Descansar na era do cansaço
A fadiga parece ter tomado conta da sociedade, mas está na altura certa de a ultrapassar, apreciando as férias (se ainda não a tiver tirado) e prolongando o seu efeito. A receita é simples: é lembrar os dias livres e manter atividades que dão prazer mesmo no regresso ao trabalho.
À pergunta ‘como estás?’, quantas vezes já obteve a resposta ‘estou cansado(a)’ ou foi esta a sua resposta quando lhe fizeram a mesma questão? O cansaço parece ter tomado conta da sociedade, como alertou, em 2010, o filósofo coreano naturalizado alemão Byung-Chul Han no livro A Sociedade do Cansaço (Relógio d’Água).
Nele, aborda a epidemia contemporânea de exaustão e sobrecarga mental provocada pela procura incessante do sucesso e por uma produtividade excessiva num mundo hiperconectado que está a provocar um estado de burnout coletivo. Catorze anos depois, a era do cansaço só se acentuou e este é um tema ao qual Byung-Chul Han volta amiúde porque não lhe restam dúvidas: vivemos esgotados e deprimidos devido ao atual modelo de uma sociedade hiperexigente. Mesmo quando as tarefas laborais terminam, a compulsão por fazer mais assola-nos também nos momentos de lazer.
E é a estes que queremos chegar, pois o verão, para a maioria das pessoas, é sinónimo das tão aguardadas e necessárias férias. Durante aquelas, a palavra de ordem é descansar e fazer coisas que lhe dão prazer. Terminados os dias livres, é agarrar-se às memórias dos mesmos e continuar a atividades que a ajudem a relaxar mesmo no regresso ao trabalho. Mas, atenção, a epidemia da fadiga pode ainda estar ligada à debilidade do nosso sistema imunitário e aí é preciso mais do que férias para ganhar energia.
Tudo começou no Império Romano
Se olharmos para a origem etimológica da palavra férias, esta remonta à época do Império Romano e deriva do termo latino vacatio, que significa estar livre de, estar em lazer ou ter tempo para. “Aparentemente, a necessidade de estar livre de deveres e o desejo de se envolver em atividades de lazer são reconhecidos há muito tempo”, como diz Jessie de Bloom, psicóloga das organizações e do trabalho e professora na Universidade de Groningen, nos Países Baixos, que se tem dedicado a estudar os efeitos das férias e do tempo de lazer no bem-estar e no desempenho profissional das pessoas, bem como o impacto que os trabalhadores estão a ter por haver cada vez menos limites entre a vida profissional e a pessoal.
Claro que, desde a Antiguidade Clássica, o conceito de férias, tal como o do trabalho, evoluiu profundamente, mas foi preciso lutar muito para que os trabalhadores vissem esse direito consagrado a partir da década de 20 do século passado, no entanto, ainda hoje, em alguns países, não há regulamentação que o garanta. A investigadora lembra que, enquanto a União Europeia exige que os empregadores de seus Estados-Membros concedam a cada funcionário, pelo menos, quatro semanas de férias remuneradas por ano, nos Estados Unidos, por exemplo, aquelas não são pagas. Mas as férias são mesmo necessárias, garante Jessie de Bloom na sua tese intitulada Como é que as férias afetam a saúde e o bem-estar do trabalhador.
Encontrar as prioridades
Embora as férias e a recuperação que estas proporcionam constituam um campo de pesquisa muito recente, Jessie de Bloom sublinha que “o efeito prejudicial do stresse laboral já está bastante bem estabelecido atualmente”. “A exposição aos agentes stressantes associados à profissão pode provocar diretamente respostas fisiológicas potencialmente prejudiciais, bem como indiretamente por meio de estilos de vida pouco saudáveis, como tabagismo, consumo de álcool, dietas pouco saudáveis, falta de exercício e sono perturbado”, lê-se na tese já citada. Tudo piora, continua a investigadora, “quando as respostas fisiológicas, como níveis elevados de pressão arterial, de frequência cardíaca, de catecolaminas e de cortisol se prolongam após o horário laboral”.
Atualmente, “a gestão do tempo é efetivamente muito difícil. Vivemos tempos com muitas e diversas solicitações e arriscamo- nos a cair num imenso cansaço se não nos alinharmos com as nossas prioridades”, afirma Margarida Gaspar de Matos, psicóloga, psicoterapeuta e professora catedrática da Universidade de Lisboa. “O cansaço (sem falarmos de questões de doenças físicas ou psicológicas) tem que ver com o desequilíbrio entre a nossa energia, a nossa motivação e o nosso usufruto.
No entanto, em casos extremos podemos sentir cansaço mesmo em coisas que nos dão prazer. Mesmo quando andamos animados com a vida, o excesso de ocupação do tempo e a aceitação de um ritmo frenético, sobretudo quando nos traz incertezas sobre as nossas capacidades e sobre ‘se é aquilo mesmo que queríamos’ ou quando somos alvo de interações tóxicas por parte de outros podem levar-nos a um estado de exaustão mais ou menos crónico em que inclusive o nosso interesse pelas coisas mais queridas se esfuma”, adiciona a psicóloga.
