Dez conversas inéditas que tiveram como mote o mesmo número de canções, poemas e um excerto de livro recriam agora em papel o programa da Antena 1 ‘O Amor É’, que dura há já 15 anos, e que há quase 11 junta o psiquiatra Júlio Machado Vaz e a comunicadora Inês Meneses. São, sem dúvida, uma dupla de sucesso ou uma relação duradoura (se nos quisermos aproximar dos temas por eles explorados).
Amor, desamor, sedução, paixões adolescentes e relações na era da internet são só alguns exemplos das temáticas que pululam nas páginas de O Amor É – Para Memória Futura (Contraponto) e desta entrevista, feita entre gargalhadas e muita partilha de ideias, afinal estivemos perante dois contadores de histórias natos, daqueles com quem se pode falar horas e horas sem olhar para o relógio.
Entrevista a Júlio Machado Vaz e a Inês Meneses
O que é o amor?
Júlio Machado Vaz (J.M.V): Quando me perguntam isso eu respondo, cautelosa e otimistamente, que o amor ainda é possível, não é garantido.
Inês Meneses (I.M.): Aprendi que o amor é um jogo de cedências e é muito bonito que o seja, porque ceder é ouvir, é permitir que o outro diga o que sente, que se justifique e que seja ele próprio. A paixão é outra coisa, parte muito do encontro químico e físico, é uma espécie de estágio. Para o amor, só ficam os fortes, os que aguentam o embate. O amor, para mim, também é respeito e sentir admiração pelo outro.
E o que não é o amor?
I.M.: A mentira é uma coisa que me deixa sem chão, porque o mais difícil é sermos verdadeiros. Ao sermos verdadeiros, temos de assumir fraquezas e incapacidades. O amor não é desistir à primeira. É aceitar os defeitos do outro.
J.M.V.: Qualquer forma de usar o outro. Para mim, o amor tem de ser uma coisa recíproca. Claro que se pode amar alguém que não nos ama, mas isso é um amor não correspondido, é outra coisa. Numa relação amorosa, tem de haver equidade e não pode haver utilização do outro.
E o que mudou no amor e no sexo desde que fazem o programa ‘O Amor É’, na Antena 1?
J.M.V.: A coisa mais preguiçosa para dizer, embora verdadeira, é que cada vez menos amor e sexo estão de braço dado. Mas houve transformações mais subterrâneas e, quiçá, bem mais interessantes. Continuamos a ouvir falar muito de amor romântico, mas o de hoje não é o do final do século XIX e, portanto, movemo-nos muito para os conceitos do [Anthony] Giddens da relação pura e amor contingente; as pessoas, cada vez mais, não querem um príncipe ou princesa encantado/a, mas uma relação encantada.
Mas isso parece positivo…
J.M.V.: Claro que é e as pessoas têm a noção, contra o conceito inicial do amor romântico, que podem ser felizes com várias pessoas. O conceito de amor romântico trouxe consigo a vontade das pessoas de serem felizes no casamento e, como alguns escreveram na altura, essa foi a primeira grande machadada naquela instituição. Hoje em dia, tem-se direito e até obrigação de se ser feliz. Podemos avaliar e chegar à conclusão que uma relação foi boa, mas já não o é. A esmagadora maioria das pessoas pratica aquilo que os americanos inventaram, a monogamia seriada. As pessoas batem-se por uma relação e, quando esta falha, podem ficar sozinhas, umas para sempre, outras entram noutras relações e batem-se por elas outra vez.
E, no sexo, há mais liberdade?
J.M.V.: Sim. Numa sociedade capitalista de consumo, acho que o sexo se tornou um produto de consumo e que algumas pessoas, com certa ingenuidade, esperam demasiado do sexo e julgam que a quantidade gere qualidade, o que muitas vezes não acontece. Mas não significa isto que temos de estar apaixonados até à quinta potência para entrar numa relação sexual, longe disso. Tenho casais felicíssimos no consultório que se conheceram no Tinder. Agora, é evidente que há uma certa superficialidade, e não é só no sexo, é também na parte afetiva, e, como vivemos numa sociedade que tem uma tolerância muito baixa a afetos como tristeza, ansiedade e frustração, as pessoas têm tendência para desistir mais depressa. Não há amores perfeitos, só as flores, e, portanto, o amor dá muito trabalho.
No livro O Amor É, a Inês diz que o amor no século XXI é sempre adiado. Quer explicar-nos esse conceito?
I.M.: É um amor muito potenciado pelas novas tecnologias. De certa forma, o amor adiado é o amor idealizado. As pessoas pensam qualquer coisa como ‘vou continuar a falar com esta pessoa mais 15 dias, isto é maravilhoso porque não preciso de sair de casa para continuar a viver uma história’. Contudo, há uma das partes que vai exigir essa confrontação e o que acontece é que, quando esse confronto se dá, há desilusão. Hoje, facilmente se cria um boneco só para forjar afinidades. De repente, todos os meses se encontra uma alma gémea. Estamos a dar cabo do amor e estamos a adiá-lo, porque estamos a fugir dele.
J.M.V.: A Inês acha que as pessoas têm medo do amor e muitas têm, porque quando se arrisca, pode-se ficar cheio de nódoas negras. Levar tudo com mais ligeireza é menos arriscado e as pessoas vão adiando o compromisso. Eu nunca tinha pensado nisso, mas claro que estou sugestionado pela prática clínica que me mostra que, quando lhes dá a sério, seja em que idade for, continuam a ter tendência para arriscar. Concordo com a Inês quando ela diz que as pessoas evitam o amor e temos um exemplo espantoso disso no Japão, onde 30 a 40 por cento dos jovens não querem ter relações amorosas e sexuais porque só dão chatices. Há empresas florescentes no Japão que alugam ‘namorados’ para se levar ao domingo a casa dos pais.
