Honjok: o conceito de viver sozinha, mas sem sentir solidão
Apesar de vivermos num mundo hiperconectado, há cada vez mais pessoas a sentirem-se sozinhas, estejam ou não fisicamente sós. Será que os jovens coreanos, que adotaram o estilo de vida honjok, são o exemplo a seguir?
“A solidão é equivalente a fumar 15 cigarros por dia.” Com uma única frase Noreena Hertz, economista e professora no Institute for Global Prosperity do University College of London, resume os perigos da solidão.
Mas não se pense que é apenas a saúde física e mental que sofre com o isolamento social. Segundo a também autora do livro O Século da Solidão (Temas e Debates), a democracia é outra das grandes afetadas, e os extremismos e populismos são resultado disso.
Nunca estivemos tão conectados como agora, mas também nunca estivemos tão sozinhos. Como sustenta João Ferreira da Silva, psicólogo clínico na Psinove, “estar só e sentir-se só não são a mesma coisa. Podemos sofrer de solidão mesmo estando rodeados de pessoas, ou viver objetivamente sós sem sofrer de solidão”.
Vida sem contacto
“40% da população mundial sente-se só; dois em cada cinco pensionistas britânicos têm a televisão como única companhia; um em cinco millennials admite não ter um único amigo”. Estas são algumas das estatísticas que Noreena Hertz partilha connosco, durante a entrevista via telefone, e que a fazem apelidar o século atual como o da solidão, afetando todas as faixas etárias.
“Já era um problema antes da pandemia, mas claro que foi exacerbado por esta”, diz a professora, que salienta que houve três grupos particularmente afetados: “Desempregados, jovens com menos de 25 anos e mulheres”.
A economista lembra que os confinamentos aceleraram uma tendência que já existia antes da pandemia, a vida contactless (sem contacto). “Mais pessoas começaram a fazer compras online, a assistir a aulas de exercício físico digitais, a encomendar comida… A questão é que esse tipo de vida significa uma existência mais solitária. Sabemos que mesmo uma microinteração de 30 segundos no café faz as pessoas sentirem-se menos sozinhas”.
João Ferreira da Silva é da mesma opinião, “poder fazer ‘tudo’ online pode ser extremamente útil e facilitar a nossa vida. Contudo, deixar de ser um recurso facilitador para ser o único recurso limita-nos o contacto com o mundo exterior, aumenta a tendência ao evitamento experiencial e reduz a probabilidade de surgirem situações de interação social, contribuindo para o isolamento e para o sentimento de solidão. Ir a um supermercado ou a um restaurante pode permitir cruzarmo-nos com alguém que não vemos há muito, matar saudades, partilhar experiências e combinar um encontro. Exercício em grupo permite partilha, entreajuda e reservar tempo para nós fora do ambiente familiar e/ou profissional”.
Acompanhados, mas pouco
Noreena Hertz aponta 2011 como o ano em que tudo se agravou. “Sabemos que a solidão, a depressão e a ansiedade nos adolescentes aumentou significativamente nesse ano, altura em que os smartphones e as redes sociais despontaram. Podia ser coincidência, mas há investigações que mostram que não é”.
Na Universidade de Stanford, nos Estados Unidos da América, um estudo dividiu os alunos em dois grupos: um continuou a usar Facebook e outro não. “Resultado, os que deixaram a rede social disseram terem-se sentido significativamente menos sozinhos e mais felizes”, revela a economista.
Durante as suas pesquisas, a professora ouviu relatos de vários adolescentes que se queixaram de “quão dolorosa era para eles a partilha de um post no Instagram e ninguém gostar; diziam sentir-se invisíveis. Outros sentiam-se sós quando viam os amigos a divertirem-se sem eles”.
Mas este não é um sentimento exclusivo dos mais jovens, avisa a economista, “também os adultos, ao olhar para as redes sociais, sentem que as outras pessoas se divertem mais e têm mais amigos. Por outro lado, no Reino Unido, um terço das mulheres, dos 18 aos 34 anos, já sofreu de bullying pelo Facebook e esse facto também faz com que se sintam mais sozinhas”.
“Outros estudos mostram que, quando os casais se sentam à mesa com o smartphone, mesmo que este esteja desligado, sentem-se menos conectados um com o outro e não há nada mais solitário do que sentir-se sozinho rodeado de pessoas”, explica.
Saúde física e mental
“Os nossos corpos não foram desenhados para estarmos sozinhos de forma permanente, somos criaturas feitas para socializar”, avisa Noreena Hertz. E a explicação para isso é simples: “Sentirmo-nos sozinhos faz com que o nosso corpo fique num estado de alerta contínuo, provocando um aumento da pressão arterial, tal como os níveis de cortisol e stresse. Se nos mantivermos nesse estado de alarme por grandes períodos, é inacreditavelmente mau para a nossa saúde”, garante a economista.
Por um lado, as pessoas mais sozinhas têm maior tendência para a depressão e ansiedade; por outro, como sublinha a professora universitária, a probabilidade de ter um ataque cardíaco é 30% mais elevada, de ter demência, 64%, e de AVC, 24%.
“Estudos indicam existir um maior risco de doenças cardiovasculares, hipertensão, diminuição do sistema imunitário, tornando-nos mais sensíveis às doenças mais comuns, acentuando os processos inflamatórios e diminuindo a capacidade de combater infeções, estando associado a obesidade, hábitos tabágicos e alcoolismo. Em suma, o resultado é a perda de qualidade de vida e a diminuição da esperança média de vida”, confirma o psicólogo.
