Como a Psicologia a pode ajudar a compreender a infidelidade
Os caminhos da infidelidade são sinuosos e difíceis de compreender. Até porque, embora praticada em todas as culturas, a infidelidade é condenada em todas elas. Falámos com um psicólogo clínico que respondeu a todas as nossas questões – das mais às menos polémicas.
Cada casal é único nas suas vivências, formas de estar, e claro, nas fronteiras que estabelece para a sua relação. Assim sendo, haverá uma definição de infidelidade que caiba a todos universalmente ou depende de caso para caso?
Esta foi a primeira questão que colocámos a Catarina Canelas Martins, psicóloga clínica e terapeuta Emdr na clínica de Psicologia e coaching Learn2be, e quem nos vai ajudar a conceptualizar a infidelidade e as suas vicissitudes, muito pelo olhar da Psicologia.
Será a ciência que estuda a mente, os comportamentos e as emoções capaz de explicar a conduta de traição? E o que é que os casais procuram quando recorrem a terapia depois desta mesma traição? Poderá o acompanhamento psicológico salvá-los do fracasso? De que forma? Uma pessoa que trai voltará a trair? Foram estas e outras questões que nos levaram ao âmago deste artigo.
Quisemos refletir sobre este tema não sozinhos, mas em conjunto com uma especialista que nos pode ensinar bastante, através da sua sensibilidade vincada e sobretudo pela experiência profissional que tem vindo a adquirir.
O que significa ser infiel?
A primeira coisa que apreendemos com Catarina Canelas Martins – e que até já desconfiávamos – é que não existe uma definição global de infidelidade.
Como nos explica, o universo de cada casal é muito particular. Isto é, o que é válido para uns, pode não fazer o menor sentido para outros.
No entanto, o conceito de fidelidade/infidelidade diz respeito às fronteiras definidas para a relação, e ao que é aceitável neste espaço.
Assim, “podemos definir infidelidade como um desvio daquilo que é aceite na relação pelos seus elementos”, avança.
“E isto pode ser válido quer para ter relações sexuais fora do relacionamento ou apenas conversar com alguém com um teor mais íntimo”, declara a psicóloga a título de exemplo.
O que leva as pessoas a trair?
“Hoje em dia, ser infiel não deve ser visto como um desvio de caráter, tendo em conta que uma traição terá por detrás uma série de questões que devem ser analisadas tanto à luz do indivíduo que trai como ao nível do relacionamento em si”, introduz Catarina Canelas Martins.
De facto, parecem existir múltiplas razões para que uma traição aconteça.
A psicóloga destaca duas dimensões fulcrais a ter em conta: a segurança e a sedução/entusiasmo. Nas relações amorosas, estas tendem a ser inversamente proporcionais. Senão veja.
“É um desafio manter o entusiasmo à medida que a segurança vai aumentando e, em simultâneo, a segurança traz uma paz e tranquilidade necessárias à construção de um projeto a dois, diminuindo a excitação e a novidade”.
Nesta linha, a traição pode surgir quando um dos elementos necessita de viver algo que não está a viver no seu relacionamento, algo mais carnal ou físico. De facto, existem personalidades com mais dificuldade em lidar com a rotina e a previsibilidade, a tal segurança de que se fala.
Catarina Canelas Martins, refere também que o casal pode estar mais ou menos conectado nas dimensões física e emocional.
Assim, “em algumas situações, por uma questão circunstancial ou por sentirem algum tipo de vazio numa dessas dimensões, vão criando laços, por vezes mesmo sem antecipar uma traição, que acaba por acontecer”.
A psicóloga aponta outros casos onde há efetivamente uma compulsão pela sedução, o que leva à procura deste tipo de situações, consumadas ou não.
“As relações extraconjugais podem ainda servir como trampolim para assumir uma sexualidade reprimida (quer em termos de fetiches como de orientação sexual) ou mesmo para promover a mudança necessária na relação conjugal sentida como insatisfatória”.
A infidelidade nos dias de hoje…
Atualmente, com a sociedade que temos (muito em parte influenciada e desenvolvida pelas novas tecnologias) será que surgem novas formas de traição? Isto é, será que também os comportamentos de traição, a par com a sociedade, evoluíram?
“Se antes a traição significava, na maioria dos casos, existirem relações sexuais fora do relacionamento, hoje, além do conceito ser muito mais lato e abranger para muitas pessoas outro tipo de comportamentos como o “flirt”, existem também uma série de meios através dos quais a traição pode acontecer e até ser facilitada”, responde Catarina Canelas Martins.
De facto, as redes sociais ou a forma como os elementos do casal utilizam os seus telemóveis e gerem os seus contactos são muitas vezes temas de conflito que chegam à consulta da terapeuta, segundo nos confidencia.
A psicóloga clínica não tem dúvidas “esta será mais uma área onde o casal precisa de chegar a consenso confortável, em que ambos se sintam seguros”.
Fatores de risco e proteção numa relação
Foi Catarina Canelas Martins que encontrou pertinência em acrescentar este tópico à nossa conversa. Muito pela sua visão psicológica do tema quem questão
Assim, como fatores protetores identifica a importância de a pessoa se conhecer a si mesma, às suas necessidades e conseguir construir na relação uma base de comunicação saudável.