E é possível viver sem amar?
J.M.V: É, porque se pode amar outras coisas, tal como é completamente possível viver sem sexo. Há quem tenha de estar sempre apaixonado e, se não está, convence-se que está e salta de paixão em paixão. Há pessoas que também reivindicam ser assexuadas, não sentem desejo sexual e sentem-se bem assim.
Estarão as redes sociais a estrangular o amor?
J.M.V.: Temos de ter cuidado, nunca diabolizo as redes sociais. Agora que estão a mudar a sociedade, estão, não é só o amor. A tecnologia está a modificar a maneira como pensamos e sentimos. O [professor] Manuel Sobrinho Simões diz que é como se fôssemos uma ampulheta, ou seja, somos bombardeados com tanta informação que temos de fazer uma triagem, mas como não aprendemos a fazê-la, deixamos de fora coisas importantes. Por outro lado, as redes sociais reforçam muito a superficialidade, as pessoas matam-se por um like.
I.M.: Não são as redes sociais que são culpadas, as pessoas é que são estúpidas e ignorantes. Nesta nova forma de viver o amor, não se está disposto a fazer cedências. Começámos o livro com A Paixão Segundo Nicolau da Viola e a determinada altura Carlos Tê escreveu “Mas tu não ficaste nem meia hora/não fizeste um esforço para gostar e foste embora” e, quando estava a falar com o Júlio sobre a canção, pensei: “Se gostava dele por que é que não aguentou?”. Mas neste caso, nós acreditamos que é um amor adolescente e que nenhum fez o esforço devido.
Será que podemos, então, dizer que muitas das pessoas que se encontram nas redes sociais vivem um eterno amor adolescente?
I.M.: Nunca tinha pensado sobre isso, mas na verdade as redes sociais fazem-nos sentir uns eternos adolescentes. Esta coisa de estarmos sempre a pôr fotografias – e todos o fazemos – é uma coisa de adolescente, é uma espécie de olhar para o espelho e projetar para os outros o melhor de nós.
Para ter a aprovação dos outros?
I.M.: Sim, que é o que nós precisamos na adolescência. Por isso, sim, tem razão, estamos a viver um amor adolescente potenciado pelas redes socias.
E, voltando à letra de Carlos Tê, pode-se ou não amar alguém que não ouve a mesma canção?
J.M.V.: Amar alguém que é uma fotocópia nossa é uma seca. No início, até pode ter muita piada, mas depois essas pessoas não se conseguem surpreender. A diferença enriquece, claro, não pode é ser tirânica. É perfeitamente possível amar alguém que ouve outras canções.
I.M.: Há dez anos ou 20 anos, diria que não; hoje em dia, já não acho. Porque temos de aprender a ceder, o amor é um equilíbrio e um jogo de cedências.
No livro, a Inês também diz que sedução está em risco…
I.M.: Quando o movimento #MeToo começou, seguido daquela investida de Catherine Deneuve, que vinha no sentido contrário, acabei por escrever no Facebook que tinha medo que a sedução se perdesse. A sedução é a coisa mais bonita e não é uma mão a apalpar um rabo ou assediar alguém, mas não descarto o piropo. Uma coisa é ouvir algo ordinário e termos o direito de responder e eu sou incapaz de não responder por mim, pela minha filha e pela minha mãe, que não teve essa capacidade. O que muitas vezes motiva filmes e livros é o romantismo e este não existe sem sedução. Esta, tanto está numa flor — e não tem de ser o homem a oferecê-la à mulher, pode ser o contrário — como no inquietar para um filme ou uma música.
J.M.V.: É um receio, sob certos aspetos, justificado, porque a sedução, pelo menos como a Inês e eu a entendemos, tem os seus ritmos e rituais. Uma espécie de despe e siga pode ter piada sexualmente, mas de sedução tem pouco. Há um encanto no aproximar, no sentir que nos estamos a tatear. O erotismo não pode ser confundido com o sexo puro e duro e, hoje em dia, muito do sexo que vemos por aí é muito pouco erótico.
É muito físico?
J.M.V.: Não diria só, mas é pouco emocional. Para muitas pessoas, o erotismo reduz-se ao sexo e, para mim e para a Inês, não é assim. Quando eu digo aos meus alunos que há muito sexo ao qual não acho piada por ser uma espécie de talho – passamos e a carne está ali exposta, é só escolher –, eles riem-se. É evidente que as moedas têm sempre duas faces, há pessoas que se conhecem num encontro de sábado à noite e estão felizes, mas também há quem, no domingo de manhã, dê o número de telefone errado para não ver mais aquela pessoa.
O que é para vocês saber viver?
I.M.: É retirar prazer das pequenas coisas. É ir para casa pôr um disco a tocar, beber um copo de vinho e comer um ovo estrelado. Podem ser coisas muito simples, mas que me dão um prazer enorme. É importante que as pessoas se atirem para aquilo que lhes dá prazer, sem os sentimentos de culpa incutidos noutros tempos.
J.M.V.: É um conceito que foi mudando ao longo da vida. Aos 69 anos, posso dizer que as minhas prioridades mudaram muito. Tenho a sorte de continuar a gostar do que faço, mas extratrabalho, conhece aquela canção da Elis Regina Uma Casa no Campo? Estou nessa fase, além disso, gosto de me mimar. No meu aniversário, cheguei a casa e comprei uma viagem para Barcelona, a cidade de que mais gosto depois do Porto, e estou em contagem decrescente para me ir encher de Chardonnay, queijo manchego e tortilha, isso é saber viver.
Gostou da entrevista? Conheça ainda os 20 sinais que lhe dizem que ele não é “o tal”.