Está a passar por um processo de luto? Compreenda o que lhe está a acontecer
É a certeza mais vincada das nossas vidas e, talvez por isso, a mais difícil de conceptualizar. A morte é sempre uma persona non grata no nosso percurso, um convidado que entra em nossa casa sem pedir permissão e se instala com todo o empenho. O que sucede a seguir é um caminho sinuoso, a que a comunidade científica tem dedicado o seu tempo de estudo. Aqui fala-se de luto.
Conhecemo-lo do populismo como um constructo social – aquele que agora se veste de preto – mas as linhas por que se rege são mais densas do que poderíamos pensar. Em resposta a uma perda significativa, desenvolve-se por entre corpo e mente um processo em tudo necessário e fundamental para que nos consigamos adaptar a esta nova fase sem uma das peças que constituem o puzzle da nossa vida.
Cada processo de luto comporta as suas próprias vicissitudes, deste caso da pessoa que o carrega. E usamos esta última denominação porque a sua expressão nas vidas comuns é para lá de preponderante.
Mas a verdade é que não há dois lutos iguais. Esta reação à perda difere de indivíduo para indivíduo, e a dor não pode nunca ser quantificável ou qualificável.
Apesar disto, a ciência, nomeadamente a psicologia, tem-se dedicado a estudar o fenómeno e encontrou algumas generalidades nomeadamente ao nível dos vários estádios por que as pessoas passam neste processo, mas também as manifestações físicas e psicológicas mais comuns.
Para além destes temas de estudo, procuramos ainda saber com este artigo quando é que um luto considerado normativo passa a patológico, isto é, quando devemos procurar ajuda de um especialista. E claro, como vivenciá-lo da melhor maneira possível.
Finalmente, se não está passar por uma fase tão conturbada e reflexiva como esta, mas tem algum amigo próximo nesta situação, muna-se com as nossas sugestões.
Para nos ajudar a compreender este processo com o rigor e a clareza que a ciência o permite, falámos com psicóloga clínica Sílvia de Almeida Lourenço, com experiência na intervenção no luto no Instituto Português de Oncologia de Lisboa, na Associação Acreditar de Lisboa e na Santa Casa da Misericórdia de Almada.
De que perda estamos a falar?
Já aqui antes traçámos em linhas gerais a definição de luto como uma reação com fases características a uma perda. O que podia não saber é que “podemos estar a falar da perda de uma pessoa, animal ou objeto ou da perda de uma expectativa ou capacidade” como explica a psicóloga, e exemplifica “o luto também acontece no final de uma relação amorosa, quando perdemos uma relação de amizade importante ou quando, no âmbito da doença crónica, alguém se confronta com a perda de capacidades físicas e/ou cognitivas”.
Fica então clara a constatação de que a reação de luto é transversal aos vários aspetos da nossa vida, uma vez que, inevitavelmente, todos vivemos separações e perdas ao longo do tempo.
As distintas fases do luto
“Não há formas “certas” ou “erradas” de viver o luto, nem fórmulas mágicas que nos permitam saber o que fazer” explica-nos Sílvia de Almeida Lourenço. Assim se explica que, por exemplo, “na mesma família, embora todos estejam a sentir a perda, cada pessoa possa reagir de modo diferente, pelo que neste sentido é importante respeitar o tempo de cada pessoa, não estabelecendo metas nem tempo limite para a pessoa estar em luto” conclui.
De forma a facilitar a compreensão deste processo, a comunidade científica organizou 5 fases características, com as reações mais comuns ao luto. A psicóloga avisa, no entanto, que estas não devem ser vistas como “obrigatórias”, sendo que “cada pessoa pode viver as fases em momentos diferentes, pode não passar por alguma delas ou voltar a ter manifestações de uma fase que já tenha vivido”. A regra é que não há regras, portanto.
Choque/Negação
Estado de choque e negação da notícia da perda. É comum a procura de justificações para afirmar que a perda não é real, ouvindo-se afirmações como “É mentira”, “Estou num pesadelo e vou acordar”, “Isto não me está a acontecer”.
