As amizades consistem no primeiro relacionamento de livre escolha que criamos quando crianças e, ao manterem-se na nossa vida, oferecem-nos um poderoso vínculo que partilhamos com o mundo e com a vida ao nosso redor.
São os amigos quem estão connosco em muitos dos momentos mais importantes do nosso ciclo de vida. Eles testemunham o nosso crescimento, acompanham-nos nas nossas provações e desilusões amorosas, dão colo, conselhos, dão ouvidos, chão, mas também dão mundo e esperança.
Torcem por nós nas mudanças e conquistas profissionais. Dão estrutura perante as desavenças familiares. São pilares nos momentos dos nascimentos, nas recuperações difíceis de saúde e também quando nos cruzamos na vida com a morte das nossas pessoas significativas.
São testemunhas e nós deles. Passo a passo, celebrando, rindo e chorando em conjunto.
Por tudo isto, as amizades representam um dos vínculos mais importantes que temos a sorte de construir ao longo da nossa vida. Enquanto seres humanos, fomos criados para construir vínculos, conexão. Necessitamos muito mais de intimidade do que possamos de facto imaginar.
Necessitamos de estar próximos e sentirmo-nos ligados a outro(s). Os seres humanos são programados para se conectar e as conexões sociais são uma parte essencial da nossa saúde e bem-estar – precisamos dos outros para sobreviver e prosperar, assim como precisamos de comida, água e oxigénio.
Torna-se tão fácil compreendermos como as amizades são uma importante fonte de autoestima, saúde mental e bem-estar. Ter amigos tem o potencial de nos proteger do impacto da solidão, reforçando o sentimento de satisfação para com a vida.
Pelo contrário, a falta de interação social afeta não apenas a nossa saúde mental, assim como se associa a diversas condições médicas (exemplo, doenças cardiovasculares, pressão alta, cancro e sistemas imunológico prejudicado).
As amizades importam e muito, mas não se trata de uma questão de quantidade de interações, mas sim da qualidade das nossas relações.
O que é uma amizade tóxica?
As amizades desenvolvem-se connosco. São uma espécie de sistema vivo, dinâmico e que deverão ser flexíveis. Em alguns momentos da vida, podemos sentir-nos mais próximos ou mais distantes das pessoas a quem designamos amigos.
À medida que experienciamos algumas situações de vida, nomeadamente situações de crise pessoal (por exemplo, nascimento de um bebé, divórcio, morte de familiares próximos), ou até mesmo de crise social (por exemplo, a vivencia da pandemia) a amizade pode diluir-se ou fortificar-se.
Tudo poderá depender das circunstâncias de cada momento particular experienciado.
Muitas vezes, é o padrão de funcionamento do outro que envolve de toxicidade a relação. Nem sempre uma amizade tóxica é imediatamente identificada e nem sempre se trata de uma amizade cujos contornos do comportamento espelham uma intencionalidade em prejudicar ou até em fazer mal.
Contudo, uma relação que produz sofrimento é uma relação tóxica. Estas relações tendem a ser unilaterais, com ausência de reciprocidade, em que o outro tende a dar primazia ou foco aos seus interesses ou problemas, não revelando um interesse genuíno pelo outro.
Nas relações de amizade tóxicas até podemos encontrar um laço afetivo, contudo, é o funcionamento do outro e a forma como este se posiciona na relação que não produz bem-estar. Um amigo tóxico raramente identifica as suas falhas e tende a não pedir desculpa.
Uma vez que existe pouca reciprocidade e o interesse no outro é pouco genuíno, é possível que esta seja uma relação muito mais centrada nos problemas do outro. Por norma, o ciclo desta relação só tende a ser quebrado quando ocorre o afastamento ou mesmo o corte.
Alguns comportamentos presentes numa amizade tóxica passam por depreciar ou diminuir o outro, dizer coisas negativas sobre o outro, culpabilizar o outro, não guardar segredo de informações indicadas como confidenciais, autocentração nos seus problemas ou questões, ausência de suporte ou compaixão, competição, vitimização ou mentiras partilhadas constantemente.
