E se deixássemos de comer carne para sempre?
O debate tem sido longo, surpreendente e disruptivo. Deixar de comer carne vai mais além do que uma moda do momento, mas será mesmo possível?
Embora o discurso sobre a alimentação pareça ter sofrido algumas alterações ao longo dos últimos anos, há sempre a sensação de que quando se fala de vegetarianismo e veganismo é como se fosse algo passageiro, que não se leva a sério.
Não estamos a falar de modas, de novas dietas, de regimes alimentares passageiros. Estamos a falar de nós, do planeta e do futuro. Achamos que quando falamos de melhorar o planeta temos de (apenas) deixar de andar de carro, reduzir o uso de plástico e investir em roupa em segunda mão. E se lhe dissermos que para salvar as futuras gerações temos de reduzir ou até mesmo excluir o consumo de carne?
A indústria agropecuária é a mais poluente do mundo. A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agriculta alerta que 14,5% dos gases com efeito de estufa produzidos pela atividade humana provêm desta indústria – isto é mais do que os sistemas de transporte de todo o mundo (carros, autocarros, aviões, entre outros), que representam 13% deste mesmo tipo de poluição e ainda com a diferença do metano (produzido pelos animais, altamente poluente).
Acontece que, em todo o mundo, estamos a destruir florestas para que haja espaço para a produção de animais. O que acontece? Não existem animais suficientes para alimentar os mais de 7 biliões de humanos do planeta, o que consequentemente leva a uma produção exaustiva de animais que vivem em situações degradantes e pouco higiénicas, apenas para servirem o propósito de nos alimentar.
Sabia, por exemplo, que 90% da destruição da Amazónia foi devido à agropecuária? Esta indústria é a responsável não só pela desflorestação, mas também pela poluição do ar, da água, da extinção de espécies e perda de habitats. O consumo de água pela produção de carne é gigantesca. Um hambúrguer, por exemplo, precisa de 2.500 litros de água. Imaginava isto?
Todos os dias os solos são danificados, a água torna-se um bem cada vez mais escasso e tudo porque os nossos hábitos alimentares não estão a mudar à velocidade pretendida. Será possível mesmo vivermos sem carne? Sim, é. As alternativas já são imensas e a produção de vegetais não se compara à indústria agropecuária.
A Saber Viver teve a oportunidade de falar com o realizador Marc Pierschel e com a ativista portuguesa sobre a indústria da carne, o veganismo e sustentabilidade.
Mudar aos poucos
O Fim da Carne estreou em 2017 e é agora exibido em Portugal, revelando uma série de dados impressionantes sobre esta indústria que continuam atuais e relevantes. O realizador, Marc Pierschel tornou-se vegetariano aos 17 anos e, quatro anos depois, aderiu ao veganismo, também pela influência de um filme.
“Ver o sofrimento dos animais de quinta e esta enorme injustiça fez-me tornar ativista”, conta-nos. Desde que o documentário estreou, diz ter visto alterações no mundo, nomeadamente na forma como se foi adotando o regime vegetariano e vegano.
“Vi o crescimento do mercado vegano em muitos países por todo o mundo e os primeiros produtos de carne cultivada já estão no mercado de Singapura. Por isso, sim, tem havido uma mudança significativa desde que o documentário foi lançado e espero que este tenha tido um papel a inspirar pessoas a acreditar que é possível vivermos num mundo sem carne”, afirma.
Alguns dos espectadores do documentário confessaram que mudaram a sua dieta e que após o seu lançamento repensaram na relação que tinham com animais.
Ao longo de mais de uma hora ouvimos e vemos testemunhos reais de especialistas e ativistas que todos os dias se esforçam para que a verdade sobre esta indústria seja revelada e para que as mentalidades mudem com brevidade.
Já Joana Guerra Tadeu sempre teve a sustentabilidade muito presente no seu crescimento. Hoje é ativista ambientalista (e não só), e acredita que o futuro tem de ser sustentável e com práticas amigas do ambiente.
“Cresci numa família desperta para estas questões, com reciclagem, horta, compostagem e consumo reduzido e consciente, pelo que não posso assinalar um momento em que me tornei ativista”, começa por contar. “Acho que cresci a refilar e fui refinando o conhecimento, as opiniões e as ferramentas até que consegui, aos 30 anos, tornar-me ativista de profissão: tudo o que crio, em termos de comunicação, serve a luta pela justiça climática. A escolha pelo ambientalismo prende-se com a urgência da mitigação das alterações climáticas e com o meu gosto pessoal pela Natureza. Não sou só movida pela causa. É bom quando gostamos do que fazemos.”
