À procura do seu nome artístico, Clara começou por escrever uma lista de possibilidades para o seu segundo nome. “Já não me lembro do que escrevi, mas recordo-me de ir cortando à medida que dizia ‘não, não, não’ e depois pensei ‘porque não?’ Foi o que ficou e agora acho que se encaixa perfeitamente”, explica em entrevista à Saber Viver.
Nesta altura, Clara ainda não tinha uma postura tão ativista como tem hoje. Mas o segundo nome acabou por se adaptar perfeitamente à sua narrativa. O ‘não’ é talvez uma das palavras mais utilizadas pela artista, basta percorrermos o seu feed de Instagram.
Não: “por todas as vezes que dizem que não vamos conseguir. Por todas as vezes que nos inferiorizam. Por todas as vezes que nos fazem sentir mal com o nosso corpo. Por todas as vezes em que não acreditam em nós. Por todas as vezes em que nós próprias não nos valorizamos. Mas, acima de tudo, por todos os nãos que não foram ouvidos. Por todos os nãos que foram ignorados”, escreve a artista na sua página de Instagram.
Este processo de dizer ‘não’ foi algo que foi desenvolvendo como uma forma de defesa e de autorrespeito. A autora, que nem é “feita de aço, nem é uma bolinha de algodão”, fala de uma forma agridoce sobre feminismo ou sobre outro assunto qualquer do dia a dia que a tenha inspirado.
O seu trabalho está representado em várias galerias, como a Circus Network, Ó! Galeria, Apaixonarte e Área 55, mas é no Instagram que criou uma comunidade. Consciente que não consegue agradar toda a gente, Clara diz que para alguns é considerada impertinente. Mas, não é isso que a faz desistir de dizer o que nos anda a incomodar já há imenso tempo.
Pensar e questionar é o que nos convida a fazer o novo livro da autora, Miga, Esquece Lá isso (Porto Editora, 2019), que se divide em três capítulos que nos fazem perceber que está tudo bem em se estar sozinha e que é urgente apoiar-nos umas às outras (#womensupportwomen).
A Clara é ilustradora-escritora, designer e ainda DJ. Como é que consegue conciliar tudo?
Com muita perseverança. Basicamente tento ter sempre uma agenda física e depois é só encaixar o que tenho para fazer. A ideia é conseguir fazer muitas coisas diferentes e, depois, umas partes de mim vão beber umas às outras, o que faz com que a minha criatividade flua mais.
O que a motiva a fazer o que faz? Em que é que se inspira?
No meu dia a dia. Em situações que me acontecem e a quem está próximo de mim. E também em notícias. É o que me rodeia. Ás vezes, num dia faço dez desenhos, noutros faço um.
O seu recente livro, Miga, Esquece Lá Isso, é uma mistura de manifestos mais ásperos quando têm de ser, e por outro lado, manifestos de autêntica ternura. É uma mistura da Clara?
A Clara existe com essas duas coisas. A ideia é mostrar que uma pessoa não é só queridinha e fofinha e que também tem o direito de ter outras emoções. Eu tenho outras emoções. Não sou sempre a mesma pessoa para todos os contextos. Todos nós temos os mesmos princípios adaptados a contextos diferentes. A ideia é ser clara e honesta, ao invés de me mascarar com protocolos sociais.
Escreve para quem?
Nos meus primeiros cadernos, escrevia de mim para mim. Agora tenho duas versões: a mensagem que eu quero passar e, depois, tenho o lado do desenho. Acabo por fazer para mim, mas já a pensar que vai ser para uma comunidade.
Quando e como surgiu o interesse de juntar a escrita à ilustração?
Quando comecei, focava-me imenso nas texturas e no desenho. Houve uma altura que o que fazia era mais conceptual. As ilustrações eram um universo mais díspar do texto, onde existia apenas uma frase.
Estas frases eram mais relacionadas com o imaginário, como podemos ver no último capítulo do livro. Com o tempo, conforme fui crescendo, a ilustração também foi crescendo comigo.
