e ter as chefias do seu lado e “isso implica estar sempre atenta e disponível, não ser dona do meu tempo, aceitar reuniões repentinas ao final do dia”. Quando está com os amigos, no pouco tempo livre que tem “só falam de trabalho. Eu só falo de trabalho. Parece que não temos mais nada. Eu não tenho muito mais.”
A família pode ser tão cansativa
A família não é, no entanto, o lugar onde a magia acontece. Pode, para dizer a verdade, ser um lugar tão opressivo e cheio de obrigações como o trabalho.
Em 2015, um estudo da ONU Mulheres concluía que as mulheres portuguesas faziam quatro vezes mais trabalhos domésticos do que os homens. O relatório Progresso das Mulheres do Mundo 2015: Transformar Economias, Realizar Desejos referia que as mulheres faziam em média 302 minutos de trabalho doméstico e de assistência não remunerada a dependentes. Os homens davam apenas 77 minutos à casa e à família, por dia.
Considerando que há alturas em que é mesmo impossível estar 5 horas a passar a ferro ou a trocar fraldas, imagine onde é que muitas de nós passam os fins-de-semana ou as noites em claro… Na lida da casa, óbvio!
Claro que Ana Tapia tem razão quando escreve no livro STOP, 50 estratégias para mulheres sem tempo: “Não queira controlar tudo nem seja uma escrava do lar”. O problema é que as coisas não se fazem sozinhas e os valores cobrados pelas ajudas domésticas não são compatíveis com os salários de grande parte dos portugueses, mesmo quando o nível de escolarização é elevado. É inevitável não ter tempo para nada. É esgotante ter sempre a sensação de que há mais uma coisa para fazer. Isto não para?
Ana Tapia publicou o livro em outubro do ano passado. Quando o recebi, separei-o imediatamente dos outros e coloquei-o na pilha dos livros a ler urgentemente. A gestão de tempo é um tema que me interessa – sobretudo depois de ter ouvido aquela sentença do comercial do clube desportivo. Quase um ano depois e em férias de verão, consegui finalmente tirar o livro da prateleira e… tchanananan acabei de lê-lo agora!
O que aconteceu com o livro em minha casa é o exemplo perfeito daquilo que Tapia descreve logo no subtítulo e que é válido para uma grande maioria de mulheres: esquecemo-nos de nós ou, melhor, daquilo que queremos mesmo muito (eu queria ler o livro) entre os mil fogos que temos que apagar durante o ano – é a autora que usa no livro a expressão “bombeira”.
Enquanto o lia, decidi sublinhar o livro de cada vez que encontrasse uma frase que me descrevesse e acabei por ter a primeira parte do texto quase toda tracejada e com notas escritas na margem… O diagnóstico confirmava o que já sabia: sou mesmo uma mulher sem tempo.
Só que quando cheguei à parte das estratégias para debelar o problema, dei por mim a sublinhar o que já faço bem: eu sei priorizar, faço uma coisa de cada vez, estabeleço prazos e objetivos no trabalho, em família assumi há muito que não sou a dona de casa perfeita (nem quero, livra!), partilho, de facto, as tarefas com o meu marido, os nossos filhos já cozinham connosco e lavam a loiça do pequeno-almoço, faço regularmente limpezas profundas para me livrar do que não faz falta e, nas redes sociais, diminuí a minha presença e desliguei as notificações.
Então o que é que se passa? O que é que me leva a sentir-me assoberbada e sem tempo tantas vezes? Jean-Paul Sartre dizia que “O inferno são os outros” e no que toca à gestão de tempo, a máxima parece aplicar-se na perfeição.
E-mails que não param de cair que não me dizem respeito, interrupções que não me acrescentam nada ao que estamos a fazer, telefonemas para atualizar bases de dados, reuniões sem ordem de trabalhos, conversa mole abundante, pouca objetividade no tratamento das questões continuam a assolar o dia-a-dia de todas nós – no trabalho, nas escolas das crianças, nas repartições públicas a que recorremos, nos bancos.
Como lidar com tudo isto? Ana Tapia recomenda que diminuamos as expectativas, não sejamos perfeccionistas e sejamos claras nas respostas. Quanto a chefes e equipas de trabalho, o melhor mesmo é saber fazer cognac ou, como se diz agora, networking. Há coisas que é impossível contornar e essas nem com leis lá vamos.
O que a política pode fazer
No final de maio, António Costa afirmou querer “um grande acordo de concertação” para melhorar as condições de conciliação entre emprego e família. O primeiro-ministro falava no Congresso do Partido Socialista onde afirmou também querer legislar sobre uma “nova forma de modelação do horário de trabalho ao longo da vida”. No final de agosto, no encontro das Mulheres Socialistas, o primeiro-ministro voltou à carga anunciando que o Governo vai delinear uma estratégia nacional para garantir a conciliação entre a vida familiar e a profissional dos portugueses.
Resta saber o que é que isso quer dizer. Portugal vai manter a linha do alargamento das licenças de parentalidade ou essa conciliação vai abranger também os tempos obrigatórios de descanso dos profissionais? Vamos ter uma lei como a francesa, que defende o direito dos trabalhadores a desligarem os e-mails da empresa nos períodos de pausa, uma lei como a alemã que proíbe qualquer contacto das companhias com os empregados nos períodos de férias? Aguardam-se as cenas dos próximos episódios, já a partir de setembro.
Também é vítima da inevitabilidade de uma má gestão do tempo? Descubra como pode aproveitar o (pouco) tempo que resta e investir em si mesma.