A longa e preenchida vida de Manoel de Oliveira é a protagonista de A Morte Não é Prioritária (Contraponto), a biografia escrita por Paulo José Miranda. Foram dois anos de trabalho condensados em quase 600 páginas, nas quais o escritor dá a conhecer a vida e obra do mais reconhecido cineasta português, ambas feitas de paixões e convicções inabaláveis.
De artista de circo a campeão de salto à vara, de corredor de automóveis a gestor de fábricas, sem esquecer a sua temporada no Douro como lavrador, Manoel de Oliveira teve uma vida como poucos e é isso que este livro deixa transparecer.
“As pessoas não têm noção da vida que ele teve, como pode ter sido chata se aos 96 anos dançou em cima de um palco, em Milão, com a Patti Smith, enquanto esta cantava Because the night?”, questiona Paulo José Miranda, que tem a certeza que Manoel de Oliveira sabia viver.
Por que é que aceitou escrever a biografia de Manoel de Oliveira?
Só aceitei porque gosto muito de cinema e, em particular, de Manoel de Oliveira. Não era possível fazer este trabalho se não gostasse do realizador. Foi preciso ver, em alguns casos, ou rever, noutros, a obra toda.
Quanto tempo é que demorou a pesquisar e a escrever o livro?
Dois anos. Durante o primeiro ano não fiz mais nada; no segundo ano, trabalhei na biografia todos os dias, mas já não em exclusivo. Tive a felicidade de ter a ajuda da Júlia Buisel, sem a qual a biografia não tinha este rigor.
Ela tem uma memória extraordinária e trabalhou com ele desde 1980 em todos os filmes, além de ser sua amiga. Deu-me acesso a vários documentos que consultou para fazer uma fotobiografia em 2003.
Foi a primeira biografia que escreveu?
A primeira e a última (risos). Ainda bem que aceitei escrever a biografia, mas foi uma grande dose de inconsciência, não tinha a noção do trabalho. Nunca sofri tanto com um livro que escrevi, porque escrevi sobre a vida de alguém que viveu e trabalhou com pessoas que estão vivas e que me podem contestar a qualquer momento.
Ficou muito por contar?
Como não? São 106 anos de vida… Se tivesse conseguido pôr tudo, tinha feito um milagre. Tive de fazer um guião para ligar os pontos que me pareciam fundamentais para mostrar a sua vida.
O artigo O Cinema e o Capital, que Manoel de Oliveira escreveu em 1933 para a revista Movimento, marcou toda a sua obra?
A obra dele vai mudando ao longo do tempo, aliás quando escreveu esse texto ainda era acusado de ser muito rápido a filmar. O que se mantém desde essa altura até ao final da sua vida é ver o cinema como uma criação artística, como a poesia, fora do entretenimento. Nisso nunca fez concessões.
Na biografia, percebe-se que ele tinha sempre a última palavra…
Sim e tinha tudo planeado ao mínimo detalhe, mas depois tinha um talento para a vida e para saber viver.
Quando era preciso, improvisava e deixava-se levar pelo improviso. A forma como ele filmava era como o jazz, ou seja, estudava, tinha o domínio do instrumento, das harmonias e das escalas, a música estava estruturada, mas não deixava de improvisar e de se levar pelos atores, pelos técnicos, pelos figurantes e por todas as pessoas que rodeavam as filmagens.
Durante as filmagens de A Caça, por exemplo, ele viu o leiteiro da aldeia, que não tinha uma mão, e quis que ele aparecesse na cena final.
Por um lado, Manoel de Oliveira foi artista de circo, campeão de salto à vara, corredor de automóveis, pilotava aviões, ou seja, gostava de adrenalina; por outro, os seus filmes foram sempre apelidados de lentos. Vivia a duas velocidades?
Ele tinha muitas velocidades, mas é curioso que não encontrei alguém em Portugal que lhe tivesse feito essa pergunta, mas uma jornalista brasileira fê-lo e ele respondeu-lhe que nas corridas de automóvel o objetivo é vencer o tempo, no cinema é refletir sobre ele. Na verdade, a vida que muitos cineastas apenas filmaram, ele viveu-a.
Outro aspeto que a biografia relata é que teve sempre mais sucesso fora do que cá…
Sim, isso aconteceu desde o primeiro filme – Douro, Faina Fluvial – que os críticos estrangeiros adoraram. O próprio Luigi Pirandello perguntou se os portugueses batiam palmas com os pés.
A vida de Manoel de Oliveira tem essas coisas, até as piadas são feitas por gente extraordinária, como o Pirandello, uma figura ímpar e Prémio Nobel da Literatura. Por cá houve sempre um fechar de costas ao seu cinema. Não sei se o facto de ele ter começado a filmar com regularidade já com 70 anos teve algum peso.
E essa incompreensão não veio apenas do público em geral, mas também de pessoas ligadas à cultura…
Caso da Natália Correia, mas é transversal a toda a sociedade. Ele começou a ser conhecido como alguém que fazia filmes chatos e lentos.
Mas na verdade a sua vida de chata tinha pouco…
Fui figurante, durante 15 dias, no Non, ou a Vã Glória de Mandar e era impressionante a energia dele aos 80 anos.
As pessoas não têm noção da vida que ele teve, como pode ter sido chata se aos 96 anos dançou em cima do palco, em Milão, com a Patti Smith, enquanto esta cantava Because the night. É absolutamente extraordinário.
De tudo o que descobriu de Manoel de Oliveira, o que mais o surpreendeu?
O talento dele para a vida, o saber viver dele, a sua capacidade de contornar os obstáculos. Não perdia tempo a lamentar-se. Essa capacidade de dar a volta é visível quando ele aos 70 anos, depois de ter perdido a fábrica, chega ao pé do Paulo Branco e diz que a partir daquele momento tem de viver do cinema.
Aos 95 anos, quando deixou de trabalhar com este produtor, disse algo como “agora tenho de pensar no meu futuro”. Estes dois exemplos mostram como era muito especial e diferente. Tinha uma relação com a vida muito particular.
O que está a escrever agora?
Estou a escrever um livro de poesia e a trabalhar num romance que já tinha escrito antes da biografia. Além disso, a ler, porque durante dois anos não li mais nada que não fosse coisas sobre o Manoel de oliveira.