Não ter nada para fazer
Será ou não positivo não ter nada para fazer, algo que todos desejamos arduamente diariamente, sobretudo quando estamos a trabalhar. “Depende se esse ‘nada para fazer’ é uma escolha pessoal, alinhada com as coisas que cada um valoriza ou é uma imposição. O cérebro, em princípio, descansa sete a nove horas por dia, embora em algumas das fases do sono pareça ter uma enorme atividade. Este período de descanso é essencial para a nossa saúde psicológica, sendo útil as pessoas conhecerem o seu sono e reconhecerem quantas horas de sono necessitam para se sentirem bem”, afirma a psicóloga Margarida Gaspar de Matos.
O nosso cérebro está quase sempre com alguma atividade. “É extremamente difícil não estar a pensar em nada, por isso, mesmo quando a pessoa põe o corpo a descansar, por vezes o pensamento não as deixa estar bem. Ora, tentem não pensar em nada… passado algum tempo lá estamos a vaguear. Mas o problema só o é verdadeiramente quando nos deixamos possuir por esses pensamentos que temos a vaguear e lhes damos importância suficiente para nos perturbar”, resume a também professora da Universidade de Lisboa.
Proteger a saúde e o bem-estar
Posto o que vimos atrás, não é de estranhar que os dias livres, como antagonistas do stresse no trabalho, desempenhem um papel crucial na proteção da saúde e do bem-estar dos trabalhadores, como defende Jessie de Bloom. A professora da Universidade de Groningen refere que estudos recentes revelaram que as pausas mais curtas, como o descanso pós-laboral diário e os fins de semana, não são suficientes para recuperar, “devido a horas extra de trabalho ou aos processos cognitivos que nos fazem continuar a pensar no stresse passado ou nos levam a antecipar o stresse futuro.
As consequências dessa recuperação inadequada são doenças relacionadas com o stresse, como esgotamento e distúrbios graves do sono”. Jessie de Bloom defende que o restabelecimento do cansaço nas férias é feito através de dois mecanismos. “Primeiro, um mecanismo passivo que reflete uma libertação direta da exposição diária aos requisitos do trabalho. Segundo, a recuperação abrange o envolvimento em atividades não laborais agradáveis e autoescolhidas.”.
Daí ser tão importante saber fazer escolhas, tema do livro de Margarida Gaspar de Matos. No A Arte de Saber Escolher (Pactor), a psicóloga ajuda a refletir “sobre como fazer escolhas que nos aproximam do que para nós é importante, ainda que através de pequenos passos, mas na direção certa. Não é que não saibamos escolher… é que não fazemos escolhas alinhadas com o que é importante para cada um de nós”, afirma. E isso é fundamental para o nosso bem-estar.
“Tirar férias em intervalos regulares ajuda ao nosso bem-estar e ao nosso restabelecimento físico e psicológico, a não ser em casos específicos em que as férias são um encontro com coisas que não apreciamos e que nos afastam do que valorizamos”, realça a professora da Universidade de Lisboa. “Durante as férias, é importante ter controlo sobre as atividades de férias e envolver-se em atividades agradáveis e escolhidas por si e que correspondam às suas preferências”, acresce Jessie de Bloom.
Atividades prazerosas
Distinguir férias de ócio também é importante. “Férias têm que ver com interromper as atividades habituais, de carácter escolar ou laboral, ou de cuidador. Ócio tem em si o risco do tédio. Vejamos por exemplo a diferença entre estar de férias e estar desempregado: em ambos os casos há um abrandar da atividade, mas não é a mesma coisa”, diz a psicóloga. De acordo com a investigação de Jessie de Bloom, a saúde e bem-estar aumentam rapidamente durante as férias, atingem o pico ao oitavo dia de férias e retornam à linha de base na primeira semana de retorno ao trabalho.
O envolvimento em atividades passivas, o sentir prazer derivado de atividades, o relaxamento bem como a qualidade e quantidade do sono são aspetos relacionados com a melhoria da saúde e bem-estar durante as férias. Se tiver mesmo de trabalhar, faça-o o menos possível. Apesar de o estudo liderado pela especialista em Psicologia das Organizações ter demonstrado que os efeitos das férias são de curta duração, “as memórias daquelas podem melhorar temporariamente o nosso humor e o bem-estar e podem atuar como um amortecedor dos momentos stressantes. As férias podem ajudar as pessoas a distanciarem-se mentalmente dos aborrecimentos diários e a pôr a vida em perspetiva, o que pode gerar resiliência psicológica”.
