Crónica. A Sombra da Infidelidade
Condenamos a traição, a transgressão, a mentira, a desonestidade, a duplicidade, o esquecimento dos valores que para nós tanto representam e significam, mas o que é certo é que quando perguntamos “O que faria se fosse você o adúltero?”, a resposta centra-se, por norma, precisamente na continuidade daquilo que condenamos.
Talvez nada nos magoe tanto como o amor. A infidelidade é talvez a maior de todas as feridas que um casal poderá viver, sem dúvida a mais catastrófica e dilacerante. Contudo, compreender a infidelidade não significa justificá-la, mas sim compreender a nós mesmos, as pessoas em geral, as relações e a sua estrutura, as emoções, as atitudes pessoais e culturais perante o amor, o desejo e o compromisso.
Todos nós somos, de alguma forma, moldados pela influência da ideia do amor romântico. São os contos de fadas que representam a magia e a intensidade da paixão, recalcando a importância da união, do amor espontâneo, vibrante e fluido. Contudo, no dia a dia da vida real, são muitos os casais que se vão confrontando com uma realidade bastante diferente.
Com o passar do tempo, o entusiasmo excitante da paixão inicial conduz o casal, inevitavelmente, para uma intimidade profunda que progride na sua evolução em direção a um companheirismo, em que a diminuição do desejo é um facto mais ou menos aceite por ambos.
Como pode então o casal, num relacionamento real, com pessoas de carne e osso, conciliar a intimidade emocional tão desejada com o desejo ao longo do seu ciclo de vida conjunto, por vezes de 60 anos ou mais? Será esta desconexão, cansaço ou distanciamento o responsável pelas infidelidades?
Tantas vezes associamos a infidelidade a casamentos ou a relações que estarão a passar por dificuldades. Na verdade, também é por tudo isto, mas esta não é a razão de todas as infidelidades.
São tantos os elementos dos casais que partilham entre as quatro paredes do consultório o quanto amam a sua pessoa parceira, mas que se encontram de momento a ter um caso extraconjugal. Neste sentido, os fatores que conduzem a uma infidelidade nem sempre andam em torno da felicidade, da conexão ou da falta destas. Na verdade, os casais felizes também traem!
Qual a percentagem de pessoas que traem?
Em cerca de 20 anos de prática clínica, talvez nunca tenha acompanhado e observado tantos casos em que a infidelidade é o tema central, seja em terapia de casal, seja em processos de psicoterapia individual.
Contudo, quando nos centramos em números sabemos que estes poderão ser muito variáveis e pouco fidedignos, tendo em conta o secretismo e uma certa vergonha que as pessoas cultivam diante deste comportamento. Não obstante, os dados apontam que cerca de 26 a 70% das mulheres traia ou já tenha traído a sua pessoa parceira e cerca de 33 a 75% dos homens já tenha sido infiel.
Os números têm aumentado bastante nos últimos anos, nomeadamente diante da evolução digital que vamos experienciando. As redes sociais e a internet permitem outras formas de contacto, assim como novas formas de infidelidade.
O que é a infidelidade?
Existem múltiplas formas de traição numa relação. Vários são os comportamentos que poderão hoje ser sentidos e interpretados como infidelidade, entre os quais destaco:
- relações sexuais com outrem que não a pessoa parceira;
- proximidade emocional com outra pessoa;
- escrever e enviar mensagens de cariz sexual ou emocional/íntimo com uma terceira pessoa;
- assistir pornografia;
- confidenciar a vida íntima e privada com outrem;
- os likes e os flirts nas redes sociais;
- ou outras condutas que poderão ser sentidas pela pessoa parceira como sendo substituída, menos importante, não escolhida, excluída, desrespeitada, entre outros.
Definir o que é infidelidade poderá ser bastante simples ou verdadeiramente complexo e, por isso mesmo, deverá ser debatido pelo casal o que para cada um é sentido e interpretado como infidelidade, delimitando desta forma aquilo que é aceite ou não aceite na relação, quem são enquanto casal e quem será este Nós que procurarão construir ao longo de toda uma vida.
