Crónica. Como ser o amor que procura
São inúmeras as pessoas que olham para os relacionamentos, como uma busca externa, em que o foco é encontrar alguém que seja a pessoa certa. Só então sentem que poderão ser felizes. Mas e se a chave para um relacionamento feliz passar por uma procura e trabalho interno?
A ciência tem vindo a demonstrar que uma conjugalidade satisfeita e feliz tem um papel de elevada relevância no bem estar e saúde física e mental dos indivíduos.
Contudo, são inúmeras as pessoas que consideram que a chave para a sua felicidade e bem-estar emocional reside no encontro com aquele alguém especial que nos complete e nos torne inteiros.
Colocamos no outro, tantas vezes, todo o peso das nossas expectativas pessoais de sucesso relacional e de vida. Um companheiro que se torna a chave milagrosa para algumas das nossas maiores ansiedades.
Tantas vezes, procuramos um companheiro que se quer próximo a uma ideia de perfeição e que seja capaz de responder perante inúmeras expectativas e idealizações pessoais.
Um companheiro que se deseja ligado emocionalmente, com quem se tenha um sexo escaldante, um mentor, um companheiro genuíno para se ter sempre ao lado, um bom comunicador para que consiga ser sensível a todas as nossas necessidades.
Uma relação onde dois se tornam num só. Não uma relação Eu-Tu, mas tantas vezes numa relação Eu-Meu, sem um real compromisso de um trabalho individual e relacional.
No entanto, a ciência vai-nos indicando também em como determinados estilos de intimidade emocional do casal podem ser nocivos para a manutenção do desejo sexual e satisfação amorosa a longo termo.
Entre eles destacam-se elevados níveis de dependência e fusão emocional, com baixos níveis de autonomia ou diferenciação do self (que se assume como a capacidade para adquirir equilíbrio entre o funcionamento emocional, intelectual, intimidade e autonomia nas relações), conduzindo-nos para a importância da reflexão em nos trabalharmos enquanto pessoas e sermos autênticos numa relação amorosa.
Por outro lado, o lugar da alteridade (o espaço de individualidade) de um companheiro nem sempre é fácil de viver. Pode ser sentida como ameaçadora, nomeadamente quando nos possamos sentir mais inseguros ou tenhamos também nós mesmos um menor nível de diferenciação.
Contudo, nunca será na fusão emocional que uma pessoa ou uma relação poderão prosperar. O amor e as relações são de facto essenciais para a nossa sobrevivência enquanto seres vivos. Mas todo o amor do mundo não nos permite, por si só, invadir de felicidade ou permitir que um relacionamento funcione.
Requer prática, cuidado, nutrição, um trabalho consciente de cada um dos elementos. Uma prática e cuidado internos. De conhecimento, de ir ao mais fundo do âmago das nossas questões internas, por mais difíceis que sejam de desbravar.
Um relacionamento conduz-nos a revisitar cada recanto interno, sentimento e memória da nossa história pessoal, convidando-nos a um processo de observação pessoal, ao processamento de algumas das nossas questões ou bloqueios emocionais, assim como à reparação e restauração do que concluímos que foi danificado.
Precisamos de nos levantar e ir rumo ao nosso caminho, mas também precisamos de nos sentar e ficar connosco mesmos. Em silêncio e compaixão.
Quando nos recusamos a olhar para nós e crescer emocionalmente, ancorando a resposta das nossas necessidades emocionais no nosso par amoroso, este movimento pode tornar-se num promotor de ressentimento à medida que o casal vai caminhando na sua jornada relacional.
O amor é como subir a uma montanha
São inúmeros os casais que chegam à terapia com a intenção de mudar o outro. Ansiam por dicas simples que lhes indiquem como melhor comunicar, mas mantêm imensa dificuldade em conversar autenticamente sobre assuntos que podem ser difíceis.
Ansiamos por ver os nossos problemas longe, mas raramente nos questionamos e nos propomos a evoluir, a crescer emocionalmente e em nos transformar para então melhor trabalhar a relação.
Transformarmo-nos, crescer emocionalmente, fazer esse trabalho árduo de nos tornarmos “pessoa” e “adultos maduros” num relacionamento é realmente difícil.