Raiva
Nesta fase surgem os sentimentos de zanga, ressentimento e revolta. A pessoa questiona “Porquê a mim?”, “O que fiz para isto acontecer?”. A raiva pode ser direcionada para a própria pessoa, para a pessoa que faleceu, para a família e amigos próximos, para profissionais de saúde ou para Deus.
Negociação
A pessoa ainda não aceitou a realidade da perda e procura uma estratégia de negociação, que pudesse ajudá-la a anular a perda. Por exemplo: “Se eu falar com o médico outra vez, pode ser que afinal tenha sido um erro”.
Depressão
Existe o confronto com a realidade da perda, em que a pessoa entende que não há forma de o ente querido voltar. As lembranças sobre a pessoa são frequentes, assim como os sentimentos de tristeza, frustração e necessidade de isolamento.
Aceitação
Corresponde ao culminar das reações emocionais, em que o indivíduo consegue integrar a perda na sua vida atual, recordando a pessoa que faleceu sem dor intensa. É capaz de investir em tarefas que lhe dão prazer, assumindo novos papéis com uma sensação de maior equilíbrio.
Nesta última fase, a psicóloga faz uma ressalva, que pode ser a questão de algumas pessoas: “é importante salientar que aceitar a perda não significa esquecê-la. A pessoa consegue antes adaptar-se a uma nova realidade, em que aprende a lidar com os sentimentos e reconstrói a sua experiência no momento atual”.
Manifestações físicas e psicológicas do luto
Existem algumas manifestações associadas ao luto normal, tanto a nível físico como psicológico, seguem-se as principais.
Sensações físicas
• Dores de cabeça e/ou estômago;
• Alterações do sono – insónia ou, pelo contrário, dormir em excesso;
• Alterações do apetite;
• Sensação de “aperto no peito” e “nó na garganta”;
• Fadiga e falta de energia.
Pensamentos
• Preocupações frequentes sobre o futuro;
• Confusão e dificuldade em tomar decisões;
• Memórias frequentes sobre a pessoa que faleceu;
• Dificuldade de concentração.
Sentimentos
• Tristeza;
• Raiva e zanga;
• Medo;
• Culpa;
• Irritabilidade;
• Sensação de vazio e dor emocional.
Comportamentos
• Choro;
• Isolamento;
• Guardar objetos da pessoa que faleceu;
• Agitação.
O meu luto tornou-se patológico?
Saber quando passamos de um processo normativo para algo patológico, digno da atenção merecida de um especialista pode deixar algumas pessoas confusas. Na verdade, há muitos mitos aqui associados, o que naturalmente leva a interpretações erróneas do que está a acontecer. Tentaremos explicar-lhe da forma mais clara possível.
“A definição de luto patológico envolve subjetividade por parte do profissional que avalia a situação” começa por desenvolver a psicóloga. “No entanto, destaca-se o critério da duração das reações manifestadas.”
Neste caso, quando podemos falar em luto patológico? “Se já passou pelo menos um ano desde a perda e a pessoa relata uma falta de sentindo na sua vida, sendo incapaz de investir em atividades, papéis familiares e profissionais e outras relações” declara a psicóloga, pelo que tudo começa a fazer sentido.
“Fala-se então da duração e da intensidade das reações da pessoa, para identificar um processo de luto patológico que requer intervenção psicológica e médica, pelo que este ocorre “quando há uma interferência significativa na vida da pessoa, tanto a nível afetivo (tristeza persistente) e cognitivo, como comportamental (perda de interesse nas atividades habituais, envolvimento em comportamentos de risco, como forma prejudicial de lidar com o vazio e a dor emocional sentida)” conclui prontamente Sílvia de Almeida Lourenço.
