Crónica. Um amor que nunca morre: a sobrevivência e o luto por suicídio
Mais cedo ou mais tarde, a morte toca a vida de todos nós. Contudo, quando se trata da perda de uma pessoa querida por suicídio, quem passa pelo luto sente-se num estado de profunda vulnerabilidade, como se tratasse de um buraco tão profundo do qual não se é capaz de sair.
É uma dor tão profunda e intensa, que a Associação Americana de Psiquiatria designa o trauma de se perder alguém que se ama por suicídio como uma vivência “catastrófica”, assemelhando-se na dor, no terror, na impotência e no desespero a uma experiência num campo de concentração.
O desafio de se lidar com a perda de uma pessoa que se ama por suicídio é considerada uma das provações mais difíceis da condição humana.
Sabemos que o tempo cura, mas o tempo sozinho não permite ajudar a pessoa enlutada, podendo levar anos a restaurar verdadeiramente o seu bem-estar emocional, pelo que o choque e a perda parecem muitas vezes consumir aqueles que vivenciam esta situação.
Compreender o suicídio
O suicídio poderá ser compreendido como um comportamento auto-destrutivo, realizado pelo sujeito com uma intenção deliberada de pôr fim à própria vida, tantas vezes como forma de expressar o seu sofrimento ao sistema no qual está inserido.
Surge, assim, como uma comunicação que muitas vezes é dirigida aos demais à sua volta, nomeadamente à família, sob forma de apelo, de desafio, de fuga ou como ideia de renascimento.
Associados aos comportamentos suicidários incluem-se outros fenómenos, como a tentativa de suicídio, o comportamento para-suicida e a ideação suicida.
Neste sentido, a tentativa de suicídio pode ser definida como um ato ou gesto autodestrutivo não fatal, mediante uma automutilação ou autoenvenenamento. Ou seja, refere-se ao indivíduo que atenta contra a sua própria vida, mas que não conseguiu o seu objetivo por razões diversas, sendo mais frequente no sexo feminino.
A tentativa de suicídio pode ser considerada como para-suicídio, isto é, um ato ou comportamento não fatal, cometido voluntariamente e com o qual não apresenta uma clara intenção de morrer, mas no qual se arrisca a danos em si mesmo (mais ou menos graves) caso não exista a intervenção de outrem.
Pode também ocorrer na sequência da ingestão excessiva de determinadas substâncias com o intuito de provocar alterações desejadas, mediante as consequências reais ou esperadas. Este poderá também referir-se ao ato em que o sujeito se automutila, no sentido de provocar uma lesão deliberada.
Deste modo, o para-suicídio mimetiza o suicídio, porém não visa a morte como aniquilação consciente, mas sim como um jogo comunicacional na expectativa de algum tipo de mudança nas esferas sociais e familiares.
Este poderá associar-se ainda a diversos comportamentos de risco, nomeadamente no consumo de substâncias tóxicas, de álcool ou drogas; na condução em excesso de velocidade, alcoolizado, drogado ou em contramão; na vivência de uma sexualidade não controlada ou com relações de risco; na adoção de comportamentos mais arriscados tornando-se propício a distrações ou acidentes; na alteração súbita de peso, na maneira de agir ou de vestir, entre outros.
O suicídio e as tentativas de suicídio são uma manifestação clara de um profundo sofrimento emocional e os motivos que conduzem alguém ao suicídio são inúmeros e complexos, afetando pessoas de todas as idades e em qualquer momento do ciclo de vida.
De um conjunto de causas potencializadoras do suicídio, podemos encontrar o vazio profundo e ausência de sentido e propósito de vida, de alguém que não conseguiu encontrar a razão e o estímulo para viver, não suportou as suas preocupações, não foi capaz de perceber a vida ou não encontrou quem o auxiliasse a equilibrar.
Fatores de risco
Não obstante, surgem alguns fatores de risco que aumentam a possibilidade de uma pessoa considerar suicidar-se:
- Tentativas prévias de suicídio;
- Histórico de problemas de saúde psicológica;
- Histórico de abuso físico ou sexual;
- Histórico familiar de problemas de saúde psicológica e de suicídio;
- Existência de uma doença grave;
- Situações de incapacidade ou dor crónica;
- Acontecimentos traumáticos recentes na vida pessoal (como por exemplo, acidentes, divórcio, perda de emprego, morte de pessoas próximas);
- Situações de vulnerabilidade social como pobreza, desemprego, perdas financeiras, guerras, desastres naturais, discriminação e exclusão social, bullying, ciberbullying, conflitos em torno da identidade sexual;
- Situações de ausência de apoio social;
- Sentimentos de solidão e de intensa desconexão com familiares, amigos e comunidade em geral.
