Experienciamos o mundo de acordo com a nossa humanidade. Desta forma, sentir emoções confortáveis e desconfortáveis faz parte – e sempre fará -, do nosso caminho enquanto seres humanos.
O ciúme enquanto emoção humana poderá fazer-se sentir nas mais diversas relações, fazendo parte da experiência complexa de amar. Sentir ciúmes numa relação poderá, assim, ser algo absolutamente normal.
Na verdade, de acordo com algumas culturas, poderá ser um elemento bastante valorizado, visto e sentido como um intenso e verdadeiro sinal de amor, nomeadamente nos países latinos.
Nas palavras da terapeuta de casal Esther Perel, o ciúme que surge como uma fúria erótica, rompe por completo com a apatia, a inércia e indisponibilidade emocional tão destrutiva das relações.
Não obstante, noutras culturas e para muitos de nós, que não toleram sentir emoções, que consideram que estas deverão ser sempre controladas, o ciúme vai-se transformando num elemento tabu que não pode ser sentido e que deverá ser contido.
Prova de amor
São muitos os que olham para o ciúme e para a pessoa ciumenta como algo ou alguém desadequado, provocando profundos sentimentos de vergonha e por isso tendemos a esconder.
Mas quando não admitidos ou expressos numa relação, tendemos a ficar de alguma forma preocupados. Muitas vezes, neste lugar de ausência e passividade, tendemos a não nos sentir amados.
Desta forma, o ciúme poderá ser também um elemento catalisador das relações, na medida em que sabemos e sentimos a importância, o desejo, o interesse do outro, permitindo a relação enquanto sistema vivo, alimentar-se. Ter ciúme é reconhecer no outro, a possibilidade deste provocar interesse ou atração por parte de outrem.
Do medo
O ciúme poderá surgir de um lugar de profundo medo, que gera emoções tremendamente nocivas como insegurança, mágoa e zanga, impactando o outro que poderá sentir a sua noção de respeito e liberdade individual colocados em causa.
A possibilidade de nos sentirmos preteridos, enganados, traídos ou potencialmente rejeitados abana por completo a nossa segurança emocional.
Em última instância, é como se o ciúme encerra-se em si um paradoxo: precisamos do amor para sentir ciúmes, mas se amamos e quando amamos não deveríamos sentir ciúmes. Mas todos nós sentimos esse lugar de profunda vulnerabilidade humana.
Quando amamos – e mesmo quando existe espaço para um lugar saudável de amor -, sentimos que, de alguma forma, precisamos do outro, embora o procuremos não admitir e até tantas vezes esconder.
No amor, o nosso sentimento de dependência aumenta. Amar alguém bem e saudavelmente, inclui sempre um lugar de interdependência em que ambos necessitam um do outro, embora seja importante manter igualmente o seu espaço de individuação.
É assim que devemos corresponder à formula matemática da relação 1 + 1 = 3, ou seja, a existência de um Eu + Tu = Nós (ou seja, a existência de três entidades que nunca poderão desaparecer numa relação).
O ciúme como trauma
No decorrer do seu ciclo de vida, um casal vai-se confrontando inúmeras vezes com diversos terceiros elementos que poderão piscar o olho para um destes, desencadeando situações potenciais de ciúme.
Estas situações requerem do casal, de forma contínua, a capacidade de impor saudavelmente as suas fronteiras e limites, permitindo desta forma consolidar e até aprofundar a própria relação.
Quando assim não acontece e um dos elementos acaba por navegar nos braços de um outro alguém, a situação de infidelidade coloca o elemento traído diante de uma situação de trauma relacional e quebra de confiança, com inúmeros sintomas de stress pós-traumático, como os pensamentos intrusivos, os flashbacks, a obsessão, o sofrimento, a hipervigilância, a insegurança, o medo, a competição e a comparação.
Decompondo o trauma, conseguimos observar o lugar do ciúme que consome o parceiro ferido.
O impacto da traição
Quando um elemento passa ou passou, numa outra relação, por uma infidelidade, o ciúme, a desconfiança e a insegurança surgem como emoções absolutamente normais, mediante o medo de experienciar rejeição e traição novamente.