Quando a fadiga se mantém
Mas e se o cansaço nem nas férias diminuir? “É sinal de que temos demasiados parasitas e tóxicos. Hoje em dia estamos altamente intoxicadas por estes microrganismos e não é só o excesso de trabalho e a falta de sono que nos deixam cansados.” Quem o diz é Alexandra Vasconcelos, terapeuta natural integrativa que dirige as áreas de terapias não convencionais das Clínicas Viver, que não tem dúvida de que vivemos mesmo na era do cansaço, mas é preciso investigar a sua origem. “Tanto eu como os meus colegas nunca tivemos tantos pacientes a queixarem-se de falta de energia e de exaustão.
O pós-covid tem sido caracterizado por este cenário, não só porque a pandemia mexeu muito com as pessoas psicologicamente, mas também porque o isolamento social debilitou a nossa imunidade e muitos microrganismos passaram a ter uma virulência completamente diferente da que tinham e há ainda a questão da covid longa”, conta.
Foi esse aumento das queixas associadas ao cansaço sem que haja uma doença e a surgir nas mais variadas idades que a levou a escrever o livro Energiza-te, publicado pela Planeta. “As pessoas queixam-se de acordar já sem energia, de falta de capacidade de se concentrarem e de uma névoa mental. A fadiga tornou-se uma verdadeira epidemia e não, não é o nosso estado normal”, salienta.
8 são os dias de férias necessários para atingirmos o pico do descanso
Sistema imunitário debilitado
É frequente sentirmo-nos cansados depois de um dia de trabalho intenso, por exemplo, nada que o descanso e uma boa noite de sono não atenuem. “O que não é normal é esta fadiga crónica sem razão aparente e que se faz sentir física e psicologicamente”, explica a terapeuta natural integrativa. Para Alexandra Vasconcelos, a ‘culpa’ é de o nosso “sistema imunitário estar muito débil e, por isso, menos eficiente, e nós estarmos constantemente sujeitos a parasitas e a toxicidade.
Isto contribui para a desregulação da mitocôndria, um organito que desempenha um papel central na regulação da energia”. Ao mesmo tempo, acrescenta, assistimos “a uma alteração da permeabilidade do intestino, o que dificulta a manutenção da nossa microbiota intestinal, composta por um número de microrganismos dos quais necessitamos e que nos ajudam também a combater os que provocam a tal toxicidade”.
Desintoxicar, a palavra a fixar
Fazer uma alimentação equilibrada, evitando alimentos processados e ricos em gordura saturada e açúcar, dormir bem, respeitar o ciclo circadiano e fazer exercício físico, respirar bem são alguns dos conselhos da terapeuta para combater este cansaço. “Hoje, fala-se também muito no intermitent living, conceito desenvolvido pelo médico Leo Pruimboom, especialista em Psiconeuroimonologia [que estuda a interação entre os sistemas neurológico, endócrino, imunológico e metabólico]. Significa viver a vida incluindo um conjunto de estímulos horméticos que nos adaptam ao ambiente e nos aproximam da nossa genética, minimizando assim o efeito dos agressores do mundo de hoje.”
Este conceito inclui coisas como a exposição ao calor e ao frio (as saunas e os banhos de gelo são um exemplo), sentir fome e sede, respiração intermitente, meditar, conectar- se com a terra (o chamado grounding, que envolve meditação, respiração consciente, caminhadas na Natureza, de preferência descalça, e prestar atenção aos cinco sentidos). Alexandra Vasconcelos aconselha ainda a ter em atenção os produtos que pomos na pele, optando “por produtos que não contenham alumínio, flúor, conservantes e aditivos”.
A terapeuta também recomenda dar preferência a produtos de limpeza biológicos, tal como comer o mais biológico possível, cozinhar em panelas de aço inoxidável, armazenar os alimentos em recipientes de vidro e procurar ambientes menos poluentes quando fazemos exercício físico ao ar livre. Não se esqueça ainda de se “expor à luz natural, e evitar luzes fortes e azuis à noite, e de se dedicar algumas horas do seu dia a fazer o que gosta e tenha sempre presente o seu ikigai (propósito de vida)”, remata a terapeuta.
Recomendações para as férias
Dois conselhos da terapeuta integrativa Alexandra Vasconcelos para os seus dias de descanso.
- Evite o açúcar. “Quando estou num hotel e observo a quantidade de açúcar que as pessoas ingerem logo de manhã, fico arrepiada. Reduz logo para metade a nossa energia; passado uma hora estão de rastos. Contudo, as pessoas pensam que se estão a mimar com um pequeno-almoço daqueles e acham que merecem porque estão de férias. O corpo ainda está a acordar, depois da desintoxicação noturna, e já estamos a agredi-lo.”
- Mime-se. “Em vez do pequeno-almoço cheio de açúcar, mime-se com coisas que lhe fazem bem. Comece o dia a mexer-se, praticando exercício físico, dando um mergulho no mar, fazendo meditação ou ioga. Converse com as pessoas com quem foi de férias, faça passeios, entre em contacto com a Natureza.”
Os livros mencionados