O conto da menina que se veste de vermelho e seduz um lobo mau é, para mim, indissociável do signo de Escorpião, o signo da paixão, do desejo e do controle (de si e do outro), mas também da morte, da transformação e de tudo o que é secreto.
A versão mais antiga que chegou até nós, O Conto da Avó, vem directamente da tradição oral e começa como todos nós conhecemos, com a menina que vai visitar a sua avó. No entanto, esta menina não tem ainda o atributo que a caracteriza hoje em dia, o seu capuchinho vermelho, oferecido pela avó.
O pormenor do capuchinho (ou capinha, ou chapelinho) vermelho é-lhe acrescentado por Charles Perrault e vem esconder uma parte importante da narrativa original.
O processo de transformação da menina em mulher, que veremos mais adiante e que é a razão de ser do conto na sua versão da tradição oral, é eliminado por Perrault para tornar a sua versão do conto mais adequada aos salões parisienses da corte de Luís XIV.
Sendo o vermelho uma cor conotada com a sexualidade, o sangue e o pecado e associada a Marte, o planeta da sexualidade, da afirmação e da agressividade, este pormenor acrescenta à protagonista, desde o início da história, uma condição de jovem mulher (menstruada), que já perdeu a inocência da infância e que carrega consigo o potencial de culpa do pecado original, que carregam todas as mulheres (sim, ainda hoje), sem no entanto confrontar o público com esse “desagradável” processo no decorrer da narrativa.
O Capuchinho Vermelho
N’O Conto da Avó a menina encontra o lobo (nalgumas versões, um lobisomem, noutras uma ogre) que lhe pergunta aonde vai. Apesar deste encontro já iniciar um ambiente de tensão, ainda não há clima sexual nem de confronto. Mas tanto n’O Capuchinho Vermelho de Perrault como no dos irmãos Grimm a sedução começa aqui.
A menina, já vimos que não tão menina assim, não só revela ao lobo onde mora a avó, como ainda se alonga no seu passeio e permite que ele chegue a casa da velhota antes dela, acrescentando assim mais umas gramas de culpa ao fardo que ela carrega desde o início da história pelo simples facto de já ser mulher.
No inconsciente colectivo, o lobo que se atravessa no caminho da menina simboliza a nossa natureza selvagem, instintiva e impulsiva, regida por Marte, e também o que nos assusta e mete medo, o que está escondido na sombra e que não controlamos, regido por Plutão, os dois planetas com afinidade com Escorpião.
O lobo é assim tudo o que guardamos na casa 8, a casa das crises e ligada ao mesmo signo, onde escondemos as nossas pulsões, os instintos e os desejos, que poderemos eventualmente sublimar.
Com a chegada do lobo a casa da avó, a versão oral da narrativa entra num território definitivamente escorpiónico, não aconselhado a espíritos mais sensíveis.
O lobo devora a avó e guarda um pedaço da sua carne na despensa e algum do seu sangue numa garrafa. Quando a menina chega, o lobo, fingindo ser a velhinha, oferece-lhe carne e vinho, que ela ingenuamente aceita.
Apesar de mórbido e repugnante — proibido, inaceitável e muito plutónico –, este é o momento em que se dá a transformação da menina em mulher, aquele que Charles Perrault anulou na sua reinterpretação e que os irmãos Grimm mantiveram omisso.
É a passagem de testemunho de uma geração para a outra. A avó passa a sua sabedoria feminina à jovem neta e cede-lhe o seu lugar no círculo de Eva, Afrodite e Perséfone.
Neste acto tão relevante está implícita a simbologia mais profunda de Escorpião: é necessário deixar morrer o que está moribundo para que algo novo, fresco e renovado possa nascer no seu lugar.
E é precisamente esta transformação que é anulada por Charles Perrault e pelos irmãos Grimm, assumindo eles também um papel plutónico ao higienizar o conto, aniquilando aquilo que lhes é inconveniente e inadequado.
