Depois de ter levado os leitores ao Vietname e ao Camboja com o primeiro livro da coleção Geografias – Princípio de Karenina –, com Sinopse de Amor e Guerra, o segundo, Afonso Cruz escolheu Berlim, em plena Guerra Fria, para pano de fundo “de uma história que dificilmente poderia ter outra geografia”, diz-nos.
Um muro divide a cidade e o amor de Theobald Thomas e Bluma Janek, mas também pode ser uma metáfora para o que se vive na atualidade. “Os muros são sempre sinónimo de privação da liberdade”, afirma o escritor premiado.
Entrevista a Afonso Cruz
Sinopse de Amor e Guerra transporta- nos para Berlim. Porquê a escolha desta cidade?
Comecei a ter ideias para romances a partir de determinados lugares e estava a escrever um que se passa em Timor, outro na Palestina e outro no Chile. Mas como, em 2020, estive em residência em Berlim e conhecia esta história há já alguns anos – muito interessante em termos éticos porque levanta uma série de questões –, acabei por priorizar este livro.
Além da história de amor, é também um livro político?
Sim, aliás, a política é indissociável de quase tudo o que fazemos. Neste caso, o próprio tema tem tudo que ver com política e com a Guerra Fria em particular.
O Muro de Berlim pode ser visto como uma metáfora para todas as barreiras que o amor encontra?
Na realidade, é uma metáfora para muitas coisas. O Muro de Berlim – mais a queda do que a construção – mudou muito o panorama e política internacionais. É um daqueles momentos do século XX extremamente marcantes, como foi o Homem pisar a lua, a II Guerra Mundial e o Holocausto. Por isso, presta-se a uma série de interpretações e de metáforas, mas também pela própria natureza inerente aos muros, que está associada à separação, à guerra, às notícias falsas e à propaganda.
Em Berlim, sentiu que as pessoas ainda são muito marcadas pelo muro?
Uma série de gente já não viveu a existência do muro, mas quem a viveu continua a sentir que é uma cicatriz que ainda existe. Tive a sorte de ter sido acompanhado por uma pessoa que tem a impossibilidade de passar de um sector para o outro muito presente. Ainda hoje brinca com isso, dizendo ‘agora estou em Berlim Leste’, dá um passo e diz ‘agora estou em Berlim Ocidental’. Fazia isso de uma maneira quase infantil para mostrar como os tempos mudaram e que, agora, é fácil fazer uma coisa que antes era uma impossibilidade. No caso dele, fez com que nunca mais visse a mãe, que morreu antes da queda do muro, e que só soubesse que tinha irmãos quando aquele caiu.
Trinta e dois anos após a queda do Muro de Berlim, constroem-se muros para impedir a passagem de refugiados. Já caiu no esquecimento?
Sim, e isso acontece em relação a muitas outras coisas. Talvez por isso repitamos tantas vezes os mesmos erros. Determinadas ideias são muito teimosas e reaparecem e, se isso acontece, é porque fazem parte da nossa natureza, e os muros também. São sempre limitações à liberdade às quais as pessoas se sujeitam em nome da segurança, da manutenção de algum status ou da riqueza ou porque são obrigadas. Os muros são sinónimo de privação da liberdade e há outros tipos de muros. Se falarmos nos refugiados, o Mediterrâneo é um muro…
Onde tem morrido muita gente…
Exato. Mais uma vez, é a impossibilidade de determinadas pessoas se moverem e isso acontece à escala global. A liberdade que temos para nos movermos, embora esteja mais generalizada, é um privilégio ainda de poucos.
Quase que podemos balizar o progresso de determinado país pela mobilidade dos seus cidadãos, se podem ou não ultrapassar fronteiras, se podem ou não gastar dinheiro em turismo, porque este é feito em liberdade e é essa a grande diferença para os êxodos de outros tipos como a migração. Esta implica uma opressão qualquer no local onde vivem ou a ambição de uma vida melhor que o sítio onde vivem não permite.
As pessoas são obrigadas a mover-se, o que é completamente distinto de nos movermos pela nossa vontade; isso, claro, exige liberdade e essa é também quase por definição a ausência de muros.
As viagens são uma fonte de inspiração para si?
Sim. Na verdade, os meus livros são sempre muito colados à ideia de viagens, porque as viagens fazem parte da minha vida. Mas uma característica da coleção Geografias é que aquelas histórias só podem ser contadas em determinado lugar. Sinopse de Amor e Guerra dificilmente poderia ser noutro lugar do planeta e o mesmo em relação ao Princípio de Karenina, porque a Cochinchina é a ideia de lugar distante.
Em ambos existem ‘muros’ que impedem as viagens…
No Princípio de Karenina, é a ética, a cultura e a educação, no Sinopse de Amor e Guerra, é o Muro de Berlim.
Olhando para sociedade, o que é que o preocupa?
Politicamente, é a emergência e o crescimento do populismo. Parece-me muito preocupante que determinado tipo de ideias reapareça, algumas pareciam já afastadas daquilo que entendemos ser o caminho para uma sociedade mais justa e harmoniosa.
Em janeiro, subiu ao palco do Teatro São Luiz a peça Não, feita a partir de textos de dois dos seus livros – Paz Traz Paz e O Livro do Ano – e que se foca muito nesse tema…
O Giacomo Scalisi [encenador da peça], tal como eu, está preocupado com o crescimento do populismo e pediu-me para escrever para um espetáculo para crianças sobre a liberdade de dizer não. Como já tinha escrito tanto sobre o tema, ele optou por adaptar esses textos.
É muito diferente escrever para adultos e para crianças?
Não penso muito nisso e, na verdade, muitas vezes, culpam-me precisamente disso. Tenho algum receio desse tipo de pensamento e daquilo que eu chamo ‘gugudabismo’, que é a infantilização dos textos para crianças. Não há mal nenhum que o primeiro contacto que as crianças tenham com algumas palavras seja enquanto leem. Tenho a certeza de que as crianças, como Dostoiévski escreveu, podem compreender tudo.
Alguns conceitos filosóficos e científicos podem ser mais difíceis de explicar, mas depois há outros, por mais complexos que sejam, que elas compreendem com alguma facilidade, como os problemas sociais e nos livros que são dirigidos a um público mais jovem, esforço- me para abordar esses temas.
A grande diferença da escrita para adultos e crianças são determinados apriorismos; há pouco, referi Dostoiévski e a maior parte dos adultos sabe quem é; se estiver a escrever para uma criança, preciso de uma pequena introdução e escreveria ‘como disse um escritor russo do século XIX, chamado Dostoiévski’.
O que é para si saber viver?
É uma pergunta complicadíssima, mas acredito no sentido da vida, embora não num único. Existem vários sentidos para as nossas vidas e talvez seja essa a coisa mais importante. Há um livro muito conhecido chamado O Homem em Busca de Um Sentido, que toca nesse tema. O autor, Viktor E. Frankl, sobrevivente de Auschwitz, ficava indignado ao ouvir as pessoas dizerem que, depois de tudo o que passaram, tinham de sobreviver. Mesmo na dor, deve-se viver com significado, criar esse lugar dentro de nós.