Sempre gostei de escrever. No 11º ano, cheguei a ganhar um concurso de escrita nacional na escola. Eu nem sequer queria participar, a minha professora é que me pediu. Lembro-me que escrevi um diário de uma adolescente, muito cómico, em que falava sobre os problemas da adolescência, algo que já não tinha muitos filtros.
“Outra coisa que me deixa muito chateada é a ideia de que uma mulher que dorme com muitos homens é ‘uma oferecida’, enquanto que, ao contrário, se for um homem, é um campeão.”
Também o seu mestrado foi relacionado com esta parte da escrita.
Sim. No projeto de mestrado, o meu desafio foi tentar perceber a forma como o meu cérebro funcionava através da escrita.
Além disso, também quis tentar perceber como é que o processo da escrita acontecia. Então, acabei por investigar essa área e a memória automática. Explorei tanto as questões psicológicas da escrita como as físicas. A escrita foi ficando cada vez mais presente em mim.
Como foi o processo de começar a escrever com as duas mãos?
Foi engraçado. A ideia era perceber fisicamente o ato da escrita. Algo que eu nunca iria conseguir perceber muito bem com a mão direita, porque é um processo automático e não consegues reparar nos movimentos que fazes.
A única forma de perceber como o processo da escrita acontece é ensinar a escrever. Então, liguei à minha professora da primária a pedir ajuda e ela disse-me para utilizar o método Jean Quit Rit (um método que liga histórias e fonemas). Para aprender a escrever com a mão esquerda usei o livro do primeiro ano do Estado Novo.
Porquê é que utilizou esse livro?
Porque o meu pai era esquerdino e, quando andava na escola, obrigaram-no a escrever com a mão direita. Naquela altura, a esquerda estava ligada ao mal e ao diabo.
Lembro-me de o meu pai me contar isso quando era pequena e foi algo que me marcou muito. E depois também pelas questões e moldes que as mulheres tinham de suportar durante o regime do Estado Novo.
Quando e como despertou o interesse para os assuntos feministas?
Cresci muito a ouvir algumas verdades absolutas. Por exemplo, a minha avó dizia-me muito “mulher séria não tem ouvidos”. Percebo que, na altura da minha avó, as coisas funcionassem assim, até porque era uma questão de proteção.
Tinhas que te proteger como mulher, porque não havia ninguém que te apoiasse de outra forma. Mas depois comecei a colocar isso em perspetiva e a perguntar-me ‘será que tem de ser mesmo assim?’.
Lembro-me que quando estava na faculdade, começaram a surgir a discussão destes temas. Nesta altura, a Beyoncé, a Lady Gaga e a Miley Cyrus começaram a afirmar-se como feministas.
Decidi fazer um trabalho sobre esse tema e li os livros de alguns nomes de referência do feminismo, como a Simone de Beauvoir e a Judith Butler, para tentar entender melhor o que andava a ser discutido. Porque a versão do feminismo de hoje em dia é totalmente diferente do feminismo da altura dessas mulheres.
Mas isso não quer dizer que estas mulheres de tempos diferentes não sejam ambas feministas. E foi aí que eu percebi a importância do feminismo para mim. Tem tudo a ver com igualdade de opções.
Enquanto feminista, qual é a sua missão?
A minha maior missão é abrir discussão e não deixar os assuntos morrerem. É dizer ‘há este problema e fazer com que as pessoas pensem sobre o assunto’. Muitas vezes quando não mostramos o problema, as pessoas não vão nem questionar, nem sequer lidar com ele.
Como é que acha que as pessoas reagem quando tenta abrir discussão?
A maior parte reage de forma positiva, mas existem outras pessoas que acham que sou impertinente.
Já se sentiu mal com algum comentário?
Sim. Porque acho que quando fazemos algo de coração, mesmo que estejas a mostrar a tua indignação, estás a mostrar amor por algo que acreditas. E se depois há alguém que diz que o teu trabalho não presta ou que é uma afronta, claro que magoa, mesmo que eu não queira. Uma coisa é dizerem que não concordam, outra é serem ofensivos.
Já teve comentários negativos por parte de mulheres?