Muitos desejam o resultado final, contudo lutam contra ou desistem do processo de crescimento que é necessário prosseguir com consistência ao longo de todo um caminho por vezes moroso, exigente e que é um caminho da nossa inteira responsabilidade.
Contudo, o amor é como subir a uma montanha. Quanto mais estamos nos nossos próprios pés, no controlo e no poder de nós mesmos, mais do que nas condições existentes à nossa volta, melhor conseguimos relaxar e saborear a subida.
Quando estamos tensos ou aflitos, mais a subida parece ser impossível de alcançar. Contudo, podemos trabalharmo-nos a nós mesmos no processo de subir à montanha. As condições da montanha permanecem as mesmas, nós é que podemos melhorar.
E o que mudaria nas nossas relações se nos propuséssemos a mudar? Focarmos o trabalho da relação também em nós mesmos?
Sim, devemos consciencializarmo-nos e responsabilizarmo-nos que também nós próprios temos aspetos menos saudáveis e disfuncionais que necessitam de ser processados, transformados para vivermos melhor a nossa relação.
Nem sempre é só o outro! Porém, pra acedermos a este lugar de consciência, necessitaremos de enorme maturidade emocional.
Crescer emocionalmente na relação
Crescer emocionalmente na relação envolve, acima de tudo, aprender sobre nós mesmos, confrontarmo-nos com o que existe de mais profundo em nós e cuidar de nós mesmos.
Fazê-lo, enquanto procuramos manter-nos nos nossos próprios pés – ou seja, responsável pelo seu próprio processo -, permite-nos, não só ampliar o nosso desenvolvimento pessoal, como também melhorar a nossa relação amorosa, transformando a dinâmica do casal.
Isto é também uma forma de diferenciação dos elementos da relação de casal. Contudo, saber o que temos de fazer, não é o mesmo que fazer.
Deveremos ter a capacidade de ser consistentes e ir avançando, focados no nosso próprio caminho, sem nos perdermos no que o nosso parceiro está ou não a fazer.
O amor é um compromisso, uma prática
O amor não é – nem assumimos que deva ser – um lugar de perfeição. A perfeição é uma ilusão e apenas nos permite mergulhar ainda mais fundo num enorme sentimento de frustração pessoal e relacional.
Pelo contrário, o amor é um compromisso e envolve uma prática diária de nutrição e cuidado: individual e relacional. Envolve um trabalho de progressão pessoal no aqui e no agora, assumindo consecutivamente um compromisso e empenho de o concretizar igualmente no futuro.
Consiste num trabalho de ir mais fundo em algumas áreas específicas, entre elas:
1. Lidar com questões da infância
Todos nós trazemos uma impressão digital de como funciona o mundo, os afetos, as relações que deriva da forma como fomos amados, abraçados, acolhidos na nossa infância.
A forma como as nossas necessidades foram respondidas, os medos e as crenças que fomos absorvendo, a segurança, a confiança e o amor com que nos abraçaram e olharam ou como possamos ter sido negligenciados ou abusados, afetam toda a nossa vida presente, nomeadamente a forma como vivenciamos os nossos relacionamentos adultos.
2. Construir a nossa autoestima
Possuirmos estima por nós mesmos é essencial para conseguirmos acolhermo-nos igualmente com amparo e compaixão, possibilitando o nosso crescimento e transformação emocional e consecutivamente da dinâmica de casal.
Tantas vezes o nosso amor próprio mais não é do que um espelho de como sentimos que os outros personagens da nossa vida nos amaram.
Avançar na nossa vida mediante um sentido de valor pessoal, confiança interna, conhecimento pessoal e responsabilidade pessoal, com assertividade saudável e respeito pelos nossos próprios limites pessoais pode ser uma das maiores e mais difíceis aprendizagens da nossa vida.
Ancorarmo-nos. Respeitarmo-nos. Aprender a autopreservarmo-nos.
Quando o amor romântico é saudável, poderá ser mais uma forma de enriquecer a nossa autoestima, mas continuará sempre a ser um trabalho só nosso.