Muitas pessoas, vão mantendo as amizades por conforto, sem grande lugar e espaço para uma reflexão consciente face aos contornos e emoções que o relacionamento com aquela pessoa em particular assume na sua vida. Muitas vezes, podem ser amizades de anos, amizades que estiveram de alguma maneira sempre ali e se tornaram inquestionáveis.
O mal-estar em relação àquela pessoa existia (ou passou a existir), mas face à natureza dos sinais percecionados ser tão subjetiva, nem sempre se pensou em lidar com a situação de uma maneira mais consciente.
Por outro lado, algumas pessoas podem considerar “normal” algumas atitudes tóxicas por parte do outro, tendo em conta o histórico das relações afetivas da sua vida, desconsiderando/desvalorizando as mesmas atitudes, por considerar que esse sinais sejam de alguma forma incompreensões ou falhas da sua perceção.
Por norma, um amigo tóxico tende a ser alguém que necessita do outro para o ajudar a gerir as suas próprias emoções, sobrecarregando o outro elemento e criando neste sentimentos de culpa (por não estar sempre disponível, por exemplo), desconforto, ansiedade ou rejeição.
Em conjunto, são o tempo e o investimento emocional, sem uma reciprocidade efetiva por parte do outro elemento, que afetam a saúde física e emocional da pessoa, mantendo-se enquanto o vínculo durar.
Ter uma amizade tóxica significa o fim daquele laço?
Poderá ser importante aprofundar uma reflexão sobre este relacionamento e permitir-se observar como se dá e mostra nessa ou noutras relação e como esse amigo se dá ou se mostra também ele na relação.
Poderá ser importante refletir porque se permite estar numa relação de amizade que lhe traz de alguma forma sofrimento, sendo uma relação que já tinha sentido nem sempre ser clara, autêntica ou honesta?
Questões que ajudam neste processo de reflexão
1. Sentia-se autenticamente conectada a esta pessoa? Tinha a possibilidade de ser realmente si própria, sentir, ver e ouvir nesta relação?
2. Sentia-se julgada ou aceite nesta relação? Esta relação fazia-a sentir-se nutrida emocionalmente?
3. O tempo que partilhavam entre si servia para a pessoa que deseja ser ou sentia que esse tempo partilhado não a servia saudavelmente (exemplo: beber, gastar dinheiro, escutar mexericos)?
4. Como era a forma como se conectavam? Através do falar sobre outras pessoas (mexericos)? Como falavam sobre outras pessoas?
5. Partilhavam valores semelhantes? Por exemplo, gentileza, bondade, respeito, etc.?
6. O seu amigo tinha disponibilidade emocional para a escutar? E você?
7. Existiam limites saudáveis na sua relação de amizade? Mantem os seus limites e respeita os limites dos outros?
8. Como se sentia após passar algum tempo esse amigo?
9. Aprendiam coisas novas em conjunto ou exploravam novas ideias? Esta relação promovia a evolução e crescimento pessoal?
Na verdade, criamos espaço para as relações que nos fazem sentir bem, com energia, inspirados, conectados e onde temos a possibilidade ser nós próprios. Por norma, nas relações disfuncionais sentimos que damos mais do que recebemos.
Por outro lado, muitas vezes aquilo que se verifica são situações onde duas pessoas não souberam ter uma conversa honesta sobre as suas emoções, necessidades e limites ou mesmo questionar se o que estão a sentir corresponde de facto a uma realidade.
Quando as pessoas sentem ressentimento, frustração ou deceção numa relação, tendem a acreditar que estão a investir mais naquela relação do que estão a receber. Sentem-se usados ou que não encontram na relação a reciprocidade dos gestos ou dos comportamentos. Não encontram uma partilha mútua.
Poderá ser importante trazer para estes momentos alguma reflexão consciente: permitir o espaço necessário para observar se a outra pessoa quer dar/partilhar e investir também. Esse espaço que nos damos poderá ser uma forma saudável de compreender e posteriormente comunicar as suas necessidades e os seus limites pessoais.
Deste modo, após um processo de reflexão sobre este relacionamento, poderá ser igualmente importante a existência de uma conversa com a pessoa amiga, mediante um diálogo honesto e sincero, com o intuito de verificar se existem os alicerces para se construir de novo uma ponte de amizade entre si e o outro ou se o mais saudável passará efetivamente por um corte daquela relação.
