Relações e família

Crónica. O paradoxo do amor e do desejo na relação amorosa

O amor é um lugar de afirmação e, ao mesmo tempo, um lugar onde reside a possibilidade de transcendência de quem somos. Mas o que acontece ao amor e ao desejo numa relação de longa duração?

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Crónica. O paradoxo do amor e do desejo na relação amorosa Crónica. O paradoxo do amor e do desejo na relação amorosa
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Sílvia Coutinho, psicóloga
Escrito por
Jul. 23, 2022

Todos nós somos de alguma forma moldados pela influência da ideia do amor romântico. Contam-nos muitas vezes as histórias dos príncipes e princesas que foram felizes desde o primeiro dia para sempre. Sem sobressaltos ou grandes questões desde o dia em que venceram o obstáculo maior que os conduziu à escolha de ficarem juntos.

São os contos que representam a magia e a intensidade da paixão, da importância da união, do amor espontâneo, vibrante e fluido. Contudo, no dia a dia da vida real, são muitos os casais que se vão confrontando com uma realidade bastante diferente. Do entusiasmo da paixão inicial, sentem as suas vidas aparentemente a estagnar.

Muitas vezes, a realidade da intensidade profissional pesa, gera-se um cansaço insuportável à beira da exaustão que retira o foco e a disponibilidade que a intimidade profunda exige.

Juntam-se muitas vezes os filhos, que requerem igualmente uma presença e dedicação plena, assim como os papéis e as questões de género que a sociedade teima em colocar e que desequilibram ainda hoje os casais.

A intimidade pressupõe o processo de amar alguém sem nos perdermos a nós mesmos
Sílvia Coutinho, psicóloga Sílvia Coutinho, psicóloga

Com o passar do tempo, os casais confrontam-se então com o enfraquecer do desejo, com a ausência das borboletas na barriga, com um estado de entusiasmo que deixou de ser permanente, fazendo-se representar por uma ausência de brilho no olhar sempre que se olha para o companheiro que se conhece há já muito tempo de cor.

Do entusiasmo excitante da paixão inicial, o casal parece encaminhar-se de uma intimidade profunda que vai progredindo na sua evolução para um companheirismo, em que a diminuição do desejo é um facto mais ou menos aceite por estes.

Como pode então o casal de um relacionamento real com pessoas de carne e osso conciliar a intimidade emocional tão desejada com o desejo ao longo do seu ciclo de vida conjunto, por vezes de 60 anos ou mais?

Um mundo conhecido ou um mundo inteiro por descobrir?

Poderá ser importante refletir sobre o facto de o amor assentar em dois importantes pilares.

Por um lado, a nossa necessidade de pertença, de confiança, de ligação, de conexão, de vinculação forte, segura, estável e profunda. De empatia e validação. E, por outro lado, a nossa necessidade de autonomia, de sermos pessoas individuais, inteiras, capazes, competentes, curiosas, com necessidade de integrar nas nossas vidas aventura de descobrir, prazer de viver e de avançar mesmo que com um friozinho na barriga pelo que é desconhecido, novo e, por isso, excitante.

À medida que o encontro evolui da fantasia de um amor idealizado para a realidade de um amor real, a projeção de como será aquele outro começa a diminuir ao dar lugar uma familiaridade deste. Ou seja, à medida que o casal se vai tornando emocionalmente íntimo, os alicerces da segurança emocional, da confiança e da estrutura tornam-se mais sólidos, mas a fonte do desejo poderá começar a diminuir por ir deixando de existir o espaço ou a separação psicológica entre aquele “Eu” e aquele “Tu”.

Assim, quando a intimidade emocional do casal resulta em fusão emocional, não é a falta de proximidade que impede o desejo, mas sim a proximidade a mais.

A intimidade pressupõe o processo de amar alguém, sem nos perdermos a nós mesmos. Estarmos para o outro, sem deixarmos de estar para nós. De permanecermos dentro do mundo do outro e concomitantemente dentro de nós mesmos também.

Envolve uma interdependência (eu preciso de ti e tu precisas de mim), mas não de uma fusão emocional. Envolve igualmente uma interindependência (eu sou autónomo e tu também), mas não de separação tal que deixemos de nos cruzar e encontrar.

Com muita distância não pode haver conexão, mas o excesso de fusão impossibilita a separação saudável de dois indivíduos distintos.

Quando os dois se tornam um, então não há nada mais para conhecer, para explorar, para transcender, nenhum lugar do outro para visitar, nem nenhum mundo interno por descobrir, porque o outro deixa simplesmente de existir.

A conexão deixa de acontecer, porque deixa de haver alguém para se conectar.

