Bem-estar

Costuma sonhar acordada? Pode tratar-se de um assunto mais sério

Sabia que há quem passe os dias a fantasiar de olhos abertos e a viver uma vida paralela envolta nesses sonhos? Este problema chama-se maladaptive daydreaming e influencia todos os aspetos da vida de quem dele sofre.

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Costuma sonhar acordada? Pode tratar-se de um assunto mais sério Costuma sonhar acordada? Pode tratar-se de um assunto mais sério
© pexels
Rita Caetano
Escrito por
Fev. 23, 2023

Quem nunca sonhou acordado? Se fizermos esta pergunta numa sala cheia de gente, dificilmente alguém não levantará o braço, até porque se estima que 90% da população mundial o faça diariamente.

O problema é quando uma vida paralela, fruto da imaginação, se sobrepõe à vida real. É desta forma que vive quem sofre da condição maladaptive daydreaming (devaneios excessivos, em tradução literal), identificada pela primeira vez há 20 anos por Eli Somer, psicólogo clínico e investigador na Universidade de Haifa, em Israel.

Definiu-a como “uma atividade de fantasia extensa que substitui a interação humana e/ou interfere no funcionamento académico, interpessoal ou vocacional” e chamou a atenção para o facto de tal comportamento ter sido, até então, associado a outros distúrbios.

Hoje, apesar de ainda não ser uma condição reconhecida pelo DSM (Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais), já há profissionais de saúde que a identificam em consulta.

Um aspeto importante para o investigador israelita é diferenciá-la da esquizofrenia. Quem sonha acordado consegue quase sempre distinguir a realidade da fantasia, apesar da intensidade desta última; já quem é esquizofrénico não é capaz de o fazer.

Dependendo da intensidade do sonho, [maladaptive daydreaming] pode ter um grande impacto nas atividades diárias e nos relacionamentos – Catarina Lucas, psicóloga

Alheios ao mundo

“Não existe tradução clínica para português porque o conceito ainda não é reconhecido como uma condição alvo de diagnóstico. Contudo, poderíamos dizer que o maladaptive daydreaming diz respeito ao comportamento de ‘sonhar acordado’, de nos ‘perdermos nos próprios pensamentos’. Contudo, neste caso, estes episódios, além de serem mais frequentes do que aquilo que acontece habitualmente com qualquer pessoa, tendem a ser intensos ou até perturbadores. É comum a pessoa alhear-se daquilo que estava a fazer, da pessoa com quem está ou de alguma tarefa em concreto”, explica Catarina Lucas, psicóloga.

“Sonhar acordado de forma muito intensa e muito real, por vezes, com enredos e cenários; dificuldade em manter o foco e a concentração devido a este comportamento de sonhar acordado; dificuldades ao nível do sono; vontade de alimentar o sonho”, como refere a psicóloga, é o comportamento típico de quem sofre deste problema.

Posto isto, não é de estranhar que tenha implicações em todas as áreas da vida. “Por vezes, dependendo da intensidade do sonho, pode ter um grande impacto nas atividades diárias e nos relacionamentos. Pode ocorrer quebra de produtividade, causada pelo tempo gasto nestes sonhos, e também uma perturbação nas relações sociais devido a este comportamento de alheamento”, acrescenta.

Como em todas as condições psicológicas/psiquiátricas, há alguma vulnerabilidade biológica ou psicológica que predispõe a pessoa ao desenvolvimento do quadro – Catarina Lucas, psicóloga

Sinais a ter em atenção

Apesar de ainda não ser um distúrbio inscrito no Manual de Diagnóstico, há alguns sintomas comuns a quem sofre de maladaptive daydreaming:

1. Devaneios com intensa sensação de imersão, incluindo aspetos visuais, auditivos ou afetivos;
2. Sonhos, durante o período de vigília, acionados, mantidos ou aperfeiçoados pela música ou por movimentos repetitivos (andar, balançar, movimentos das mãos…);
3. Devaneios acompanhados por ruídos vocais ou expressões faciais (sussurros, risos, proferir palavras…);
4. Sonhar acordado quando se está angustiado ou entediado e desejo de sonhar acordado ao levantar-se;
5. A imersão e a duração do sonho intensificam-se quando se está sozinho;
6. Sentimentos de irritação quando se é interrompido ou incapaz de sonhar acordado;
7. Angústia quando não se consegue encontrar tempo para sonhar acordado;
8. Preferir sonhar acordado do que fazer tarefas domésticas, académicas ou profissionais e socializar;
9. Fazer esforços repetidos para controlar ou parar os seus devaneios.

Fonte: adaptado de maladaptivedaydreamingcenter.org.
maladaptive daydreaming

Enfrentar traumas

Não se sabe ainda qual é a causa do maladaptive daydreaming, porém, como diz Catarina Lucas, “esta condição pode surgir como uma estratégia de coping [ações, comportamentos ou pensamentos usados para contornar um fator desencadeador de uma situação stressante] para lidar com o trauma. Pode ainda surgir como sintoma de outras condições e é, por isso, importante ser muito cuidadoso na avaliação da situação”.

Haverá pessoas mais suscetíveis do que outras a ter este distúrbio? “Como em todas as condições psicológicas/psiquiátricas, há alguma vulnerabilidade biológica ou psicológica que predispõe a pessoa ao desenvolvimento do quadro. Contudo, parece ser mais comum em pessoas com sintomas de ansiedade ou depressão”, esclarece a psicóloga.

Nas suas pesquisas, Eli Somer alerta também para o facto de muitas pessoas com devaneios excessivos terem um histórico de abuso ou trauma, especialmente durante a infância.

Só ou acompanhado

Catarina Lucas diz que o maladaptive daydreaming é uma condição pouco habitual, pelo menos de forma isolada, ou seja, sintomas semelhantes podem surgir noutras condições como POC (perturbação obsessiva compulsiva) ou PHDA (perturbação de hiperatividade/défice de atenção).

Na sua prática clínica, acompanhou um caso destes, associado “a um transtorno de hiperatividade e défice de atenção”.

Como já dissemos, esta é uma condição que ainda não integra o DSM, por isso “não é possível realizar um diagnóstico isolado”, esclarece a psicóloga, que acrescenta ser “importante ter em conta se o problema não poderá ser sintoma de uma perturbação mental e não uma condição isolada”.

O tratamento “poderá passar pela conciliação de psicoterapia e terapia medicamentosa. É importante atuar no sintoma, mas compreender também a causa e mecanismos de funcionamento da pessoa. Melhorar padrões de sono e reduzir o stresse também poderão ajudar”, indica Catarina Lucas.

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