Se, em casa, a cozinha deixou de ser um reduto apenas feminino e há cada vez mais homens a fazerem o gosto às mãos, nos restaurantes, as mulheres vão ganhando o seu espaço num mundo que foi, e continua a ser marcadamente masculino. Falámos com cinco chefs portuguesas que lideram cozinhas.
Em comum, têm o facto de acreditarem que as mulheres conseguem fazer tudo o que os homens fazem. A suposta menor força física não é razão para a tal diferença de números entre homens e mulheres; já os horários pouco compatíveis com a vida familiar, esses sim, fazem toda a diferença.
Chefs portuguesas à frente de restaurantes
Joana Duarte, O Tapisco
Joana Duarte está à frente da cozinha do Tapisco, o restaurante de petiscos e tapas do chef Henrique Sá Pessoa, desde a sua abertura, mas antes de sequer pensar ser chef, fez uma incursão pela biologia marinha. “Era bolseira e fazia investigação, mas não estava satisfeita e, aos 29 anos, decidi mudar de vida”, conta.
A chef que começou a carreira no restaurante do chef Augusto Gemelli, em Barcelona, garante que a cozinha continua a ser um reduto masculino. “Mais cá do que lá, apesar de em ambos os países haver, hoje, mais mulheres na cozinha”, diz. Para a sous-chef do Tapisco, há uma explicação cultural para isso. “Durante muitos anos, as mulheres não trabalharam fora de casa”. No entanto, acredita que o que afasta, ainda hoje, as mulheres desta profissão, “são os complicados horários da restauração, sobretudo quando decidem ter filhos. A capacidade é a mesma em ambos os sexos”.
Joana Duarte ainda não tem filhos, mas quer ter e sabe que terá de fazer reajustes. “Talvez não possa fazer noites todos os dias”, mas é dentro de uma cozinha que se vê no futuro, até porque “é um luxo acordar todos os dias com vontade de trabalhar e há 11 anos que sinto isso”.
Fica técnica
Prato favorito: Amêijoas à Bulhão pato e choco de coentrada.
Utensílio indispensável: A faca; sem esta não fazemos nada.
Ingrediente favoritos: Gosto muito de coentros pelo sabor e tomate, porque, quando é bom, nem precisa de tempero.
Maior elogio: O gesto e perfeição de uns espanhóis quando provaram as croquetas de jamón.
Ana Lins, Miss Jappa
Tal como Joana Duarte, a cozinha não foi a primeira paixão de Ana Lins, hoje à frente dos restaurantes do Grupo Go Natural, entre os quais o Miss Jappa, onde dá largas ao seus vasto conhecimento de gastronomia oriental. “Estudei artes gráficas e fotografia, mas, depois de ter percebido que não havia muitas oportunidades de trabalho, decidi, incentivada pelos amigos, optar pela cozinha”, diz.
Ana Lins passou um verão num restaurante japonês da Quinta do Lago. Seguiu-se o Sushi Bar da Bica do Sapato e, passados três anos, ela e o marido, o chef Paulo Morais, decidiram abrir o QB, em Oeiras.
“O primeiro passo para aquilo a que chamamos Asian Twist, o tipo de comida que depois fizemos no Umai, cujo conceito era brincar um bocadinho com os sabores asiáticos e dar-lhe um toque mais nosso”, refere.
Quando a questionamos sobre o porquê de os homens dominarem as cozinhas, Ana Lins só vê uma justificação: “A família”. “Nós temos as mesmas capacidades que os homens, mas a cozinha profissional foi sempre mais masculina, até porque é muito de hierarquias ligadas ao mundo militar e de gritos e ordens, algo que não é muito associado ao universo feminino”.
Ao longo da sua carreira, viu várias colegas mulheres a progredir hierarquicamente, mas que, quando decidiram constituir família, tiveram de abrandar o ritmo. Hoje, muitas das suas alunas já “dizem que não sabem se querem ter filhos e, como se tem filhos cada vez mais tarde, têm tempo de consolidar a carreira antes”.
Ficha técnica
Prato favorito: Gosto de tudo, mas, como tenho descendência brasileira, se me derem arroz com feijão e farofa, fico feliz.
Utensílio indispensável: A faca, que não partilho com ninguém.
Ingrediente favorito: Peixe.
Maior elogio: Quando estava na Bica do Sapato, o ator Gérard Depardieu ficou fascinado por ver uma mulher num sushi bar, tanto que me convidou para ir trabalhar para França. Mais recentemente, os meus fornecedores japoneses estiveram no Miss Jappa e ficaram fascinados com o arroz, que é uma das coisas mais difíceis no sushi.
