Educação para a igualdade de género. É de pequenino que se começa

Se a educação para a igualdade de género for implementada às crianças, teremos uma sociedade mais igualitária. Simples? Sim, mas os estereótipos enraizados continuam a dificultar esta tarefa.

Por Set. 6. 2018

Um estudo realizado por James K. Rilling, do Centro de Neurociências Sociais Translacionais da Universidade Emory, concluiu que os pais (homens) tendem a interagir de forma diferente com filhos e filhas. Se, com os primeiros, se envolvem mais nas brincadeiras, com as filhas, têm respostas mais emocionais e chegam a cantar.

Além disso, educam os filhos para serem mais competitivos e as filhas mais empáticas. Será mesmo assim? Será uma coisa só dos pais ou as mães também o fazem? Será que é aí que começa a desigualdade de género? Fomos à procura destas e de outras respostas com a ajuda de Sandra Helena, psicóloga clínica e psicoterapeuta infantojuvenil na Psinove; Paula Cosme Pinto, consultora de comunicação, feminista e autora do blogue do Expresso A vida em saltos altos; Ângelo Fernandes, fundador da Quebrar o Silêncio, organização que apoia homens sobreviventes de abuso sexual e promove a igualdade de género; e Mónica Carneiro, que lidera o movimento HeForShe (Movimento das Mulheres da ONU pela igualdade de género) no Porto.

Educação para a igualdade de género: azul ou cor de rosa?

A igualdade de género tem de começar no berço, mas a verdade é outra. “A educação das crianças ainda é muito estereotipada, não permitindo à criança o desenvolvimento de um sentimento igualitário de género”, começa por dizer Sandra Helena.

Os pais têm uma grande influência na criação do estereótipo de géneros nos miúdos desde pequeninos

E isto, como diz Ângelo Fernandes, tem início “mal os pais sabem que estão ‘grávidos’ e começam a comprar coisas cor-de-rosa para as meninas e azuis para os meninos. Não tem mal nenhum associar as cores a cada sexo; o problema começa quando um menino quer vestir cor-de-rosa e não lhe é permitido ou uma menina quer vestir azul e não pode”.

Opinião semelhante tem Paula Cosme Pinto, que defende que “os pais têm uma grande influência na criação do estereótipo de géneros nos miúdos desde pequeninos”. Isto porque “as marcas sociais e culturais estão muito presentes de modo discriminatório no que concerne às pessoas de género masculino e feminino. A existência de alguns movimentos educativos, com o objetivo de se acabar com estas atitudes quase cristalizadas de diferença, permite que se pense e reflita acerca desta questão. No entanto, na prática, as crianças estão rodeadas de contextos que alimentam estes estereótipos”, acrescenta a psicóloga.

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Comportamentos esses que perpetuam “a continuidade de desigualdade de direitos. No mundo profissional destas crianças perdurarão as dificuldades e disparidades salariais. No seio familiar, na constituição da sua própria família, existirão diferenças, nomeadamente a exacerbada soma de funções da mulher”, esclarece Sandra Helena. Há coisas tão simples que fazem a diferença: “Por que será normal as meninas serem chamadas de princesas e os meninos de super-heróis? Por que razão não podemos chamar príncipes aos meninos e super-heroínas às meninas?”, questiona o fundador da Quebrar o Silêncio. “São apenas pormenores, mas pesam na educação”, acrescenta.

Mães e pais, a mesma culpa

Mas, voltando ao estudo de James K. Rilling, a psicóloga acredita que não está muito longe da realidade: “Os pais respondem mais emocionalmente aos pedidos/necessidades das filhas, parecendo entender e permitir melhor as dificuldades. Com os filhos, a expectativa é de vencedores e de lutadores. Por vezes, aguardam que aprendam com os seus erros, dirigindo comentários do tipo: ‘és forte, és corajoso, um homem não chora’; às filhas permitem muito mais o choro”.

Basta pensarmos que as meninas são mais envolvidas nas tarefas domésticas

A psicóloga acredita que tendencialmente as mães não são tão preocupadas com a competitividade e dão mais importância às emoções equilibradas, sendo este o pilar para o desenvolvimento psicológico em harmonia. Já Paula Cosme Pinto diz que as mães também têm a sua quota-parte de culpa: “Basta pensarmos que as meninas são mais envolvidas nas tarefas domésticas. E, apesar de termos cada vez mais homens envolvidos na educação dos filhos desde muito bebezinhos – como mostra o crescimento exponencial da licença paternal –, é às mães que continua a pertencer o papel de comprar as roupas e os primeiros brinquedos e continua-se a associar as roupinhas cor-de-rosa e as bonecas às meninas, o que conduz à criação de um estereótipo que não tem nada de biológico”.

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“De certa forma”, diz Mónica Carneiro, “pais, mães e os contextos educativos acabam por reagir de forma diferenciada, tendo em consideração diferenças biológicas, mas porque as associam às suas próprias expectativas de género no que toca ao que uma menina ou um menino deve ser. Tudo isto faz com que, quando olhamos para a sociedade, observemos que “os pais e as mães são resultado da sua educação e do contexto social em que estão integrados/ as. Aquilo que demonstram in vivo na sua relação com o género oposto é transmitido aos filhos. A interação social construída na família é a aprendizagem realizada pelosfilhos, que parece estar mais ligada às expectativas de género do que às diferenças biológicas”, garante a psicóloga.

