Faça o exercício: quando lhe aparecer no seu feed de Facebook uma notícia sobre uma denúncia de assédio sexual ou sobre uma mulher que assume ter sido assediada, abra a caixa de comentários. Leia. Quantos comentários é que vê a culpabilizá-la, a menosprezá-la e a duvidarem das suas afirmações?
Eu leio estes comentários constantemente. É uma espécie de guilty pleasure que me causa vergonha alheia, mas que me permite ver bem o País onde vivo, as mentalidades que me rodeiam (e que são tão silenciosas) e as opiniões misóginas que enaltecem muito mais o agressor do que a vítima. Pergunto, por que é que isto acontece sempre?
Desde amigas a familiares, colegas ou conhecidas, não conheço uma mulher que não tenha sido vítima de comentários impróprios na rua – romantizados de piropos, que tanta gente teima em dizer que não têm mal nenhum -, de avanços não consentidos, de toques inadequados e que, de seguida, se tenha silenciado por saber que não tinha hipótese de denunciar. Por que é que as mulheres se calam? Por medo, sobretudo.
Em miúda, já fui perseguida no caminho escola/casa, já tive carros a pararem ao meu lado com grupos de homens a perguntarem-me se queria entrar, já ouvi comentários sobre o meu corpo, já ouvi comentários sobre o que aquele homem ou grupo de homem me queria fazer sexualmente, já vi homens a masturbarem-se em transportes públicos e também eu já fui vítima de assédio sexual. Dois pontos: primeiro, aposto que muitas mulheres que estão a ler este texto se conseguem relacionar com algumas das situações que descrevi acima; segundo, em miúda calei-me sempre, porque morria de medo. Em adulta, continuo a fazer o mesmo.
E porquê? Porque todo o sistema patriarcal nos continua a dizer que temos de o fazer. Não há solução. O assédio sexual não é crime. É verdade que comportamentos deste tipo são criminalizados, como a importunação sexual e a coação sexual, mas o assédio não, até porque é extremamente difícil de provar. Na dúvida, já sabemos, duvidamos sempre das mulheres. As suas opiniões são sempre posta em cheque.
É sempre muito fácil apontar o dedo às mulheres, principalmente quando não tiramos cinco minutos do nosso tempo para nos colocarmos no lugar delas
Quando vi a revelação que Sofia Arruda fez no Alta Definição, na SIC, achei incrivelmente corajosa e sincera. De seguida, seguiu-se a onda de sororidade e solidariedade de atrizes, apresentadoras e jornalistas portuguesas que começaram a partilhar histórias de assédio no trabalho, como Catarina Furtado, Mariza Liz ou Inês Simões.
Ver esta publicação no Instagram
Voltando um pouco atrás, comecei a abrir a caixa de comentários do Facebook. Queria perceber o que é que as pessoas pensavam sobre o #metoo português e como podíamos, de facto, mudar este comportamento nos diferentes setores do País.
Gostava de dizer que fiquei surpreendida, mas não, era o esperado. Homens e mulheres questionavam o porquê de aquelas mulheres só revelarem agora que tinham sido vítimas de assédio e não só. Acusavam-nas de aceitarem a situação para seu proveito próprio, aconselharam-nas a ficarem caladas, questionaram o porquê de não revelarem os nomes dos agressores e, ainda mais grave, ofenderam-nas.
Deixo, aqui em baixo, apenas uma pequena (mesmo pequena) amostra do que li nas páginas de Facebook da SIC Notícias e da TVI 24.
Considera chocante? É sempre muito fácil apontar o dedo às mulheres, principalmente quando não tiramos cinco minutos do nosso tempo para nos colocarmos no lugar delas. Ao comentar isto com amigas minhas, algumas disseram-me que nem sequer abrem estas caixas de comentários porque “já sabemos como as pessoas são”. Já eu, por mais que me sinta intoxicada por estas opiniões, acho que é importante lê-las, porque podem ser muito bem de pessoas que estejam no nosso círculo. E é aí que temos de agir.
Acredito que se todas praticássemos exercícios de empatia diariamente estes comentários desapareciam com o tempo. O que parece que tanto homens e mulheres não percebem é que a posição hierarquicamente inferior no trabalho, o medo de não voltar a trabalhar na área, a humilhação, a falta de provas e a culpa que estas vítimas carregam por acharem que, de alguma forma, provocaram a situação são as principais razões de não denunciarem o assédio sexual.
Adão Carvalho, presidente do Sindicato Magistrados Do Ministério Público, referiu ao ECO “Em muitas situações não é possível a identificação do agressor porque não é das relações próximas da vítima ou, porque, a proposta de caráter sexual ou a prática de atos exibicionistas é efetuada por meios de comunicação não presencias, como o telefone ou a Internet (redes sociais, Messenger, WhatsApp)”. Mais uma vez, não restam muitas opções às mulheres para denunciarem estas situações.
“Então, mas por que é que só se lembraram agora?” Não se lembraram agora. Infelizmente, nunca se chegaram a esquecer. Por vezes, basta só puxar o fio de novelo para ele se desenrolar. Bastou que Sofia Arruda tivesse a coragem de falar para que outras mulheres se sentissem também encorajadas a fazê-lo.
A falta de apoio às vítimas é talvez a maior preocupação nos casos de assédio sexual. No caso dos crimes que não são públicos, as vítimas têm apenas seis meses para apresentarem queixa. É isto justo?
Pessoalmente, uma das coisas que mais me assusta é não haver união e empatia do público em geral em compreender que as vítimas não têm hipótese. A lei não está do lado delas. Não lhes dão hipóteses de denunciar porque precisam de provas e, na maioria das vezes, elas não existem. É uma bola de neve que não para de rodar e que fica cada vez maior. O silêncio acaba por parecer a única solução, mas não é.
Não existem dúvidas de que a denúncia é o primeiro passo para que os agressores paguem pelos seus crimes, mas mais importante que isso é assumir que estamos embrenhadas num sistema que não beneficia as vítimas
Se é vítima, ou já foi, ou se conhece alguém que esteja a passar por um caso de assédio, procure por organizações que estejam do seu lado e que a aconselhem. A CITE (Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego), a CIG (Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género), as associações de mulheres ou associações de apoio a vítimas como a APAV ou a UMAR são algumas das organizações a que pode recorrer para pedir ajudar.
Não existem dúvidas de que a denúncia é o primeiro passo para que os agressores paguem pelos seus crimes, mas mais importante que isso é assumir que estamos embrenhadas num sistema que não beneficia as vítimas e que deixa a impunidade do lado dos agressores.
Se ainda tem dificuldade em perceber os casos de assédio sexual, reflita: “Se soubesse que um homem agia de forma imprópria com a minha filha, sobrinha, prima, mãe ou com qualquer mulher próxima de mim, acharia que a culpa seria delas? Acharia que foram elas que provocaram? Como é que posso ajudá-las?”
Talvez o primeiro passo esteja aqui.