Perigo para a democracia
Durante a sua pesquisa, Noreena Hertz também quis compreender porque é que as pessoas estavam a votar em políticos extremistas, uma tendência transversal no mundo, e concluiu que a solidão tem a sua quota-parte de culpa.
“A sensação de não ter amigos, de não ter um apoio e de se sentirem esquecidos e invisíveis na sociedade faz com que se voltem para políticos populistas, como Donald Trump ou Le Pen, cuja retórica passa muito por algo como ‘nós estamos aqui para olhar e cuidar de vocês que se sentem marginalizados pela sociedade e pelos governos’”, salienta a professora universitária.
João Ferreira da Silva refere que “quem sofre de solidão pode, com maior facilidade, apresentar-se desconfiado, com medo, tenso, fantasioso, radical, autossuficiente e dominador, com um claro défice ao nível do sentimento de pertença”.
“A solidão também altera a forma como percecionamos o mundo que nos rodeia, sendo percebido como um lugar mais ameaçador e hostil. Desta forma, pode existir uma maior sensibilidade a determinados tipos de informação que confirmem a sua situação de isolamento e que permita uma identificação e uma solução para os seus problemas, mesmo que isso implique opiniões e reações mais radicais”, esclarece o psicólogo clínico.
Encontrar soluções
Será a solidão um sentimento ou um medo? “É um sentimento com manifestações físicas, mas todos temos medo de ficar sozinhos. Uma pesquisa feita na Alemanha, no início da pandemia, sobre o que mais preocupava os cidadãos, mostrou que as pessoas revelavam ter mais medo da solidão do que de apanhar covid- 19”, responde Noreena Hertz.
João Ferreira da Silva recorda que “a solidão, embora desagradável e angustiante, é parte integrante da nossa existência, tal como a alegria ou a tristeza. Em determinados momentos da nossa vida iremos sentirmo-nos sós e isso é inevitável. O que fazemos com a solidão é determinante para voltarmos a estabelecer o contacto com as nossas relações sociais relevantes. Se a utilizarmos como fator motivador para encontrar soluções para o nosso problema, o impacto será menor. Por outro lado, se não agirmos ou agirmos de forma errada, podemos estar a agravar a nossa situação”. O psicólogo aconselha a “alimentar e a fortalecer as suas relações, combinar eventos com amigos com os quais não contacta há muito tempo, praticar meditação mindfulness, fazer exercício físico, envolver-se com a comunidade através de voluntariado ou movimentos de associativismo, manter hobbies significativos e utilizar a Internet com moderação”.
Modo de vida honjok
Existem alguns fatores relacionados com a personalidade que podem contribuir para o impacto da solidão, tais como “uma baixa autoestima, hipersensibilidade, dificuldades de afirmação, ansiedade e timidez”, alerta João Ferreira da Silva.
O mesmo acontece com “os afetos negativos como a depressão, a falta de esperança, o tédio, a raiva e a agressividade, o stresse, a inquietação e a tensão” e com “os problemas relacionais, destacando-se a falta de um sentimento de pertença, dificuldades na comunicação, distanciamento ou rejeição social”.
Estarmos bem connosco próprios é o primeiro passo para não sentir solidão. Olhemos, por isso, para a Coreia do Sul, onde o número de agregados de uma só pessoa ronda os 32% e onde está a crescer uma tendência que pode ajudar as pessoas que vivem sozinhas a desfrutar disso mesmo, sem sentimentos de solidão.
Falamos do honjok, que significa ‘tribo de uma só pessoa’ e que, como nos diz Francie Healey, consultora de saúde e bem-estar e autora do livro Honjok – A Arte de Viver Bem Sozinho (Pergaminho), “descreve aquelas pessoas que optam por desenvolver atividades a sós e aproveitam a sua independência, mesmo tendo de ir contra os valores sociais coletivistas sul-coreanos e não cedendo à pressão para se casar e constituir família”.
Para Francie Healey, este conceito ensina-nos que “é possível sentirmo-nos confortáveis connosco próprios, ajuda-nos a descobrir o que nos alimenta e nos revigoriza, o que somos fora dos valores inerentes à nossa cultura e dá-nos a oportunidade de sermos realmente tal como somos”.
Trabalhar o medo
Os honjok que a consultora de saúde e bem-estar entrevistou revelaram-lhe que esse desfrutar de estar só também trouxe benefícios para as relações com os outros, “tornando-as mais profundas e autênticas. Mesmo quem foi atirado para esta situação pelas circunstâncias da vida vê isso como um presente. Apesar de viverem sozinhos, sentem-se conectados e preenchidos”.
Como vimos atrás, a solidão tem vindo a aumentar, por isso, Francie Healey garante que este estilo de vida coreano “pode servir de exemplo e levar as pessoas a trabalharem o medo de estar sozinhas. Desta forma, quando momentos negativos surgem – como a pandemia –, terão capacidade para estarem consigo próprias”.
“Nós podemos ser a nossa melhor companhia, o nosso melhor amigo. É preciso coragem, mas, depois, renasce-se e sente-se uma confiança ímpar.”
Para começar a adotar e a desfrutar deste estilo de vida e da sua companhia, Francie Healey aconselha a que se comece por fazer coisas sozinho, como “dar um passeio a pé e a deixar o telefone em casa, passar algum tempo num café, mais uma vez sem telemóvel, assistir a um espetáculo ou evento desportivo, fazer um retiro, viajar ou desfrutar da Natureza”.