Justa Nobre, O Nobre e À Justa
É uma das chefs portuguesas mais conhecidas do grande público a “isso ajudou o facto de ser júri do primeiro Master Chef em Portugal”, diz. Porém, o seu percurso na cozinha começou muito antes, mais precisamente aos 21 anos, quando foi abrir o restaurante 33. “Não tinha curso e tive de me fazer por mim mesma, mas sempre disse que iria ser cozinheira ou enfermeira, além disso, já cozinhava em casa, depois, foi pôr a criatividade a trabalhar, sempre baseada na cozinha portuguesa“.
Depois do 33, esteve no Iat Ben, abriu o mítico Nobre da Ajuda com o marido e, a partir daí, nunca mais deixou de ter restaurantes próprios. Hoje, são três: O Nobre,o À Justa, em Lisboa, e no Casino do Estoril.
“A cozinha nunca foi só um mundo de homens, mas a alta-gastronomia sim” e porquê? “É mais fácil para os homens, porque têm sempre mais liberdade para irem para o emprego e não se preocuparem tanto com a casa, nós mulheres temos outras responsabilidades. É verdade que há homens que já partilham essa responsabilidade familiar, mas nunca o fazem da mesma maneira que uma mulher. Somos nós que engravidamos, amamentamos, levamos as crianças ao médico”, sublinha.
Nunca se sentiu discriminada no mundo da gastronomia por ser mulher. “Os homens nunca me assustaram e fui muito bem tratada, além disso, impus as minhas regras”, garante.
Ficha técnica
Prato favorito: Tudo menos cabidelas e lampreias.
Utensílio indispensável: As facas são o único utensílio que não consigo substituir.
Ingrediente favorito: O peixe, porque cozinhá-lo no ponto certo é um desafio.
Maior Elogio: Ter clientes que já vão na quinta geração de uma mesma família.
Carla Sousa, Sítio
Cozinhar na família de Carla Sousa é quase uma questão de genética: “A minha mãe cozinhava muito bem, mas o meu pai arrasava e lembro-me de andar sempre atrás dele com um banquinho para ver o que ele estava a fazer”, conta a chef do restaurante Sítio, do hotel Valverde, em Lisboa.
Passou pelo Rock City, pelo Penha Longa, pelo El Corte Inglés e pelo Bairro Alto Hotel. E nem o facto de ser mãe cedo a impediu de progredir na carreira. “Tenho três filhos rapazes e uma das coisas que mais me orgulho é poder mostrar às outras mulheres que podemos ter filhos e ser casadas e ser bem-sucedidas à frente de uma cozinha”, diz.
Mas houve um dia em que se sentiu discriminada. “Precisava de ir a uma consulta com os meus filhos e o meu chef virou-se para mim e disse-me ‘por isso, é que eu não gosto de trabalhar com mulheres’ e eu só lhe perguntei ‘se tem filhos, sabe que, para estar aqui, alguém tem de ficar com eles’. Outra vez, foi o ex-marido que, quando disse que ia ficar com o filho doente, teve de ouvir do chefe algo como “por que não fica a sua mulher?”
Ficha técnica
Prato favorito: Não tenho, mas gosto muito de comida asiática.
Ingrediente favorito: O peixe, que é algo que já vem da minha família.
Utensílios indispensáveis: A minha faca, uma vara e uma colher de pau.
Maior elogio: Tenho um cliente que quando aqui chega só pede para me avisarem. Tem total confiança nas minhas escolhas.
Ilda Vinagre, S Restaurante
Depois nove anos no Brasil, à frente de dois restaurantes portugueses, Bela Sintra e Chiado, Ilda Vinagre, regressou a Portugal para abrir, em março de 2016, o S Restaurante & Petiscos, em Lisboa. Foi uma das primeiras mulheres a chefiar uma cozinha em Portugal, no caso, a do restaurante Bolota.
Tal como as restantes entrevistadas, afirma que “é difícil conciliar esta profissão quando se é mulher, mãe e esposa”. Ilda Vinagre lembra que nunca foi à escola buscar as filhas ou falar com os professores. “Depois os anos passam e começamos a sentir que não fizemos o nosso papel, sinto que não fui aquela mãe que deveria ter sido, apesar de lhes ter dado muito carinho era o pai que fazia tudo e o ideal é que as tarefas sejam partilhadas”, indica.
No futuro, gostava de abrir uma tasca à semelhança de uma que a mãe teve. Porém, aos 63 anos acha que já não vai a tempo. Entretanto, no S Restaurante, vai continuar a dar cartas na gastronomia portuguesa. “Uma cozinha que tem tudo”, como gosta de dizer.
Ficha técnica
Prato favorito: Bacalhau cozido com batata e ovo, enche-me alma.
Ingrediente favorito: A carne, que dá mais liberdade para fazer várias coisas.
Utensílios indispensáveis: Uma boa máquina que bata tudo e mais alguma coisa, boas panelas e uma colher de pau; não há nada melhor para mexer a comida.
Maior elogio: Há 20 anos, no dia 14 de fevereiro, um homem que foi jantar com a namorada, fez questão de ir cumprimentar-me à cozinha para agradecer “o amor que tinha comido”.
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