Estabelecer um limite de tolerância com uma amizade tóxica
Torna-se essencial estabelecer um limite neste(s) relacionamento(s). Na verdade, tantas vezes as amizades tóxicas podem ter um papel verdadeiramente desestruturante para a saúde mental.
A colocação de limites firmes e bem delineados pode revelar-se fundamental, de modo a que se possa preservar a si física e emocionalmente.
Uma das características de uma amizade tóxica passa precisamente por precisar de dar justificações de tudo o que acontece ou aconteceu na sua vida.
Os limites são, na verdade, importantes nas amizades. Melhor ainda, os limites são essenciais em qualquer relação. Os limites definem os nossos limites pessoais. Permitem-nos ter espaço para nós e para os outros, sendo a base dos relacionamentos saudáveis.
Muitos de nós não têm ou entendem os limites porque não foram educados pelas suas figuras cuidadoras nesse sentido. Muitas vezes, os nossos limites pessoais foram também eles violados ou ignorados.
Por vezes, limites são ignorados nas amizades porque não sabemos como criá-los ou receamos ferir os sentimentos do outro. Revela-se importante manter limites nas amizades, de modo a evitar relações de co-dependência, tóxicas ou disfuncionais, colocando em causa o nosso sentido de independência, a pessoa que somos e a nossa saúde mental.
Quando a mudança não se revela possível, o afastamento gradual ou em casos mais complexos o corte emocional daquela relação poderão ser a solução.
Uma amizade que chega ao fim
Para muitos, o fim de uma amizade poderá significar que falhamos ou que alguma coisa negativa aconteceu entre as duas pessoas.
Enquanto seres humanos, fomos criados para nos desenvolvermos e adaptarmos a diversas situações. Tornamo-nos amigos porque partilhamos um conjunto de valores semelhantes.
Apesar de tudo, é perfeitamente normal uma amizade terminar, podendo nem sempre refletir uma razão concreta (como uma discussão) ou algo que tenhamos feito de errado.
Vamos crescendo e desenvolvendo num determinado sentido, e os valores anteriormente partilhados, poderão ter deixado de ressoar ou os dois elementos terem-se desenvolvido em direções opostas.
Por outro lado, pode ser também inevitável terminar uma amizade que revelamos ser tóxica, mesmo quando esta já nos acompanha há vários anos. É importante conseguir observar se o comportamento tóxico daquele amigo é assim desde o inicio da relação ou se se estará a revelar tóxico naquele momento por alguma situação de vida concreta.
Contudo, a forma como aquela relação de amizade é terminada, torna-se bastante significativa. Quando um amigo deixa de comunicar e desaparece (ghosting), poderá provocar uma experiência de enorme dor emocional. Por norma, esta situação traz em si vergonha e dor para o próprio, não compreendendo o que fez de errado, tornando-se o luto mais difícil de fazer.
Seja como for, quando o cortar de uma relação de amizade parece ser o caminho mais saudável, revela-se importante fazer o luto daquela relação e permitir-se experienciar o conjunto de emoções com que poderá ser inundado (por exemplo, tristeza pela perda daquele amigo/amizade, desilusão face à forma como este terminou a relação de amizade ou como se comportou, etc.).
O corte de uma relação de amizade é tão doloroso como o fim de uma relação amorosa. Em ambas as relações, projetamos tantas vezes a possibilidade de uma relação que permanece “para sempre” na nossa vida e o confronto com a quebra do vínculo magoa-nos.
Uma amizade requer tempo. Uma amizade requer energia. Uma amizade requer a capacidade de estar e cuidar o outro. A base da amizade é valorizar um ao outro. Cada indivíduo oferece algo que é valioso para o outro.
Porém, por vezes, como em qualquer relação, seguir caminhos diferentes poderá ser de facto o mais saudável e legítimo.
Sílvia Coutinho é psicóloga e terapeuta familiar e de casal. Em terapia, procura promover relações com maior conexão emocional, com famílias, casais e a nível individual. Adora refletir sobre as emoções mais profundas que sentimos quando nos relacionamos e acredita ser através destas relações, vividas de forma saudável, que conseguimos também individualmente potenciar o nosso bem-estar, equilíbrio e felicidade. Siga-a no Instagram.