3. Abandonarmos o egocentrismo
Devemos permitirmo-nos aprender que nem tudo gira em torno de nós mesmos, que nem sempre temos de ser os primeiros, os mais especiais em tudo o que fazemos na vida.
Somos simplesmente humanos (nós e os outros), sem necessitarmos de uma atitude de defensividade ou controlo, impedindo-nos de nos vermos e ao outro e consecutivamente de perdoar.
4. Aprender a dar e a receber
Atenção, afeto, apreço, aceitação e respeito pela nossa alteridade e do parceiro: são absolutamente importantes para as nossas relações.
5. Libertarmo-nos do Medo nas Relações
Amar é um risco e, por isso, poderá, por vezes, ser assustador entregarmo-nos a uma relação de forma autêntica e vulnerável.
Contudo, é essencial olharmos profundamente para uma série de fatores – como o medo do compromisso, medo de revelar o nosso verdadeiro “eu”, medo da vulnerabilidade, medo do abandono, etc.
É preciso compreender de onde surgem e porquê. Depois, não nos podemos permitir dominar por eles, paralisando-nos e bloqueando-nos, não só no que diz respeito ao amor, como também ao crescimento emocional.
6. Agir com integridade
Precisamos de cultivar padrões intrínsecos de honestidade, respeito, integridade e compromisso.
7. Conhecer e expressar gentilmente as nossas emoções e sentimentos
Um dos grandes pontos essenciais para o nosso crescimento pessoal consiste na capacidade de conhecer e aprofundar o que estamos a sentir.
Nomear emoções para aprendermos então a melhor expressá-las de forma clara, gentil e não violenta, assim como melhor permitir compreender e acolher as emoções do nosso par amoroso.
8. Lidar com conflitos
Um dos grande sinais de um casal disfuncional passa pela incapacidade de navegar os conflitos que surgem no dia a dia.
Os desacordos e as diferentes perspetivas são saudáveis e partes naturais de todas as relações, implicando um importante crescimento relacional e aprofundar os níveis de conexão quando aprendemos como melhor comunicar.
Aprender a melhor lidar com os conflitos e como regular o nosso sistema nervoso é fundamental e um trabalho que é da responsabilidade de cada um de nós.
9. Praticar uma atitude saudável em relação à sexualidade
A sexualidade surge como uma expressão do nosso amor. Todavia, poderá ser importante perceber as crenças e os significados que cada um de nós poderá atribuir à sexualidade, nomeadamente na forma como estas poderão influenciar e limitar a vivência da sexualidade.
O nosso conhecimento pessoal poderá ser fundamental para vivenciarmos este aspecto tão importante de uma relação amorosa e que tantas vezes conduz à perceção de conexão emocional com um parceiro.
10. Aceitação da realidade
Cultivar a aceitação do que é poderá ser uma ferramenta essencial para darmos a volta com coragem aos desafios mais stressantes e angustiantes da nossa vida.
Enquanto atitude mindfulness, poderá ser determinante na nossa vida e para a nossa relação amorosa.
O amor não é algo linear. Nasce da paixão, mas não se mantém o mesmo de forma permanente. Todos os relacionamentos passam por fases, movem-se em ciclos de conexão, desconexão e reconexão, de mudança, perda, luto e renovação, caso estejamos disponíveis em neles progredir e evoluir.
O amor não é um sentimento, é um compromisso e dedicação permanente, em que procuramos tornar-nos na nossa melhor versão. Envolve maturidade e capacidade de compreender e aceitar que um companheiro não pode ser o responsável por nos fazer feliz.
Somos nós os grandes responsáveis por construir e responder com inteligência às possibilidades de crescimento e potencial que uma relação traz até nós.
O amor é um laço consciente, diante do qual podemos ter sempre a possibilidade de escolher as nossas respostas. Somos eternos responsáveis pelas nossas decisões ou de as tomar de forma mais ou menos sensata e consciente.
Desta forma, quando aceitamos e trabalhamos através das mudanças e crises que chegam até nós, podemos evoluir juntamente com a relação.
O grande objetivo do amor não será, então, abraçar as mudanças e crescer com elas, utilizando-as como uma possibilidade de transformação e realização pessoal? E não será este o maior dos presentes que podemos oferecer numa relação?