A atração diminui quando se perde o sentido de autonomia individual
Sílvia Coutinho, psicóloga Sílvia Coutinho, psicóloga

O paradoxo da intimidade

É este o paradoxo do amor e do desejo: um antagonismo aparentemente irreconciliável em que o amor anseia por proximidade profunda e o desejo por uma distância saudável.

Ou seja, o paradoxo da intimidade assenta na ideia de que:

  • A intimidade alimenta o amor, mas o prazer sexual exige algum distanciamento (de experimentar as nossas próprias emoções, desejos, sem a procura constante da validação do outro);
  • O aumento da intimidade emocional entre os parceiros conduz à diminuição do desejo sexual;
  • Os companheiros queridos e protetores nutrem a nossa necessidade de segurança e conexão, mas poderá potencialmente tornar-se mais difícil de sexualizá-los;
  • A atração diminui quando se perde o sentido de autonomia individual;
  • O desejo erótico cresce no mistério, no desconhecido e no imprevisível e não na familiaridade, nas rotinas e nos hábitos das relações;
  • Criar uma distância psicológica dentro do conforto da proximidade é essencial para sustentar o desejo num relacionamento amoroso de longa duração.
No mito do amor espontâneo, o casal muitas vezes acredita que o amor acontece porque estava destinado e que o desejo se mantém no tempo naturalmente
Sílvia Coutinho, psicóloga Sílvia Coutinho, psicóloga

Os casais modernos veem-se assim confrontados com o enorme desafio de reconciliar a necessidade de segurança e previsibilidade com o desejo de descobrir o novo, o misterioso, o vibrante e fascinante.

Por outro lado, veem-se ainda a braços para conciliar todos os fatores referidos anteriormente e que influenciam a sua intimidade (o trabalho, os filhos, o tempo de descanso, as  rotinas, os conflitos, a rede de apoio/famílias de origem, etc).

Assim, as sementes de uma intimidade emocional e sexual plena e satisfatória poderão passar por algumas questões essenciais e que os casais deveriam refletir de forma profunda:

  • A capacidade de diferenciação do self dos elementos do casal (a capacidade de nos mantermos leais a nós próprios na presença de outrem tão íntimo, mantendo a sua integridade física e emocional e a sua alteridade/autenticidade/unicidade);
  • A autoresponsabilização do casal e a negociação constante.

A inteligência emocional e erótica poderá assim passar por criar uma distância saudável onde os dois elementos se diferenciam enquanto duas pessoas separadas, únicas e inteiras que são, ao mesmo tempo que se torna essencial dar vida a esse espaço que surge entre o “Eu” e o “Tu”, nomeadamente através da mão do erotismo.

Contudo, este passo poderá requerer a desconstrução do mito do amor espontâneo que poderá existir em nós e substituí-lo por uma responsabilização por parte de cada elemento do casal em trabalhar a relação (a intimidade emocional e o desejo).

No mito do amor espontâneo, o casal muitas vezes acredita que o amor acontece porque estava destinado e que o desejo se mantém no tempo naturalmente.

Poderá ser igualmente importante que no decurso de um ciclo de vida de uma relação duradoura, o desejo que o casal experimenta no seu momento presente poderá não se manter sempre como era no início.

Neste sentido, a satisfação na relação requer que o casal não permaneça numa espera passiva pelo regresso espontâneo do desejo, sendo importante referir que o amor e o desejo são elementos bastante sensíveis às diversas condições da relação e da vida, não sendo sempre algo linear e que requerem ser conscientemente nutridos. Requerem esforço, responsabilidade e investimento do casal em serem promovidos ao longo da relação.

Poderá ser ainda importante os casais alargarem a sua comunicação sobre a intimidade emocional e sexual e trazerem as suas questões para cima da mesa de negociação da relação.

Na verdade, a intimidade também advém das tensões, questões internas próprias que são reveladas e colocadas em relação, mediante a forma como cada elemento se abre, se expõe, se vulnerabiliza, de como cada elemento partilha com o outro e como negoceiam em conjunto de forma flexível, mas consciente o que cada um deseja ou não, o que cada um quer ou não, com o que cada um se sente confortável ou não.

Questões que os casais deveriam fazer sobre a sua intimidade emocional e sexual

1. Qual é a força que traz para a sua relação? Quais são os dilemas/questões que mais carrega consigo?

2. Quando é que se sente mais livre na sua relação?

3. O que gostaria de experienciar no sexo? (ex.: carinho, suavidade, proximidade, intensidade, agressão, transcendência, conexão espiritual, rebeldia, entrega, dominância, abandono, desvinculação, liberdade, liberdade com responsabilidade, dar, receber, possuir, etc.).