Os números são tão violentos quanto a dor!
Todos os dias, em média, cerca de três pessoas resolvem pôr termo à vida, sendo a segunda causa de morte entre os jovens dos 15 aos 34 anos.
No mundo, o número sobe para um suicídio a cada 40 segundos, o que perfaz cerca de 800 mil por ano, sendo o número de suicídios tentados superior ao daqueles que encontram um desfecho fatal.
Amor e futuro interrompidos
Quando uma pessoa se suicida, as repercussões dessa morte atingem diversos níveis, afetando familiares e pessoas próximas ao falecido, no contexto individual e social.
Por se tratar de uma morte, muitas vezes repentina e violenta, o suicídio causa um enormíssimo sofrimento e exige dos sobreviventes ao suicídio (designação atribuída na literatura àqueles que procuram sobreviver ao impacto deixado pela morte por suicídio da pessoa que amavam) muita energia psíquica para elaborar o luto.
Por norma, instala-se uma profunda dor naqueles com quem a pessoa falecida privava de forma mais intima.
O confronto da morte e o processo de luto de uma pessoa querida por suicídio é diferente de outros processos de lutos e deveras desafiante. Acima de tudo, porque a pessoa querida, ao confrontar-se com um enorme sofrimento, escolheu morrer, conduzindo o sobrevivente do suicídio a uma montanha-russa de emoções dolorosas:
• Culpa (Em nenhum processo da vida se tem controlo de nada, muito menos face à morte. Contudo, o sobrevivente do suicídio muitas vezes poderá confrontar-se com intensos sentimentos de culpa por não ter sido capaz de prevenir e evitar o suicídio da pessoa querida);
• Estigma (A sociedade mantém um estigma relativamente ao suicídio, demonstrando não saber como lidar com estas situações de morte. Deste modo, os sobreviventes do suicídio não encontram, tantas vezes, o suporte que realmente necessitam. No seu lugar, encontram culpa, julgamento e até exclusão);
• Raiva (A raiva e incompreensão são alguns dos sentimentos que os sobreviventes do suicídio poderão sentir. A pessoa querida que se perdeu para o suicídio é, ao mesmo tempo, o perpetuador da sua própria morte, gerando uma confusão de sentimentos vividos entre o amor e o ódio);
• Desconexão (Muitas vezes, a raiva, a tristeza, a culpa e os ‘porquês’ conduzem o sobrevivente do suicídio a um sentimento de total desconexão e distanciamento das suas memórias, conduzindo-o a um maior sentimento de isolamento e solidão, caindo num abismo profundo do qual parece não se conseguir sair).
Pode ser importante referir que, as pessoas que sofreram recentemente uma perda por suicídio correm um risco maior de ter pensamentos suicidas. Depois de experimentar a perda de um ente querido, não é incomum desejar morrer também ou sentir que a dor é insuportável.
O processo de luto e as emoções
Não há duas pessoas que experimentem a perda da mesma maneira. Alguns podem apresentar sintomas físicos, como dores de cabeça ou alterações no apetite e/ou nos padrões de sono.
Uma pessoa em luto pode experimentar alguns ou todos destes sentimentos:
• Choque: “Sinto-me entorpecido” Sentimento de estar atordoado ou distante são uma resposta comum ao trauma. O choque pode proteger a mente de ficar completamente sobrecarregada, permitindo que a pessoa continue a funcionar;
• Negação: “Sinto-me bem”. Às vezes, as pessoas podem, consciente ou inconscientemente, recusar-se a aceitar os factos e informações sobre a morte de outra pessoa. Esse processo pode ser ainda mais desafiador quando há pouca informação ou explicação sobre o suicídio de um ente querido.
Eventualmente, ao reunir informações e aceitar que talvez não seja capaz de saber tudo, a pessoa poderá começar a processar a realidade desse evento trágico e todas as emoções que o acompanham. Com o tempo, a mente torna-se mais capaz de analisar o evento trágico, e isso permite que a negação dê lugar a emoções menos perturbadoras;
• Culpa: “Acho que foi culpa minha”. Sentimentos de culpa após um suicídio são comuns. A culpa vem da crença equivocada de que deveríamos ou poderíamos ter evitado que a morte acontecesse. A culpa também pode surgir quando aconteceram problemas não resolvidos com o falecido ou quando o sobrevivente sente arrependimento por coisas ditas ou não ditas.
