O mundo digital pode estar a manipular-nos o cérebro. Descubra como contornar isto
A constante exposição aos dispositivos tecnológicos está a reprogramar os nossos cérebros e, à medida que nos tornamos sedentos de recompensas imediatas, a nossa capacidade de atenção e de raciocínio diminui, levando-nos a viver envoltos numa espécie de anestesia mental.
Vivemos num mundo em que tudo está à distância de um clique, e quando dizemos tudo é mesmo quase tudo, desde os mais variados bens e serviços, passando pela comida e até o amor. E, se é verdade que isso nos tem facilitado muito a vida em tempos de pandemia, não podemos ignorar o impacto negativo que tem no nosso cérebro, cada vez mais sedento de gratificações imediatas e com níveis de atenção muito baixos, algo transversal a todas as faixas etárias, como demonstram vários estudos científicos.
Podemos não conseguir viver sem dispositivos tecnológicos, mas podemos alterar a forma como os utilizamos e isso passa por usá-los com mais inteligência, começando por escolher melhor os conteúdos que seguimos, que não nos devem causar pressão ou colocar-nos num patamar de comparação, e ter momentos livres de tecnologia, tal como nos disseram em entrevista David Perlumutter, neurologista, Austin Perlmutter, médico de Medicina Interna, e Filipa Jardim da Silva, psicóloga e coach. O nosso cérebro agradece.
Pensamento dirigido
Para um grande número de pessoas, o dia começa e acaba com o telemóvel na mão, ou seja, é o primeiro gesto da manhã e o último da noite e, entre ambos, há um largo de número horas em que pouco mais se faz do que olhar para ele ou para outro dispositivo eletrónico.
Será isto saudável? David e Austin Perlmutter respondem com um categórico “não!” e, por isso, têm despendido muito tempo a investigar esta temática, tendo concluído que o nosso cérebro está a ser manipulado pelo uso desregrado de tecnologia.
Gratificações imediatas
Tudo isto faz com que o cérebro, em vez de ter uma perspetiva do todo e seja capaz de tomar decisões ponderadas, passe a estar focado apenas em obter uma gratificação imediata, o que nos leva a gastar tempo e dinheiro em coisas que nos dão uma felicidade efémera.
É verdade, como dizem os dois médicos norte-americanos, que “o cérebro tem uma predisposição natural para escolher recompensas menores de curto prazo em vez de recompensas maiores de longo prazo. Com a disponibilidade generalizada da gratificação instantânea na nossa comida, relacionamentos, entretenimento e compras online, isto parece ter piorado”. Portanto, a questão “não é tanto escolher recompensas instantâneas constantemente, mas que estas vão prejudicar a nossa saúde física e mental.
Quando comemos fast food, compramos coisas de que não precisamos e passamos os dias a interagir com os media sem qualquer sentido, em vez de perseguirmos objetivos a longo prazo, acabamos muito pior”, realçam David e Austin Perlmutter. Consequentemente, tornamo-nos mais impulsivos, receosos, ansiosos, tristes e temos a sensação de que há sempre qualquer coisa que nos falta.
Continuamos seres sociais
A intolerância ao desconforto e à frustração faz com que a capacidade de esperar se perca. Filipa Jardim da Silva garante que isto acontece quando estamos online, mas também na vida ‘real’ e isso é visível, exemplifica, “nas interações que temos com os outros.
Quem nunca reparou que, quando estamos numa fila, sala de espera ou paragem de autocarro, estamos de olhos pregados no telemóvel, desligados de tudo à nossa volta, como se a observação do que nos rodeia fosse uma perda de tempo?”.
No entanto, refere a psicóloga, “não nos podemos esquecer de que somos seres sociais e que a nossa empatia e competências sociais vão-se modelando por interação com outros humanos, e é aqui que entram os neurónios-espelho.
Quando dizemos que somos a soma das cinco ou seis pessoas com quem mais estamos, isso tem a ver com essa estrutura de modelagem. Portanto, se quem está mais tempo connosco é um ecrã e se aquilo que recebemos ao longo do dia são estímulos virtuais, então, necessariamente, há todo um aparelho empático e social que não é desenvolvido, tal como corpo vai ficando cada vez mais desligado e vamos perdendo os sentidos, o que se repercute nas nossas capacidades emocionais e cognitivas (processamento da informação, qualidade da atenção, entre outras)”.