O ponto final no consumo da carne
A indústria da carne é lucrativa (demasiado lucrativa) o que dificulta uma mudança célere na nossa alimentação. Será, de facto, possível deixar de comer carne?
“Eu olho para a situação na Alemanha”, exemplifica o realizador. “Aqui temos as maiores empresas de carne com ofertas de produtos veganos. E, neste caso, um produtor de salsicha tradicional está agora a obter metade dos seus lucros com produtos veganos e vegetarianos. Por isso, acredito que haverá uma transformação, em que estas empresas percebem que há um mercado crescente e que eles podem beneficiar disto. É um paradoxo, uma vez que os consumidores estão a apoiar um produtor de carne. Por outro lado, alguns analistas acreditam que o mercado está a crescer e que vamos ver esta tendência de produtores de carne a produzirem produtos veganos”.
Já a ativista, acredita que continuaremos a ser omnívoros. “Acho que o ser humano vai seguir omnívoro, mas vai voltar a uma dieta com fontes de proteína variadas, como leguminosas e frutos secos, em vez de consumir quantidades insustentáveis, imorais e pouco saudáveis de carne. Na maioria dos países mais ricos nem sequer é preciso comer carne e peixe. Já passou a hora de compreendermos isso enquanto sociedade”, afirma.
Em Portugal, em 2019, segundo os dados do Instituto Nacional de Estatística, cada português consumia 117,4 quilos de carne em apenas um ano, o maior número desde os anos 80.
É realista viver num país e num mundo em que a carne não é a base da nossa alimentação? “Acho total e completamente realista. Claro que sim. Irrealista é acreditar que a indústria agropecuária vai seguir assim. Se assim for, a humanidade não tem grande esperança de vida. Recuso-me a aceitar tal possibilidade. Não cruzo os braços”, defende Joana Guerra Tadeu.
A indústria vegana e os conselhos para dar o passo em frente
Como começámos por dizer no início, há ainda alguma dificuldade em encarar o vegetarianismo e o veganismo com seriedade. “As pessoas ainda acham que a comida vegana é mais cara, o que é verdade, principalmente se olharmos para o preço das alternativas à carne e ao queijo”, reconhece Marc Pierschel. “Mas, mais uma vez, não precisamos que estes produtos sejam veganos. Os vegetais, as leguminosas, o arroz e outros ingredientes são veganos e muito mais saudáveis”.
A ativista portuguesa admite que está na natureza humana ter uma “grande adversidade à mudança, e mudar algo tão basilar como a alimentação é ainda mais difícil de aceitar”.
Porém, pedimos a ambos que deixassem conselhos para alguém que pretende tornar-se vegano. “Eu diria para comprar um bom livro de receitas veganas! Para mim, pessoalmente, foi importante aprender a fazer receitas veganas saborosas, ao mesmo tempo que percebia que o meu conhecimento da gastronomia de outros países era muito limitado. Ao tornar-me vegano, não só descobri pratos incríveis, como ganhei confiança para fazê-los eu próprio!”, conta-nos o realizador.
Joana Guerra Tadeu assegura que nunca tentou convencer ninguém a deixar de comer carne e que come carne quando é convidada para jantar em casa de alguém que cozinha este alimento. Mas quando tem de argumentar a favor de uma dieta com menos produtos de origem animal, não vacila.
“Falo das consequências para a saúde dos humanos (comer tanta carne está a fazer-nos perder 15,4% dos anos de vida saudável que podemos ter e, a sua redução para quantidades mais aconselháveis, pode reduzir a mortalidade prematura em 14%), do gasto de água na produção (segundo a FAO, para produzir um bife de vaca são precisos quatro mil litros de água), na degradação dos solos e nas emissões de gases com efeitos de estufa da indústria agropecuária (segundo o IPCC, reduzir o consumo de carne é a forma mais eficaz de reduzirmos as emissões no hemisfério norte e recuperarmos o solo), e também das receitas deliciosas que tenho experimentado nos últimos anos”, menciona.
O futuro sem carne não só é possível, como é necessário. Mesmo que não consiga excluí-la de vez da sua alimentação, a redução já é um passo importantíssimo.