Não obstante, poderá ser um lugar emocional que necessitará ser revisitado (nomeadamente em terapia) de modo a ser processado e não impedir aprisionar os elementos no medo.
Por outro lado, o lugar das dúvidas, perguntas, comparação e competição com um terceiro elemento – e que, paradoxalmente, ativa a insegurança e o medo – ativa também, tantas vezes, a mente, o corpo e o desejo.
Ativa o lugar erótico da relação por tanto se querer o amor, desejo e atenção exclusiva do outro para si de volta.
Além disso, ativa os nossos medos mais profundos de abandono, mas poderá igualmente ativar a nossa resiliência e trazer-nos de volta à vida e à relação mais fortalecidos (por nos inspirar ou mesmo empurrar a finalmente cuidarmos de nós e a estimarmo-nos), assim como a um mundo imenso de novas possibilidades de viver o amor.
O ciúme como um nó emocional que sufoca
O ciúme poderá igualmente surgir diante de um dilema de possessividade. O medo de perder o outro ou de não o conseguir podem resultar em reações intensas de controlo, perseguição, como se o parceiro nos pertencesse.
O motivo poderá ser real ou existir apenas no imaginário e fantasia deste elemento. Independentemente disso, surge como perigo, conduzindo-o à necessidade de eliminar a ameaça que conduz ao sentimento de medo, desproteção ou desvantagem.
Embora o ciúme seja normal numa relação, nestes casos, o sentimento ultrapassa o limite da normalidade, podendo tornar-se numa patologia indicativa de uma enorme fragilidade ao nível da autoestima, passando de uma declaração de amor a uma obsessão que torna este elemento refém e o sufoca.
É um ciúme que é causado por situações ou ideias irreais, fantasiosas ou até mesmo delirantes.
Comportamentos tóxicos
A pessoa que sente ciúme tem consciência, muitas vezes, da intensidade desproporcional e destrutiva do seu sentimento, da ausência de sentido do sentimento de ameaça, das crenças paranóicas que vão nutrindo o ciúme.
Também se condena perante o sentimento e respetivas reações, sentindo-se absolutamente sufocado, mas totalmente impotente em se autocontrolar. Este descontrolo é verdadeiramente preocupante.
Contudo, persegue, clamando desesperadamente por atenção, mantendo-se possessivo, a atacar, culpar, controlar e abusar do seu companheiro, em vez de se permitir render e chorar a tristeza e o terror diante do medo da perda que sente.
Nestes casos, é muito comum verificar alguns comportamentos que comprometem o espaço de individualidade e liberdade do outro, tais como:
• Vigiar e perseguir o parceiro;
• Controlar as chamadas e mensagens do seu telefone;
• Controlar as redes sociais;
• Controlar as mensagens de trabalho que o companheiro faz e recebe;
• Não permitir conversas com a pessoa alvo de comparação e competição obsessiva;
• Desenvolve um padrão de preocupação exagerada;
• Mostra-se convencido dos seus próprios pensamentos;
• Considera que o companheiro está constantemente a mentir e a esconder algo;
• Quer saber o que o companheiro está a fazer, a pensar e onde está;
• Apresenta um sentimento de posse em relação ao companheiro.
Muitas vezes este ciúme poderá advir de nós emocionais individuais, muitas vezes gerados na infância, e que terá de ser o próprio a aprender a desatar.
Tantas vezes verificamos que o próprio carrega em si a crença de que não é merecedor de amor, um medo profundo de abandono (por vezes, já ocorrido ao longo da sua vida), terror diante da possibilidade de rejeição, crenças e sentimentos de pânico que acabam por sabotar e prejudicar a relação e tantas vezes até custar a vida de uma pessoa.
E, portanto, impera informar que esta forma de relação abusiva não é amor, é efetivamente uma relação tóxica e que necessita assertivamente de limites.
Como ultrapassar os ciúmes?
O medo poderá ser uma emoção que nos acompanha nas diversas viagens que vamos fazendo ao longo da vida: faz parte de sermos humanos.
