
Gisela João: “O silêncio ajuda muito, porque é muito esclarecedor”
Precisa tanto de música como do silêncio; uma mente inquieta como a sua exige-lhe isso, confessa a artista. No novo álbum em que canta Abril encontrou muitas respostas para si e para o mundo.
É dona de uma voz forte e emocional e de um coração gigante sempre preocupado com o outro. Não esconde o que sente e é inquieta por natureza. Na sua cabeça pululam muitos porquês desde a mais tenra idade. Quando lhe propuseram fazer um espetáculo com as músicas revolucionárias de Abril, não hesitou e largou tudo o que estava a fazer. O impacto foi tal que decidiu fazer um álbum com algumas das músicas quando os concertos terminaram e assim nasceu Inquieta.
“Lembro-me de ler os poemas e as letras e de me parecer que eram respostas ao que via nas notícias e à minha volta”, conta, confessando ainda que foi este trabalho que a incentivou a ficar na música, que ponderou abandonar. “A pressão é muita e a velocidade com que as coisas são pedidas foram-me engolindo, e a arte não se pode medir”, afirma. Cantar para Gisela João é muito mais do que uma profissão, é vida.
Entrevista a Gisela João
Como é que surgiu a ideia para o álbum Inquieta?
Recebi um convite do Tivoli para montar um espetáculo para o 25 de Abril no início de 2024 e, quando estava no processo da escolha das músicas, de olhar para as letras, decorá-las e cantá-las, perceber o que é que me faziam sentir, o que é que representavam para mim, fui percebendo que me sentia empoderada a cantá-las. Conseguia ter resposta para os problemas à minha volta e no mundo. Quando acabei de fazer o espetáculo do 25 de Abril, lembro-me de chegar aos camarins e dizer que tinha de gravar estas músicas.
Como é que surgiu a ideia para o álbum Inquieta?
Recebi um convite do Tivoli para montar um espetáculo para o 25 de Abril no início de 2024 e, quando estava no processo da escolha das músicas, de olhar para as letras, decorá-las e cantá-las, perceber o que é que me faziam sentir, o que é que representavam para mim, fui percebendo que me sentia empoderada a cantá-las. Conseguia ter resposta para os problemas à minha volta e no mundo. Quando acabei de fazer o espetáculo do 25 de Abril, lembro-me de chegar aos camarins e dizer que tinha de gravar estas músicas.
Como é que foi feita a seleção?
Na altura, para preparar os concertos, havia duas coisas muito importantes: uma é que o 25 de Abril é do povo e, portanto, há músicas que eu tinha mesmo de cantar, depois, havia outras das quais gostava e onde me encontrava. Quando decidi gravar, a ideia era fazer um vinil, e este, por causa da qualidade do som, tem de ter uma determinada duração, então, o número teria de ser mais reduzido. Quis contar uma história de liberdade que me fizesse sentido.
Tem alguma música favorita do álbum?
Que o Amor Não Me Engana é minha favorita desde muito pequenina. Sempre me acalmou, dá-me paz e faz-me emocionar. A Canção de Embalar também é uma das primeiras músicas da minha vida. E Depois do Adeus trouxe-me respostas de que eu nem sabia que estava à procura.
Eu não queria cantar essa música igual ao Paulo de Carvalho e, de repente, andava ali a perceber qual era o ângulo que eu deveria puxar daquele poema, o que é que fazia barulho dentro de mim e, de repente, percebi que esta música fazia-me ter uma conversa comigo mesma, perceber onde é que eu estou, onde é que eu quero ir, quem de mim é que eu deixei lá atrás. Em vez de estar a ter uma conversa de amor com o outro, esse poema passou a ser um encontro comigo. E, claro, a Inquietação, que sou eu.
Numa altura em que o mundo enfrenta muitos desafios que põem em causa a liberdade, estas músicas escritas durante a ditadura, poderiam ter sido escritas hoje?
Digo muitas vezes isso, pode parecer cliché, porque, quando a poesia é muito boa, é lógico que ela dura sempre, mas é um facto e acho que não sou só eu que o sinto. O mundo deu uma volta e lembro-me de, ao longo da minha vida, pessoas mais velhas, como a minha avó e vizinhas, me dizerem que a minha geração já não iria passar por coisas elas tinham vivido e não é bem assim. Estes poemas são a prova de que as lutas continuam a ser as mesmas.
A verdade é que uma pessoa cresce inconsciente – como deve ser –, mas, depois, somos adultos e passamos a ter consciência do nosso lugar no mundo, a estar comprometidos com o nosso dia a dia e com o nosso dever social, porque vivemos em sociedade. Começamos a ter consciência política e do nosso impacto na vida dos outros, e eu acho que é impossível não se perceber que a liberdade é de facto uma coisa que está sempre a tremer.
Para si, a liberdade de expressão deve ter limites?
Os limites da liberdade de expressão surgem do saber viver em sociedade, do saber cuidar do outro, do ter simpatia e cuidado com o outro. Acho que o discurso de ódio e a conversa sobre os limites da expressão não surgiriam se as pessoas tivessem mais consciência do seu lugar no mundo e o do outro, que também tem e merece o seu lugar no mundo. Isso resolveria muita coisa.