A tensão sexual, tão característica de Escorpião, começa a intensificar-se quando o lobo, ainda travestido de avozinha, convida a jovem a deitar-se com ele e ela lhe oferece um momento carregado de erotismo, numa cena que é praticamente uma sessão de striptease: a jovem tira o avental e pergunta ao lobo onde o põe, ele responde “Deita-o para a lareira, que já não vais precisar dele”; tira o corpete e pergunta a mesma coisa e o lobo responde “Deita-o para a lareira, que já não vais precisar dele”, e esta conversa repete-se com cada uma das peças de roupa.
Depois deste diálogo carregado de sensualidade, a rapariga entra na cama e segue-se a famosa conversa que acaba com a frase “É para te comer melhor!”
Este ponto é o auge da narrativa, que atinge um ambiente intenso e cheio de energia sexual controlada, velada e não assumida. Mas o lobo, querendo ou não, está prestes a perder o controle dos seus impulsos violentos e primitivos e neste momento da história a menina/mulher é chamada a confrontar o seu Marte oculto, escorpiónico, os seus próprios desejos e instintos sexuais projectados no lobo.
Nas versões de Perrault e dos Grimm, Capuchinho Vermelho é subjugada e dominada (engolida) por ele(s).
No conto de Charles Perrault a narrativa acaba aqui e ele acrescenta ainda uma moral na qual avisa as meninas a não darem ouvidos a estranhos, deixando clara a culpa da jovem em tudo o que aconteceu sem lhe dar oportunidade de redenção nem salvação.
Os irmãos Grimm, autores da versão mais conhecida hoje em dia, introduzem aqui uma nova personagem, o caçador, que aparece, de forma um pouco artificial, mesmo no fim da história apenas para resgatar as mulheres da barriga do lobo, incapazes que são as duas de se defender.
Mas, n’O Conto da Avó, quando chega o momento “Para te comer melhor!”, a jovem percebe que afinal não é com a sua avó que está deitada e para escapar usa a mesma estratégia que o lobo usou para a trazer até aqui, a manipulação.
Ela diz ao lobo que precisa de se aliviar e que tem de ir lá fora. Primeiro o lobo nega-lhe o pedido, mas ela insiste. O lobo ata-lhe um fio ao pé para que ela não fuja, mas ela ata o fio a uma ameixoeira e evade-se assim ao seu controlo, fugindo de volta para casa.
Esta versão reconhece na jovem a capacidade de perceber que ainda não está preparada para este momento e dá-lhe a possibilidade de decidir sobre o seu destino. É ela que, sozinha, corta a situação por ali, revelando-se autónoma e independente, sem necessidade de um homem que a salve, nem ficando à mercê de instintos ou desejos alheios.
Objecto de muitas versões e adaptações, esta é uma história que ensina as jovens a lidar com o lado escorpiónico da vida, a sexualidade, o desejo e o controle, os processos de morte e renascimento e o poder intenso e profundo que toda esta energia carrega consigo.
A minha versão preferida e, quanto a mim, a mais integradora deste tema é o conto A Companhia dos Lobos, de Angela Carter, publicado juntamente com outros contos em 1979.
Nesta história, a protagonista seduz o lobo sem medos e entrega-se conscientemente a ele, apropriando-se do seu desejo e assumindo o seu próprio lado selvagem, a sua sexualidade. O conto acaba com esta frase: “Vejam! Doce e segura ela dorme na cama da avó, entre as patas do seu terno lobo.”
Bárbara Bonvalot começou a estudar Astrologia em 2005 e inicia o seu percurso como astróloga profissional em 2009. Actualmente é consultora e formadora de Astrologia, membro da AFAN (Association for Astrological Networking) e da ASPAS (Associação Portuguesa de Astrologia). Entende a Astrologia como uma linguagem que nos leva a um conhecimento profundo de nós mesmos, dos outros e da própria vida.