Por vezes, podemos ser assaltamos pela emoção de medo e sentirmos medo da perda, abandono ou rejeição. São estas dificuldades ocasionais que possamos experienciar e sentir.
Não obstante, não poderemos permitir que seja o medo a conduzir e a definir a nossa vida. E este deverá ser o nosso trabalho individual.
O medo e o ciúme patológico recordam-nos da nossa infinita vulnerabilidade, mas também da nossa imaturidade. Do quanto necessitamos de crescer emocionalmente.
Para tal, alguns passos poderão ter de ser dados.
Nomear e reconhecer o problema
É importante dar nome ao problema, reconhecer o que acontece, o que sente e o que tende a fazer quando sente este ciúme que ultrapassa os limites do outro.
Por dificuldade em compreender as emoções, muitas pessoas podem sentir maior dificuldade em nomear e assumir que sentem ciúme e que este é destrutivo na sua relação.
Trabalhar a sua autoestima
Amar é uma das melhores coisas da vida. Contudo, requer aprender como é construir uma relação saudável, de respeito mútuo e espaço de diferenciação entre os elementos e não de fusão emocional.
Desta forma, permitir-se compreender que uma relação e um companheiro não deverão ancorar como única fonte de ligação, entusiasmo e nutrição de bem estar da sua vida.
Também deverá ser essa âncora de amor e estima por si, permitindo-se preencher de todas as coisas que o nutre, colocar o foco em tarefas e questões importantes na sua vida e na vida de outros, a sentir-se mais seguro emocionalmente.
No fundo, o seu bem-estar não poderá advir apenas de uma relação, mas de todo um mundo de possibilidades.
Trabalhar a relação de casal
Numa relação, poderá ser importante sermos vulneráveis e conversar sobre o que nos assusta ou aterroriza, sobre os medos que nos inundam ou sobre o que nos é desconfortável e compreender também a lente que o companheiro terá sobre o que o desagrada na relação.
Empatia e responsabilidade afetiva são fundamentais. Todavia, deverá ser um trabalho da inteira responsabilidade do próprio em aprender como estar e sentir as suas emoções, em acalmar as emoções difíceis, num caminho de construção de maturidade emocional e relacional.
Realizar psicoterapia
Seja psicoterapia individual, como terapia de casal, poderão ser ferramentas fundamentais para maior consciência individual e relacional.
Aprender a confiar
Aprender a confiar pressupõe uma capacidade de olhar e sentir que as intenções do outro são gentis e positivas.
Confiar em alguém pressupõe um trabalho individual de uma segurança inabalável em como não existirá mais a necessidade de sentir medo e terror.
Em que não temos mais que nos defender e proteger, lutar contra algo que nos ameaça, porque confiamos, acima de tudo, nos recursos que temos em nós para lidar caso sejamos magoados.
Arriscar confiar no outro significará, sempre, acima de tudo, confiar no mais profundo de nós mesmos, nesta nossa capacidade de nos mantermos nos nossos próprios pés, sólidos, coesos, sem nos abandonarmos, de transformar qualquer coisas ou situação negativa que possa acontecer, em algo bom ou construtivo, seja crescimento emocional ou aprendizagem.
Muitas vezes, o terror que nos atinge numa situação advém do sentimento de impotência que sentimos diante dela.
Por isso, poderá ser importante aprender a render-se, a colaborar na construção de uma relação mais saudável, a agarrar em si e estimar-se, autopreservar-se, em olhar para si e para a sua vida sem medo do que possa vir, assumindo a responsabilidade pela forma como se relaciona consigo e com os outros.
Aprender a amar-se como é e cuidar de si e a amar realmente o outro. Libertar-se do medo, permitindo-se viver de facto uma intimidade mais autêntica. Vivida! E não autosabotada pelos terrores que nos inundam e amedrontam, nos afastam daquilo que é realmente real: a vida que está a acontecer, aqui e a agora, e a confiança do que somos, do que temos em nós e que nos suporta solidamente. Sempre, em todas as ocasiões!