Parafraseando o que escreveu George Orwell, no seu clássico O Triunfo dos Porcos, a propósito da (des)igualdade entre os homens, poderíamos dizer, a propósito da comunicação humana e do objectivo desta crónica, que todas as palavras têm carga, mas umas têm mais carga do que outras.
Felicidade, por exemplo. Numa só palavra cabem todas as esperanças, as fantasias, os desejos, as aspirações, as realizações que alguém possa conceber para si próprio. E toda a gente, com a mesma palavra, se refere e evoca coisas muito diferentes.
Cada um carrega a “felicidade” das suas próprias atribuições, sentidos, e significados. E assim, a mesma palavra, conhecida igualmente por todos, representa para cada um uma grande variedade de significados, imagens e ideias particulares e subjectivas. Mas se dissermos “tijolo”, por exemplo, já deixamos menos espaço a atribuições subjectivas.
“Felicidade” é uma palavra muito mais carregada, neste sentido, por significar coisas totalmente diferentes para diferentes pessoas.”Tijolo”, por seu lado, dá menos azo a dúvidas e confusões, por ter um significado, por assim dizer, mais consensual, inequívoco e mais partilhado universalmente por todos os falantes da mesma língua.
Quando digo “felicidade”, pode ser tão claro e evidente para mim o que quero dizer, que posso ignorar o facto de que para outras pessoas a mesma palavra possa significar outras coisas. E assumir, quando me refiro a “felicidade”, que os outros pensam naquilo em que eu penso, que desejam o mesmo que eu, que aquilo que é felicidade para os outros é mais ou menos o mesmo que é para mim.
E uma das palavras mais carregadas, para aquilo que aqui nos interessa – e por ser o tema, o objectivo ou o pretexto desta crónica e das seguintes -, é “Astrologia”, outro saco sem fundo em que cada um enfia, sem questionar, aquilo que acredita ou julga saber. É interessante observar como toda a gente assume que sabe do que está a falar, mesmo que nunca a tenha estudado ou tido uma abordagem minimamente séria ao assunto.
É como querer falar de Medicina e as pessoas falarem indistintamente do Sistema Nacional de Saúde, dos efeitos secundários ou do custo da medicação. Dos lobbies da indústria farmacêutica, do médico novo que chegou ao posto médico da nossa aldeia, das mezinhas que a nossa bisavó fazia com azeite e folhas de louro, das listas de espera nos hospitais, da greve de obstetras ou anestesistas, ou de como a tia Mariquinhas podia ter sido salva se houvesse um helicóptero a funcionar no serviço de urgências.
Quero dizer, cada pessoa fala naturalmente a partir do seu próprio conhecimento, da sua própria experiência, dos seus próprios horizontes e da dimensão relativa do seu próprio mundo. Mas – sejamos rigorosos – dificilmente alguma dessas coisas tem a ver, especifica e estritamente, com Medicina, embora lhe sejam, por assim dizer, satélites e a tocarem na periferia.
O irónico – e sintomático – é que é mais fácil, e provável, sermos capazes de reconhecer que não sabemos nada de Medicina (a não ser que sejamos médicos, enfermeiros profissionais de saúde ou autodidatas treinados e formados no assunto) do que reconhecermos que talvez não saibamos bem do que estamos a falar, quando nos apressamos a emitir opiniões e a tomar posições. Estas últimas, tipicamente tão mais apaixonadas e intensas quanto maior o tamanho da própria ignorância sobre o assunto. É que nem sequer ir ao médico, por muitas vezes que se vá, qualifica alguém para trabalhar em saúde, fazer diagnósticos ou tratamentos, ou ter conhecimentos suficientes para falar de Medicina.
Mas com a Astrologia não é assim, de Astrologia toda a gente sabe. Toda a gente parece saber do que se trata e toda a gente tem opinião – mesmo que não saiba realmente nada sobre o assunto. Mesmo que esteja apenas a tomar como verdade as suas próprias crenças sobre o assunto. Mesmo que esteja a confundir a realidade do assunto com o conhecimento que se tem sobre o assunto, ou simplesmente, a confundir o facto de saber que existe uma coisa chamada Astrologia com saber o que a Astrologia é.
Falemos de Astrologia com um leigo e ele possivelmente pensará em signos, compatibilidades, descrições da personalidade, cartas de tarot, linhas das mãos, previsões de acontecimentos e feiras esotéricas. Provavelmente não pensará em orbes, decanatos, harmónicas, regências ou dispositores, Kepler, Platão, física quântica, energia, arquétipos, ou Jung.
Por isso seria bom, se queremos vir a falar sobre um assunto, esclarecer à partida do que estamos a falar. E dificilmente estaremos a falar do mesmo, a não ser que o clarifiquemos primeiro. É o que imaginamos, desejamos e planeamos vir a fazer ao longo das próximas crónicas. O que é que a Astrologia poderá ter a ver, afinal, com tijolos e com a felicidade?
Uma coisa é certa: possivelmente teremos ideias diferentes sobre o assunto. É por isso que é tão bom e valioso podermos esclarecer termos, e a partir daí. comunicar.
nUno Michaels é conselheiro astrológico certificado pela ISAR (International Society for Astrological Research) com 20 anos de experiência e prática. Terapeuta, educador, autor e palestrante, com formação em Ciências da Comunicação, Psicologia Clínica e um longo percurso por diversas áreas e abordagens terapêuticas. Mais sobre o seu trabalho e percurso no blogue A Astrologia da Escolha Iluminada. Pode ser contactado através deste e-mail.