Relativamente aos fatores de risco destacam-se perturbações ao nível da comunicação; valores/desejos muito antagónicos e até mesmo violência física ou emocional.
“O que se pretende é que a relação seja uma base segura onde o casal pode ir partilhando aquilo que não está bem, aceitar esses momentos como parte do relacionamento e até sentir que esses momentos de “desencontro” são potenciadores de crescimento enquanto casal”, conclui prontamente.
Um casal onde houve traição está condenado ao fracasso?
“Diria que a traição é uma crise e, como tal, implica um novo equilíbrio que poderá ou não ser conseguido dependendo do significado atribuído pelos elementos do casal”.
Este não será um caminho linear até porque além do casal existe o que a psicóloga apelida de um sistema envolvente composto por amigos, colegas de trabalho, familiares, prontos a julgar e influenciar a forma como o próprio casal sente aquele momento de fragilidade.
Segundo a terapeuta, o casal não tem necessariamente de fracassar, pelo contrário, pode ser uma oportunidade, o “abanão” necessário para serem abordadas determinadas questões que até então tinham sido ignoradas ou desvalorizadas.
“A grande dificuldade ao nível da recuperação do casal depois de uma traição é a quebra da confiança”. Em consulta, Catarina Canelas Martins refere-nos que será necessário perceber o que aconteceu para que a traição surgisse.
Pela sua experiência, explica-nos que há duas situações que poderão ter desencadeado esta situação, uma com um melhor prognóstico do que outra.
“Quando a traição ocorre devido a dificuldades sentidas por ambos, por exemplo falta de disponibilidade física ou emocional de um dos parceiros, existe uma maior possibilidade para que o casal integre a situação de traição na sua história como um momento de dificuldade que se supera a dois e ainda fortalece mais a ligação preexistente”.
“Contudo, quando a traição acontece por questões mais individuais, como padrões relacionais, poderá ser mais difícil reconstruir e resignificar a situação”.
A Psicologia como recurso para o casal
Questionámos a nossa entrevistada, de acordo com a sua experiência profissional em clínica, acerca do que procuram os casais abalados pela traição quando recorrem a terapia.
“Sobretudo, aquilo que os casais pretendem é realinharem-se no objetivo da relação e, por vezes, só isso já é um desafio enorme. Perceberem se querem ou não continuar juntos e o que fazer a partir daí”.
Parece simplista referido desta forma, pelo que a especialista continua explicando que muitas vezes já existe a decisão de querer continuar, mas não sabem como superar, outras vezes essa clareza não existe.
“A Psicologia poderá ajudar o casal ou a pessoa que procura a consulta a compreender o que levou à traição e como superar”, relata prontamente.
Na prática, que tipo de trabalho é feito em consulta, quer individualmente, quer em casal?
“Ao nível do casal o psicólogo intervém no sentido de compreender o que levou o mesmo até aquele momento em que se encontram, dar suporte a essa reflexão e nesse percurso de desafios múltiplos”.
Como nos explica a terapeuta: “muitas vezes isso implica explorar os desafios que já existiam na relação, ressignificar o sucedido e alcança um estado superior onde ambos os elementos conseguem sentir que aquele episódio levou a um crescimento”.
Contudo, também é verdade que certos casais acabam por perceber em terapia que querem terminar a sua relação. Nestes casos, o apoio psicológico pode ser fulcral, principalmente se existirem filhos da relação, para afastar a disfuncionalidade e se manter uma comunicação saudável do casal parental.
Já individualmente, as pessoas procuram a consulta em diversos contextos: como pessoa que trai/traiu, pessoa traída ou apenas alguém que não está satisfeito com algo no seu relacionamento, mas sem comportamentos de infidelidade associados.
Neste caso, o foco da terapia poderá ser “compreender-se melhor a si, às suas necessidades e aquilo que pretende do relacionamento onde está”.
Alguém que traia uma vez, voltará a trair?
Esta é sempre uma questão polémica dentro da temática infidelidade e é a própria Catarina Canelas Martins que a coloca em destaque, quase no fim da nossa conversa.
Refere-nos, pois, que se trata de um preconceito muito comum, sendo que não é necessariamente verdadeiro. Até porque não são apenas pessoas com determinadas características que traem e até mesmo estas podem libertar-se destes padrões.
“A verdade é que a traição pode dever-se a tantas razões e a sua resolução ter caminhos tão diferentes que acredito que tudo dependerá das pessoas em questão e do que pretendem do seu relacionamento”.
Uma experiência a valorizar
Finalmente, a última parte desta longa conversa. Nesta fase, quisemos aproximar ainda mais a leitora do trabalho feito pelo próprio psicólogo clínico.
Para isso, desafiámos Catarina Canelas Martins a desenvolver o que tem aprendido com estas pessoas e casais e o que lições também nós podemos retirar daqui.
“Enquanto psicólogos somos treinados para o não julgamento e acho que seriamos uma sociedade muito mais feliz se não partíssemos do princípio que o que é certo é X ou Y”, desabafa.
Já em jeito de conclusão e com a mesma serenidade com que iniciou esta conversa acrescenta: “Aquilo que tenho percebido e comprovado é sobretudo que cada pessoa é diferente na forma como sente, pensa e também na maneira como se relaciona”.
“Por esse motivo, aquilo que cada um pretende dos seus relacionamentos também é diferente e isso deve ser respeitado por nós enquanto sociedade”.