Sinais de alerta para procurar ajuda profissional
“Se as manifestações de luto se prolongarem e provocarem um sofrimento intenso, poderá necessitar da intervenção de um profissional de saúde – por exemplo, um/a psicólogo/a – que o ajude a lidar com a perda e a desenvolver estratégias facilitadoras do processo de luto” revela a psicóloga, pelo que poderá estará atenta aos seguintes sinais:
• Não consegue falar da pessoa que faleceu sem uma dor emocional intensa;
• Não consegue olhar para os objetos do seu ente querido, nem pensar na possibilidade de mudá-los de local;
• Sente-se ansiosa e agitada na maior parte do tempo;
• A sua tristeza não diminui gradualmente, pelo contrário, mantém-se muito intensa ou torna-se mais persistente durante a maior parte dos dias;
• À medida que o tempo passa, continua a não sentir prazer em atividades que anteriormente gostava de realizar;
• Não consegue regressar ao trabalho e/ou assumir as suas tarefas e responsabilidades habituais na vida familiar e profissional;
• Sente-se irritado na maior parte do tempo, o que afeta as suas relações com as outras pessoas;
• Começou a procurar comportamentos nocivos como forma de lidar com o sofrimento – por exemplo, consumo de substâncias, comportamentos agressivos dirigidos a si e/ou aos outros, automedicação e/ou tentativas de suicídio.
Indicações que podem facilitar a vivência deste período
Se está a passar por um processo de luto, há aspetos que a psicologia reconhece que podem auxiliar nesta fase, tais como:
• Compreender que a reação de luto é natural, expectável e faz parte da vida de todas as pessoas;
• Ajudar a assimilar a perda, através da partilha de recordações sobre a pessoa que faleceu com familiares e amigos/as que sejam uma fonte de apoio;
• Identificar a forma como lidou com outras perdas, recorrendo a estratégias que já funcionaram consigo;
• Não comparar a perda com situações de outras pessoas, nem desvalorizar o que sente;
• Evitar que a tendência para o isolamento se prolongue, procurando momentos de convívio com a família, amigos e, se sentir essa necessidade, um grupo de apoio onde poderá encontrar pessoas que vivem situações semelhantes;
• Investir em tarefas de autocuidado: realizar exercícios de respiração e relaxamento, manter uma alimentação equilibrada, praticar pelo menos 30 minutos de exercício físico por dia, tomar uma bebida quente (sem cafeína) antes de ir dormir, escolher uma atividade que goste e incluí-la na rotina diária.
Como apoiar alguém em luto
Ainda que não esteja a passar por esta situação na primeira pessoa, é muito possível que possa vir a ter algum amigo, por exemplo, a vivenciar esta experiência. Podem surgir aqui muitas dúvidas de como atuar: o que dizer/fazer ou, pelo contrário, o que evitar dizer/fazer. Deixamos-lhe algumas pistas:
• Compreenda que o luto é um processo normativo e saudável;
• Saiba reconhecer no outro os vários estádios do luto, agora que já os conhece;
• Valide e incentive a expressão de emoções (não entre em pânico com o choro de alguém, faz parte);
• Evite certos clichés como frases do tipo “Todos vamos morrer um dia”, “És jovem, podes refazer a tua vida”, “O tempo cura tudo”, “O que aconteceu a outra pessoa foi muito pior”;
• Ajude em atividades práticas da vida da pessoa (cozinhar refeições, levar as crianças à escola, tratar de burocracias), é preferível ao “liga se precisares de algo”;
• Oiça com compaixão e em escuta ativa, mais do que aconselhar;
• Evite julgamentos (por exemplo em casos de suicídio);
• Esteja atento aos fatores que possam indicar um luto patológico;
• Simplesmente esteja presente – não se afaste da pessoa perante as suas próprias dificuldades de lidar com a situação;
• Seja paciente.
Por fim, Sílvia de Almeida Lourenço termina a nossa conversa num tom bastante pertinente e reconfortante “à medida que vai vivendo o processo de luto, é relevante que estabeleça objetivos realistas que promovam a sua ligação ao momento presente e aumentem o sentimento de realização pessoal”
Termina referindo-se às pessoas que demonstram culpa e remorsos por começarem a organizar a sua vida, sem a pessoa que faleceu “neste caso, é importante perceber que investir no presente e no futuro não implica anular o passado nem a memória do ente querido. As recordações, os ensinamentos e o papel da pessoa na sua vida irão permanecer, pois o processo de luto implica uma aceitação e integração da perda, enquanto se torna capaz de readquirir significado na sua vida e adaptar-se às mudanças que vive.”
Assim nos despedimos com um sentimento mútuo de dever cumprido.