Numa altura em que o mundo estava confinado e os beijos estavam desaconselhados, Manuel Vilas decidiu, após ter revisto o filme Casablanca, que a sua luta contra o vírus passaria por escrever “uma história de amor, porque até no meio da catástrofe este prospera e é a única resposta possível”.
Foi assim que nasceu o seu mais recente livro, Os Beijos (Alfaguara). Os protagonistas deste amor em tempos de pandemia são Salvador, 58 anos, um professor jubilado que se confina numa cabana da serra madrilena, e Montserrat, 45 anos, empregada da mercearia local. Duas pessoas já maduras, porque, para o escritor e poeta, “a discriminação pela idade é uma realidade que tem de ser combatida”.
Manuel Vilas usa ainda o amor para medir a política: “Grande parte dos políticos estão apaixonados por si próprios e pela sua carreira e não pela população”. A invasão russa é um exemplo claro disso.
Entrevista: Manuel Vilas
Podemos dizer que os seus três livros mais recentes – Em Tudo Havia Beleza, E, de Repente, a Alegria, Os Beijos – são uma trilogia sobre o amor?
É uma boa observação. Efetivamente, o amor é o tema capital dos três. Nos dois primeiros, falei do amor entre pais e filhos, mas ainda havia outro território do amor importante, aquele a que chamamos romântico e sentimental. Dei-me conta de que há alguma dificuldade em nomear esse tipo de amor e, quando um escritor comprova isso, significa que é um tema humano importante.
Com a pandemia, o amor tornou-se mais importante do que nunca?
A covid-19 foi terrível do ponto de vista sanitário, psicológico e emocional. Fez com que o mundo se tornasse infeliz, e a única maneira de voltar a ter confiança na vida é através do amor. No confinamento, todos vimos muitos filmes… Eu vi o Casablanca pela enésima vez e há uma cena na qual Ingrid Bergman ouve que o exército nazi está a entrar em Paris e diz a Humphrey Bogart algo como ‘o mundo está a desmoronar-se e tu e eu a apaixonarmo- nos’.
Frente à guerra, à hostilidade, à adversidade e catástrofe, dois seres humanos decidem apaixonar-se, e foi isso que aconteceu com os protagonistas de Os Beijos, Salvador e Montserrat, em plena pandemia. Algo que pode acontecer agora na Ucrânia, duas pessoas podem apaixonar-se e viver uma história de amor no meio de uma catástrofe. Porquê? Porque a vida continua a ser poderosa.
Intitulou o livro Os Beijos porque na pandemia estavam desaconselhados?
Por um lado, uma história de amor começa sempre com um beijo, normalmente, não se verbaliza. Há um que tem a iniciativa e o outro aceita ou não. Por outro, os beijos estavam proibidos durante o confinamento e eu queria recordar a sua importância. Às vezes, a única coisa que a literatura faz é voltar a olhar para algo que todos sabem que existe, para o óbvio, mas dando-lhe profundidade.
Há, portanto, uma reivindicação do romantismo neste livro?
Claro, porque o romantismo é ilusão e força de viver, e toda a minha literatura é uma defesa da vida. É um livro também sobre o erotismo das relações amorosas. Há um tema importante que é a entropia do sexo, o momento em que aquele deixa de ser importante. O sexo é fundamental, mas dura duas ou quatro semanas, um ou dois anos e, depois, deteriora-se e dá lugar à vida em casal, à cumplicidade, à lealdade. Salvador acha isso terrível. Para ele, sem atração sexual, a relação não tem sentido e fica angustiado por perceber que nunca poderá viver uma relação de longo prazo. Andamos há três mil anos a tentar resolver este problema…
Por que resolveu escrever sobre um amor já maduro?
Na história ocidental, temos bem catalogadas as discriminações por sexo, raça, religião, política e lutamos contra elas, mas há uma que é a discriminação por idade, que está esquecida. Em Espanha, quem perde o trabalho aos 50 anos já não volta a trabalhar; em Hollywood, as atrizes com 50 anos não encontram papéis; uma senhora ou um senhor de 60 anos ou mais que queira namorar é apelidado de ridículo. O amor é para os jovens, não é para os velhos, e penso que isto é injusto.
Outro aspeto curioso do livro é que Salvador, que era professor, reforma-se mais cedo, aconselhado pelo médico, porque emudece perante as turmas. Este silêncio é um simbolismo da nossa sociedade?
Sim, porque ele era professor de Humanidades, e a História, a Literatura, a Arte e a Filosofia não têm voz neste mundo, por isso, é que temos um mundo tão desumano. Em Espanha, a Filosofia deixou de ser obrigatória no ensino e, se não se estuda Aristóteles, Platão, Descartes, Marx, o que é o mundo? O Twitter é o mundo? Não, claro que não, o mundo é Aristóteles.
Manuel Vilas apelida os políticos de narcisos. A política é narcisista?
Completamente. Pedro Sánchez é um narciso, tal como é Putin, Donald Trump e Emmnuel Macron. O problema dos políticos é que não nos amam, só estão apaixonados por si próprios. A novidade da minha literatura é que, de repente, utilizo o amor para medir tudo. A minha crítica política é original, pois digo que os políticos não estão enamorados das pessoas, mas sim da carreira política.
Volodymyr Zelensky está apaixonado pelos ucranianos?
Sim. Os grandes momentos da História acontecem quando um político se enamora do seu povo e há poucos momentos desses. Por exemplo, Pedro Sánchez está enamorado de si próprio, mas às vezes, para construir a sua carreira política, tem de tomar decisões que são boas para nós e, quando isso acontece, é perfeito. Juan Carlos I também estava apaixonado por si próprio, mas, no dia 23 de fevereiro de 1981, houve um golpe de Estado em Espanha, e ele percebeu que, se o apoiasse, teria 2 ou 3 anos de poder absoluto, mas ia contra o espírito da História e o seu reinado não duraria. Decidiu apoiar a democracia espanhola e destituir os militares golpistas. Os seus interesses coincidiram com os de Espanha. Neste conflito atual, acredito que os interesses do povo russo não coincidem com os de Putin.
O que pensa da invasão russa?
Acredito que nós, seres humanos, vimos a este mundo para sermos felizes, desfrutarmos da vida e termos uma bondade natural para com os outros. Tudo o que seja obscuridade, morte, tragédia, opressão, ditadura e autoritarismo é inimigos da vida. Os amigos da vida são a fraternidade, a democracia, a justiça, e a minha literatura é uma luta pela fraternidade dos povos, pela justiça e bondade universais.
Evidentemente, Putin tem um inimigo, que é a democracia e, dentro desta, ainda suporta menos a prosperidade cultural e económica das classes médias. Eu sou um inimigo de Putin, porque os meus pais são da classe média-baixa e, graças a um sistema democrático e a uma série de pessoas que lutaram pela democracia e pela prosperidade, consegui ir para a universidade e escrevo livros. Isso não acontece na Rússia.
O que é para si Saber Viver?
É ter liberdade para desfrutar das coisas mais simples da vida, como apanhar sol, poder falar com um amigo, tomar um café, passear pela cidade… É ter acesso a cultura, a trabalhos dignos. A vida simples, para mim, é suficiente.