Já. Com a questão dos comentários sexistas que as pessoas fazem aos casos de violação. Tive uma senhora que comentou: “isso não é verdade porque a rapariga estava com uma minissaia, e uma mulher para ser respeitada tem de se dar ao respeito”.
Também uma rapariga no Instagram fez um grupo comigo e com outras pessoas e me perguntou: “como é que vocês com os desenhos que fazem conseguem fazer disso trabalho?” Disse que os nossos desenhos eram maus. E depois, por causa disso, até conheci uma ilustradora que agora sigo.
Já passou mais de um ano desde que escreveu o “Manifesto de uma mulher independente”. Acrescentaria mais alguma declaração?
Por agora, não. O principal manifesto continua a ser: não é não.
Tem facilidade em dizer ‘não’ ou foi uma coisa que foi aprendendo?
Não tenho facilidade, mas agora já consigo mais. Foi um processo em que comecei a pensar que tinha mesmo de começar a dizer não. Porque tenho o direito de dizer que não me apetece, não quero e não vou. Se não me defendo a mim mesma, quem é que me vai defender? Nós somos a única pessoa que está sempre connosco. Ironicamente, somos a única pessoa que nos consegue ver.
Quando é que tem mais dificuldade em dizer que não?
Quando são coisas que quero mesmo fazer, mas não tenho tempo. Mas tenho de dizer que não, por causa da minha saúde.
“Tenho o direito de andar na rua sem medo” é uma das ilustrações do seu recente livro. Já alguma vez teve medo?
Já me apalparam na rua à noite. Eram dois rapazes e um deles apalpou-me. Nós estávamos sozinhos na rua. Eu mandei vir com eles, mas eles riram-se. Não pude fazer nada, continuei a caminhar.
E, depois, é a história dos piropos. Os típicos comentários de quando saímos de alguma festa: “A festa já acabou menina?” Comentários aos quais eu não respondo, porque estávamos na rua e éramos só os dois. Mas, ele insistiu: “menina?”
É um sentimento horrível, que não consegues controlar. Porque não sei até que ponto é que passo sozinha na rua e vou ser abordada. Eu tenho o direito de poder sair de casa e voltar tranquila.
O que acha que é necessário fazer para criar um mundo mais feminista?
Primeiro, se alguém reparar em alguma coisa que não acha correto, deve falar. Coisas simples, como por exemplo, um homem que está na rua com um amigo e este decide mandar um piropo a uma mulher. Em vez deste ignorar, deve dizer ao amigo: “olha, secalhar isso não está bem”.
Mas, estes são assuntos que devem ser trabalhados logo ao início, a partir da educação. Também é muito importante falar e não ter medo.
Acho que as pessoas estão a tomar consciência dos problemas que existem. Também é muito importante que as mulheres se apoiem umas às outras.
Uma coisa que a deixe muito chateada.
O machismo entre as mulheres deixa-me muito chateada. Deixa-me muito chateada os brinquedos das raparigas serem cor-de-rosa e os dos rapazes serem azuis.
Também o facto de os brinquedos das raparigas serem mais direcionados para as bonecas e os dos rapazes serem focados para construir coisas. Recentemente fui tentar comprar roupa de bebé e só havia azul, rosa e cinzento. Isso faz-me muita confusão.
As expressões também me irritam imenso, como “ou és homem ou és um rato”. A própria linguagem, como é construída. E também como as histórias são contadas. Porque é que se conhecem mais pintores homens? Porque não davam tanta atenção às mulheres. Elas não podiam pintar ou, às vezes, pintavam e usavam outros nomes.
Outra coisa que me deixa muito chateada é a ideia de que uma mulher que dorme com muitos homens é ‘uma oferecida’, enquanto que, ao contrário, se for um homem, é um campeão. Irrita-me, porque isso não faz sentido nenhum, porque o sexo não se faz sozinho (pelo menos neste contexto, de casal).
Já conhecia o trabalho de Clara Não? Descubra ainda este abecedário feminista e 6 contas de Instagram de empoderamento feminino.