4. Quais são as mensagens dominantes com as quais cresceu sobre questões do género (rapazes vs. raparigas; homens vs. mulheres).

5. Tendo em conta os cinco sentidos, quais são os mais sexuais/excitantes para si? (ex.: ver, ouvir, cheirar, tocar, provar).

6. Com quais dos seguintes verbos se sente mais confortável e quais aqueles que gostaria de desenvolver? (ex.: perguntar, ter, dar, receber, recusar).

7. Quão confortável se sente em comunicar as suas necessidades sexuais (o que quer e o que não quer)? E as suas necessidades emocionais (o que quer e o que não quer)?

8. Qual era a atitude da sua família de origem relativamente ao sexo à medida que foi crescendo? (ex.: confortável, natural, estranha, repressiva, culpabilizadora, envergonhante, abusiva).

9. Deseja a exclusividade sexual na sua relação?

10. O que é uma conversa difícil para si em torno da intimidade e sexualidade? Como se sente? O que acontece no seu corpo? Qual é a história por detrás desse tema difícil?

Exigimos que o nosso parceiro seja casa ou âncora como um lugar de amor, de segurança e previsibilidade. De pertença e proteção. Lugar onde todas as tempestades da vida não nos conseguem desmoronar. Um lugar onde também vive o desejo
Sílvia Coutinho, psicóloga Sílvia Coutinho, psicóloga

Não obstante, os casais não precisam de tudo debater e comunicar entre si. Há uma linguagem que não usa palavras, não usa voz e que nos permite aprofundar e intensificar a intimidade emocional e sexual na relação de casal.

Necessitamos de trabalhar e aprofundar formas de expressarmos as nossas emoções de uma forma clara. Expressarmos sem rodeios, ruídos e impurezas na mensagem, as nossas necessidades, as nossas emoções que são de uma riqueza inquantificável numa relação.

Que não nos faltem os olhos e ouvidos e o toque às mensagens igualmente ricas que não usam palavras e que apenas são escutadas e entendidas quando apuramos a nossa consciência e os nossos sentidos, aprendendo a estar lá para a relação por inteiro.

Do mesmo modo, há espaços que são realmente íntimos e privados a cada um dos elementos. Há jardins que são realmente proibidos e essas fronteiras pessoais deverão ser respeitadas, mesmo quando estamos numa relação amorosa íntima e profunda.

Quando esse espaço individual é negado, a fusão substitui-se à intimidade saudável e o sentimento de posse e controlo sobrepõe-se ao amor.

Podemos olhar para o erotismo como o lado poético da sexualidade
Sílvia Coutinho, psicóloga Sílvia Coutinho, psicóloga

O erotismo como forma de reacender o desejo

Podemos olhar para o erotismo como o lado poético da sexualidade. Advém de uma multiplicidade de estímulos, nomeadamente da imaginação, das fantasias, de estímulos sensoriais, como os cheiros ou imagens.

Ativa-nos enquanto seres humanos, retirando-nos de uma estado de neutralidade e passividade sexual, colocando-nos num estado de excitação sexual e abrindo portas para uma disponibilidade sexual.

Exigimos que o nosso parceiro seja casa ou âncora, como um lugar de amor, de segurança e previsibilidade. De pertença e proteção. Lugar onde todas as tempestades da vida não nos conseguem desmoronar.

Mas também exigimos que seja as ondas do mar, um lugar de aventura, desconhecido , de risco, de mistério e autonomia. Um lugar onde também vive o desejo.

Atualmente, a grande tarefa da conjugalidade passa por investir no erotismo. Por uma responsabilização com a nossa própria sexualidade, com o nosso desejo e com a nossa relação, conciliando o aparente antagonismo entre a necessidade de segurança e a necessidade de liberdade. Cultivando a intimidade profunda e o compromisso, deixando um espaço saudável para o erotismo fluir, para a curiosidade e descoberta do outro que, na verdade, nunca conheceremos na totalidade, assim como a nós mesmos, reposicionando a intimidade (emocional e sexual) como um verdadeiro lugar de transcendência individual e conjugal.

Cada um de nós como um mundo inteiro por descobrir.

Sílvia Coutinho é psicóloga e terapeuta familiar e de casal. Em terapia, procura promover relações com maior conexão emocional, com famílias, casais e a nível individual. Adora refletir sobre as emoções mais profundas que sentimos quando nos relacionamos e acredita ser através destas relações, vividas de forma saudável, que conseguimos também individualmente potenciar o nosso bem-estar, equilíbrio e felicidade. Siga-a no Instagram.

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