“Mesmo que fôssemos completamente distintos biologicamente, não há nada que fundamente a desigualdade. Não há nada no meu código genético que me impeça de dobrar uma camisa, engomar ou cozinhar. Se em casa, mãe e pai fizerem as mesmas tarefas, o que as crianças vão achar estranho é que seja só mãe ou o pai a desempenhar esse papel. Temos de educar as crianças para não esperarem coisas diferentes de mães e pais”, realça Ângelo Fernandes.

Não se consegue mudar séculos de História repentinamente. Em políticas públicas, Portugal deu grandes passos, mas, em termos de mudança efetiva, o problema é mudar as mentalidades, as pessoas não se sentem bem com isso

As mudanças estão a acontecer

Mas por que é que, em pleno século XXI, ainda é tão difícil educar para a igualdade? “As ideias e atitudes de diferença de género estão muito enraizadas, preconcebidas, acredita-se que homens e mulheres têm comportamentos apropriados para uns e outros, e isto lentifica a mudança. Julgo que a conquista de igualdade de género está em processo lento, mas com algum espaço de discussão, o que permitirá muito gradualmente diminuir a desigualdade”, salienta Sandra Helena.

Paula Cosme Pinto acredita na mudança: “Não se consegue mudar séculos de História repentinamente. Em políticas públicas, Portugal deu grandes passos, mas, em termos de mudança efetiva, o problema é mudar as mentalidades, as pessoas não se sentem bem com isso. Mas o mundo está a mostrar que é para aí que se tem de caminhar.” A autora do blogue do Expresso A vida em saltos altos dá o exemplo dos países do Norte da Europa, “que estão a colher os frutos de matérias de igualdade de género implementadas há 20 anos. Nós só agora é que estamos a dar os primeiros passos. Mas Portugal costuma ser rápido a mudar e a Secretaria de Estado para a Cidadania e a Igualdade tem estado a atuar nas escolas – daqui a 10-15 anos vamos ver as diferenças”.

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E, por falar em escolas, Ângelo Fernandes conta-nos que, quando vai a estabelecimentos de ensino abordar estas temáticas, encontra de tudo: “Por um lado, encontro raparigas muito conscientes dos seus direitos, por outro, rapazes e raparigas ainda muito agarrados aos papéis de género e isso é muito preocupante”.

Se as famílias são importantes, as escolas também o são e o primeiro passo é as “escolas permitirem que a criança explore sem barreiras. Por isso, numa creche, não faz sentido haver um cantinho com brinquedos para meninos e outro para meninas, o que ainda acontece. Há que dar ferramentas e espaço para as crianças experimentarem livremente”, diz Ângelo Fernandes, que lembra um vídeo da BBC para nos mostrar os estereótipos enraizados: “Vestiram bebés do sexo masculino com roupas de meninas e vice-versa e os educadores não os distinguiram, ou seja, puseram-nos a brincar com os respetivos brinquedos associados ao sexo referente a cada roupa”.

Qualquer educação que limite não é positiva. No fundo, ao limitar-se as crianças, dizendo-lhes que só existe uma esfera e que não podem sair dela, restringe-se o seu desenvolvimento

O futuro

Qual, será, então, o caminho a seguir para uma educação para a igualdade de género? Para Ângelo Fernandes, “é dar liberdade às crianças para se exprimirem em casa ou na escola. Se os meninos querem brincar com bonecas, que brinquem; se querem fazer ballet, que façam; se as meninas querem jogar futebol, que joguem; se querem brincar com um skate, que brinquem”. Como diz Mónica Carneiro, “a educação para a igualdade de género deve ser, principalmente, afirmativa e aberta a todas as expressões que as crianças entendam na sua exploração e desenvolvimento, que podem ser ou não conformes com dicotomias de género. Além disso, o questionamento de padrões estabelecidos e a educação para a inclusão de variadas formas de expressão de género, conformes e inconformes, constroem uma posição social menos discriminatória e mais construtiva para a identidade”.

Por outras palavras, acrescenta Ângelo Fernandes, “qualquer educação que limite não é positiva. No fundo, ao limitar-se as crianças, dizendo-lhes que só existe uma esfera e que não podem sair dela, restringe-se o seu desenvolvimento. Por exemplo, espera-se que os pais homens sejam cuidadores, mas, enquanto crianças, não se deixa que brinquem com bonecos.

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Esta mensagem é reproduzida em várias dimensões da vida e não é só em casa; é na escola, na rua, na casa dos amigos e à medida que meninos e meninas vão crescendo com essas ideias, facilmente reproduzem esse comportamento na sua socialização e até se policiam uns aos outros”. Mas há esperança: “Apesar de esta atitude ser reproduzida com frequência, há um leque de pais que se emancipa, quebrando o ciclo familiar das responsabilidades de cada um e esbatendo esta forma de agir. A educação para a cidadania e igualdade de género tem trazido contributos para que pais e mães pensem em formas mais igualitárias de educar”, remata Sandra Helena.


Acha que a educação para a igualdade de género deve ser ensinada às crianças? Saiba ainda porque é que deve deixar os seus filhos errar.

A versão original deste artigo foi publicada na revista Saber Viver nº 218, agosto de 2018