Neste sentido, uma infidelidade corresponde a tudo aquilo que quebra o contrato entre estas duas pessoas, recordando-nos que este contrato e tudo o que nele cabe (o eu, o tu, o nós, o que está dentro, o que está fora, o que nos separa, o que nos aproxima, os terceiros elementos, os limites, etc.), poderá e deverá ser revisitado e renegociado ao longo de todo o ciclo de vida do casal. A forma como cada um olha para uma atitude, um comportamento, uma necessidade, um desejo, poderá ser diferente consoante a fase de vida de cada casal.
Ainda assim, a infidelidade poderá contemplar algumas características específicas, tais como:
• O Secretismo – uma infidelidade vive sempre na sombra, mediante uma atitude de secretismo, de ocultação, o que por norma potencia o perigo e o risco da descoberta e desta forma o erotismo e o entusiasmo vibrante da relação extraconjugal;
• A Alquimia Sexual – uma infidelidade pode incluir envolvimento sexual ou não, mas inclui sempre o desejo e o erotismo. Na verdade, um beijo ou um toque imaginados poderão ser tantas vezes tão ou mais poderosos e excitantes, dos que são efetivamente consumados;
• O Envolvimento Emocional – a infidelidade pode centrar-se num maior ou menor grau de envolvimento emocional com a terceira pessoa, mas refere-se igualmente à importância e profundidade emocional que a experiência extraconjugal proporciona.
Porque traímos?
Poderá ser importante recordar que o ser humano é um universo complexo. Não somos uma só coisa, e não somos de todo lineares! Não obstante, existem um conjunto de causas bastantes estudadas, nomeadamente:
• Causas relacionais (quando encontramos dificuldades relacionais, que distancia os elementos do casal);
• Causas individuais (do próprio, como por exemplo a sua psicopatologia, como perturbações de personalidade, depressão, narcisismo, psicopatia e a forma como percecionamos o compromisso com o outro; por vezes um olhar de como percecionámos ou vivenciámos a relação dos nossos pais e cuidadores e como estas influenciam as atitudes adotadas nas nossas próprias relações, o nível de autonomia e dependência que percecionamos na relação com a nossa pessoa parceira, a forma como nos vemos e vemos o outro, etc).
A escravidão da felicidade
Por outro lado, verifica-se que muitos de nós procuram investir nas suas relações, e que a partir destas se obtenha um estado de felicidade e bem-estar legítimos. Contudo, importa enquadrar que, enquanto sociedade, vamos vivendo num lugar de escravidão absoluta diante da felicidade.
Hoje, é imperativo sermos felizes! Acreditamos ter absolutamente o direito a obter aquilo que tanto queremos, a experienciar as nossas maiores expectativas, sonhos e desejos, a tal felicidade que equacionamos. O amor assume em nós a conotação de um lugar de entusiasmo, paixão e desejo permanente, e já não de esforço ou sacrifício como há alguns anos atrás. Ambicionamos uma pessoa parceira que nos complete, acrescente, inspire e transforme!
Queremos constantemente novidade e intensidade! Hoje o nosso maior dever e responsabilidade é em relação a nós mesmos. Hoje em dia, o Eu e os nossos sentimentos/necessidades parecem ser absolutamente centrais nos nossos objetivos, mesmo que muitas vezes tudo isto seja à custa da infelicidade e dor de quem amamos.
O que acontece quando não encontramos na relação o estado de entusiasmo permanente? O que acontece quando a nossa pessoa parceira é pessoa imperfeita e nem sempre nos corresponde, acrescenta ou estimula? A sociedade atual instiga-nos a “deitar a pastilha fora quando esta perde o sabor”, a adquirir novo em vez de consertar.
Vamos esquecendo que o amor é, mais do que um sentimento, uma escolha diária, diante dos acertos e adversidades do dia a dia de uma relação normal, que se quer que seja longa. Talvez, por um lado, esta sociedade do consumo, do imediato, do direito à felicidade porque a vida é muito curta para sermos infelizes, nos possa conduzir também mais facilmente a uma infidelidade, nomeadamente quando encontramos alguém que nos devolve novamente o brilho no olhar e as borboletas na barriga.