Filipa Jardim da Silva recorda ainda que investigações científicas mostram que o nível de satisfação com uma interação social virtual com uma pessoa de quem gostamos é menor do que uma interação in loco. “Conseguimos interações satisfatórias e diminuímos as distâncias através do ecrã, mas não é suposto substituirmos completamente a interação com o mundo real”.
A pandemia veio aumentar o nosso tempo de ecrã e obriga-nos a essas interações à distância, o que leva a psicóloga a alertar para as consequências: “Quando acabar, não se vai conseguir carregar simplesmente num botão on/off . À medida que a pandemia se vai esbatendo, temos de retomar as interações presenciais”.
Uma questão de likes
Convém não esquecer também outro fenómeno: a obsessão com o número de likes e seguidores. O documentário da HBO Fake Famous mostra isso na perfeição, tal como torna visível o facto de a maior parte do mundo online ser muito mais fabricado do que imaginamos. Para o demonstrar, fez com que três pessoas anónimas fossem transformadas em influenciadores famosos. As suas histórias espelham o mundo efémero da influência digital e as realidades de um estilo de vida baseado, em grande parte, em fantasia.
“A nossa identidade, desde que vivemos na era das redes sociais, mudou um pouco, já passámos pela etapa ‘sou aquilo que tenho’, ‘sou aquilo que faço’, ‘sou o que mostro ser’ e, neste momento, estamos na dimensão ‘sou o número de gostos, comentários e seguidores que tenho’ e isto tem impacto”, avisa a psicóloga.
“Se ouvirmos as conversas de adolescentes, percebemos que esse conceito está enraizado na identificação e que escolhem amizades em função disso. Mas até a nível profissional há pessoas em todas as áreas que são escolhidas por terem mais seguidores nas redes sociais e isso acarreta muitos riscos”, continua Filipa Jardim da Silva.
“Parece que as pessoas são qualquer coisa apenas em função dos tais dados e passam a viver naquela esfera repleta de filtros, confundindo a realidade à medida que vão procurando a perfeição, a fama e a felicidade. Se isso acontece com um cérebro adulto, que tem bastante maturidade e capacidade crítica, muito mais sucederá com um jovem”.
A pergunta para a qual ainda não há resposta é o tempo que devemos despender com os dispositivos eletrónicos
Limpeza cerebral
É por tudo o que já foi dito atrás que David e Austin Perlmutter acham que é fundamental fazer uma “limpeza cerebral” e foram essas duas palavras que escolheram para título do livro que escreveram sobre a temática, publicado recentemente pela Lua de Papel, em Portugal.
“Hoje em dia, os nossos cérebros estão constantemente sujeitos a um fluxo de informação destrutiva. Essa informação pode ser sob a forma de alimentos insalubres, inflamatórios ou demasiada exposição sem sentido a meios digitais. Além disso, a nossa falta de sono restaurativo e os nossos estilos de vida, em grande parte sedentários, podem comprometer ainda mais a nossa função cerebral. A limpeza cerebral passa, primeiro, por compreender estas influências negativas e, depois, por limpar e repor física e psicologicamente a função cerebral para melhor”, explicam.
Filipa Jardim da Silva assegura que o primeiro passo a dar é ter consciência do tempo que se está à frente dos ecrãs. A pergunta para a qual ainda não há resposta é o tempo que devemos despender com os dispositivos eletrónicos, por isso, o neurologista e o médico de Medicina Interna garantem que “o mais importante é certificar-se de que está a usá-los em seu próprio benefício e não está a perder a sua saúde e felicidade por causa deles.
Em geral, é uma boa ideia limitar o seu uso logo de manhã e nas horas antes de dormir. Já durante o dia, substitua alguns desses momentos por um passeio pela Natureza, meditação, exercício físico ou apenas passar tempo com um amigo ou familiar”. A psicóloga e coach aconselha a “desligar algumas notificações para que não se sinta continuadamente assoberbada por mais estímulos, o que tem um impacto nefasto na produtividade, e que os troque, por exemplo, por um livro nos tempos livres”.