Quando é que percebeu que era inquieta?
Desde muito miúda. Penso em mim e vejo-me sempre muito preocupada com o outro e isso sempre me levou a questionar tudo. Ser assim leva qualquer pessoa inevitavelmente para a inquietação. Depois, há também a noção de finitude, a morte é uma coisa também que me assusta desde sempre. É algo que me faz estar sempre muito inquieta, porque não sei qual é, mas sei que eu tenho um prazo. Então, estou sempre a pensar como é que posso fazer o melhor com o tempo que tenho. Isso dá-me muita inquietação.
Estar parada é difícil para si?
É muito difícil. O meu estar parada é estar a costurar ou estar a bordar. Portanto, há sempre um projeto, estou sempre a fazer a qualquer coisa.
Esses trabalhos manuais são uma forma de parar os pensamentos?
É mais o facto de estar sempre à procura de formas de me expressar. Não há nenhum lugar onde eu me expresse tão bem como quando estou a cantar, mas, quando estou a costurar e a bordar, são tentativas de me conseguir expressar e são lugares onde eu sinto que tomo conta de mim e onde resolvo também muitas coisas da minha vida. Para não falar da parte vaidosa (risos), quando alguém me diz que tenho algo vestido muito giro e me pergunta onde comprei e fui eu que fiz.
Como é que olha para a Gisela João do início da carreira?
Lancei o meu primeiro disco em 2013 e vejo as mesmas inseguranças, as mesmas questões, o que às vezes é muito assustador e avassalador. No entanto, hoje sou bocadinho menos ingénua e menos romântica com a vida, porque esta vai-nos dando umas bofetadas.
Depois da pandemia pensou mesmo retirar-se da música. Por que é que isso aconteceu?
Porque viver da arte é uma coisa muito séria, é um amor muito grande e não pode ser feito a metro. E, de repente, quando se entra na indústria – uma indústria é uma indústria seja lá qual for –, querem números, querem quantidades. A arte, pelo menos do meu ponto de vista, não se pode medir e isso foi-me esmagando. A velocidade com que as coisas são pedidas e a pressão foram-me engolindo e fizeram-me pensar se ainda era isto que queria fazer.
Também comecei a pensar sobre o que é o sucesso, pois parece que nos vamos balizando todos por uma ideia de sucesso que é única, mas eu comecei a pensar de outra forma. O que é que é o sucesso para mim? O que é que me faz feliz a mim? O que é que eu quero? Tudo isto começou a pesar muito na balança
A música, para si, é muito mais do que uma profissão, não é?
É a minha vida, feliz e infelizmente. A música faz-me viver a minha vida com poemas. E isso às vezes é muito pesado.
A Gisela João é tão emocional como a sua voz?
Eu sou muito emocional, não tenho sangue de barata. Sou nova, mas tenho muita vida. A nossa idade não é um bilhete de identidade, como dizia já o Sérgio Godinho, e eu já vivi muita coisa. Canto com aquilo que eu vivi, com aquilo que vi ser vivido, com aquilo que me inspirou. Passo a vida à procura daquilo que encontro nos poemas na vida real. E isso é muito bonito, mas é muito assustador.
Gostaria de mudar o mundo?
Sim. Mudar o mundo a cantar poemas.
Hoje considera-se fadista ou cantora?
Sou uma fadista por natureza. Acho que ser fadista é muito mais do que cantar fado, é um estado de alma, é uma forma de ser à qual nem sequer se tem hipótese de fugir. Mas, quando já não andar por cá, gostava que as pessoas se lembrassem de mim como uma artista multifacetada.
Sente que com o lançamento do seu primeiro álbum abanou o fado?
Sem falsas modéstias, completamente e as pessoas também me disseram isso. É uma coisa que me deixa muito feliz.
Onde é que entra o silêncio, do qual tanta gosta, numa mente tão inquieta? Essa necessidade deve-se ao facto de ter nascido no seio de uma família grande onde seria difícil estar em silêncio?
De facto, na casa dos meus pais havia sempre muito barulho, mas com o tempo fui percebendo que também sempre existiu em mim esta inquietação que é muito barulhenta na minha cabeça e, para isso, preciso de silêncio. De um modo geral, o silêncio ajuda muito, porque é muito esclarecedor.
Sempre disse que a tristeza e a melancolia vivem em si, mas também gosta de rir.
A tristeza e a melancolia vivem comigo, sou assim por natureza. Mas, ao mesmo tempo, também sou muito efusiva. Adoro fazer rir e o meu som favorito é o som das gargalhadas. Acho que é muito libertador e eu sou a primeira a rir-me de mim própria.
O que é para si saber viver?
Saber viver passa muito por conseguir estar atenta, porque é preciso estar atento para conseguir olhar para o lado bonito da vida e para as coisas bonitas. Quando vamos na rua, em vez de olhar o trânsito, podemos olhar para as coisas bonitas, para as flores, para um jardim, etc. Saber viver é conseguirmos ir contornando as pedrinhas que a vida nos vai lançando para a frente e nas quais podemos tropeçar.