O poder emocional da transgressão
Necessitamos de regras e segurança para vivermos bem e de forma saudável, mas a sua transgressão e o risco provocam-nos um arrepio na pele que se poderá tornar num poderoso afrodisíaco. Na verdade, a maioria das relações de infidelidade necessitam desta ocultação e desafio, e quando liberados após um divórcio, a sua grande maioria não sobrevive. Talvez, esta excitação e adrenalina possa ser também em si uma das grandes razões que conduzem a uma relação extraconjugal que se entranha como um poderoso vício.
Por outro lado, consiste também não só na relação perigosa que se viveu, mas em tudo o que nela se descobre e alcança dentro de si mesmo perante a experiência de infidelidade. O encontro íntimo consigo mesmo, talvez esta seja a grande motivação de todas! O nosso velho Eu de outrora, aquele Eu mais jovial, dinâmico, esperançoso e alegre, partes de nós exiladas ou perdidas no dia a dia pesado e por vezes cinzento que nos fez esquecer de quem somos na totalidade Nós.
Talvez seja muito sobre as vidas que não vivemos, os sonhos que ainda não concretizamos, das partes de nós e da nossa identidade que ainda não descobrimos, a infinidade de vida e potencialidades que foram sendo perdidas pelo caminho e nem sempre nos permitimos a encontrar. A infidelidade pode ser muitas vezes uma porta aberta para tudo isto que existe de mais recôndito em nós.
A infidelidade como um trauma relacional
A infidelidade é uma forma de abuso emocional numa relação, tendo em conta que consiste num comportamento que viola e ultrapassa os limites definidos na relação de casal. É aos olhos da ciência uma ferida de vínculo ou trauma relacional, tendo em conta que ocorre uma violação absolutamente chocante nos princípios basilares do vínculo que construímos com o nosso parceiro.
Quando a nossa pessoa parceira, lugar de segurança e confiança, nos mente e desrespeita, a vida conforme a conhecíamos dá lugar a um intenso terramoto, virando-a do avesso. “Foi como se o chão desaparecesse por debaixo dos pés ou acontecesse uma avalanche.”, “Como se a minha vida, conforme sempre a conheci, tivesse acabado!” ou “Naquele dia, uma parte de mim morreu.”.
Não só é a relação que fica desfeita, entrando numa profunda crise conjugal, como também a pessoa que é vítima de infidelidade, que vê toda a sua identidade e sistema de crenças e valores colocado em causa. Também o adúltero poderá sentir a sua identidade em causa com este acontecimento, agora que se confronta com a descoberta e reação da pessoa parceira. “Quem sou que fiz tanto mal a alguém importante para mim? Que pessoa é esta?”.
É com grande frequência que escuto em consulta os casais debaterem-se com a necessidade de esquecer estas situações para seguir em frente. Mas tal é impossível! A situação de infidelidade fica entranhada em cada poro, em cada célula do corpo, mediante uma sensação de ameaça e perigo. Uma ferida que nos atira para o lugar profundo de choque, abandono, medo, rejeição e de desesperança, alterando a perceção de certeza, previsibilidade, segurança e controlo.
As feridas de vínculo, por serem extremamente dolorosas e poderem conduzir à rutura amorosa, requerem um processo de reparação para serem de facto saradas, resolvidas ou ultrapassadas, podendo requerer algum tempo e bastante consistência para isto acontecer. Requer cuidar e reconstruir o vínculo, a confiança que foi totalmente quebrada, a segurança emocional. Conseguir transitar da vergonha do comportamento para a culpa, trazer empaticamente o elemento que magoou para o lugar do parceiro ferido e sarar as feridas, entrar num processo de escuta desta dor e angústia tão grandes.
Contudo, embora seja uma situação muito dolorosa para ambos os parceiros, a resolução da situação é possível, com a ajuda de terapia de casal. Nomeadamente, através de um longo processo de suporte emocional da pessoa que amamos, do desenredar dos significados emocionais da experiência de infidelidade e do reconstruir de uma relação que naquele momento morreu para reconstruir a nova relação, assente nos pilares e nos significados que agora são tão importantes para o antigo mas agora novo casal.