Na verdade, ninguém pode prever o futuro, nem pode conhecer todas razões das ações de outra pessoa. É da natureza humana culpar-se a si mesmo quando experimenta a perda, em vez de aceitar a verdade de que algumas coisas estavam fora do seu controle, a vulnerabilidade da vida e do sofrimento humano;
• Tristeza: “Como pode isto acontecer?”. Uma vez que as reações iniciais à morte por suicídio tenham diminuído de intensidade, sentimentos de tristeza e depressão podem passar para primeiro plano. Esses sentimentos podem estar presentes por algum tempo e podem, às vezes, ser desencadeados por lembranças do ente querido que se perdeu.
Sentimentos de desesperança, frustração, amargura são comuns quando se lida com a perda de um ente querido por suicídio. Normalmente, aprenderá gradualmente a aceitar a perda e a abraçar as memórias felizes e tristes;
Raiva: “Como puderam fazer isto comigo?”. Sentimentos de raiva em relação à pessoa que se perdeu podem surgir, assim como um profundo sentimento de abandono. Outros sentem raiva de um culpado real ou percebido. Esses sentimentos podem ser complexos e angustiantes quando são direcionados à pessoa que morreu.
É importante saber que é possível sentir raiva de alguém e ainda assim mantê-lo querido no coração. Muitas vezes, a raiva é necessária para começar devagarinho a processar e a aceitar a realidade da perda;
Aceitação: “Posso sentir falta dele e continuar a viver”. O objetivo final é aceitar o evento trágico como algo que não poderia ter sido evitado e não pode ser mudado. Aprender que aceitar não é o mesmo que esquecer. Aceitar significa conviver pacificamente com a perda.
A aceitação é aprender a viver novamente e ser capaz de reabrir o coração para a vida.
Processar o luto e a perda saudavelmente
Falar de suicídio pode ser difícil para quem vivenciou tamanha perda. Diferentes culturas veem o suicídio de maneiras diferentes, e às vezes, discuti-lo, conversar sobre este pode ser um gigante desafio.
O confronto com o suicídio pode ser vivido pelo sobrevivente como sendo segregador, empurrando a pessoa para um profundo sentimento de solidão.
Neste sentido, torna-se fundamental o sobrevivente rodear-se das pessoas certas na sua rede de apoio, de modo a vivenciar a perda e as suas emoções de uma maneira mais serena.
O sobrevivente do suicídio de uma pessoa querida pode sentir-se profundamente mudado pela experiência de perder alguém que ama desta forma tão violenta, contudo, poderá reaprender a viver e a crescer com esse desafio, mesmo que isso implique procurar ajuda profissional para lidar com a perda.
Poderá ser importante o sobrevivente permitir-se ser paciente, permitir-se perceber os seus próprios limites dia após dia, da sua sobrecarga emocional, permitir-se viver no momento presente, expressar-se emocionalmente, mesmo quando isso significa ficar em silêncio consigo próprio, divertir-se e frequentar eventos sociais e familiares quando for oportuno ou simplesmente estar e cuidar de si.
O processo de luto pela morte de alguém que se ama para o suicídio é e será sempre um tempo ferido que necessita de encontrar empatia perante tamanha dor e vulnerabilidade.
O amor e o futuro conforme se desejava foi interrompido. O suicídio é como um tsunami que destrói tudo à sua passagem. Haverá sempre um antes e um depois. Contudo, é possível uma reconstrução da vida, é possível voltar a sentir-se feliz. Afinal, o amor nunca morre.
Linhas de Apoio
Linha SOS Palavra Amiga – 232 42 42 82.
Todos os dias, das 21 à 01 horas.
Centro SOS-Voz Amiga: ajuda na solidão, ansiedade, depressão e risco de suicídio.
Telef.: 21 354 45 45 – Diariamente das 16 às 24h.
Telef.: 91 280 26 69 – Diariamente das 16 às 24h.
Telef.: 96 352 46 60 – Diariamente das 16 às 24h.
Site: www.sosvozamiga.org.
Linha Telefone amigo – 239 72 10 10.
Todos os dias, das 17 à 01 hora.
Linha Telefone Amizade – 800 205 535.
De segunda a quinta, das 16 à 01 hora.
Sexta e Sábado, das 19 às 21 horas.
Sílvia Coutinho é psicóloga e terapeuta familiar e de casal. Em terapia, procura promover relações com maior conexão emocional, com famílias, casais e a nível individual. Adora refletir sobre as emoções mais profundas que sentimos quando nos relacionamos e acredita ser através destas relações, vividas de forma saudável, que conseguimos também individualmente potenciar o nosso bem-estar, equilíbrio e felicidade. Siga-a no Instagram.