Crónica. Como (re)construir a confiança do casal
Será que posso confiar que a minha pessoa parceira nunca mais me voltará a trair? Será que posso confiar que a minha pessoa parceira estará sempre para mim em momentos de aflição? Será que posso confiar que não voltará a escorregar em comportamentos aditivos e mentiras que nos arrastam e dilaceram? Como posso voltar a confiar, a permitir-me de novo tocar, render, depois de me ter magoado tanto? Como pode um casal reconstruir aquele que é um dos pilares mais essenciais para o bem-estar e saúde da sua relação?
A confiança é um pilar que sustenta toda a relação saudável e que, quando se quebra, a sua recuperação poderá revelar-se exigente, complexa ou mesmo impossível em determinadas situações, A quebra ou a falta de confiança no vínculo poderá conduzir os elementos do casal a conflito intensos, que derivam sobretudo da presença contínua de insegurança e ansiedade tão severas na relação que poderá quebrá-la definitivamente.
Neste sentido, importa perceber como a construir, como a manter e como a recuperar quando esta se desmorona.
O significado da confiança no contexto de uma relação
Coloco a palavra confiança na internet e esta diz-me que se trata de um “estado psicológico que se caracteriza pela intenção de aceitar a vulnerabilidade com base em crenças otimistas a respeito das intenções (ou do comportamento) do outro”. Que esta pode ser entendida como a crença na sinceridade de alguém, na suspensão temporal de incerteza, mediante a suposição de que exista um certo grau de regularidade e previsibilidade desses eventos ou ações, sendo mais ou menos reforçada em função de atos e factos.
Rachel Bostman define confiança como uma relação confiante com o desconhecido. É, portanto, uma das maiores forças que nos permite superar a incerteza, ser vulneráveis, tentar algo novo ou mesmo fazer algo diferente. É como uma ponte entre o que nos é já conhecido rumo ao que nos é desconhecido e fora do nosso controlo e antecipação.
Também está presente no amor, na relação, na nossa pessoa parceira. Envolve, portanto, a capacidade de arriscar, de sermos vulneráveis diante do salto de fé (ou salto de confiança) que arriscamos fazer, sem conseguir prever se nos iremos lançar e cair num profundíssimo penhasco, partindo-nos em mil pedacinhos, ou se diante do salto encontraremos a mão firme e segura que nos diz “estou aqui para ti, também eu estou a arriscar o meu salto!”.
Não consiste na visão e na promessa do casal de não se magoar entre si, mas sim na aceitação do risco de tal poder inevitavelmente acontecer, com a confiança de que juntos procuremos reparar o que nos possa magoar neste caminho a dois.
Em que consiste a construção da confiança numa relação amorosa?
Talvez necessitemos de pensar melhor sobre este tema de modo a aprendermos a tomar decisões mais inteligentes no que toca em quem depositamos a nossa confiança.
O que faz a relação de cada casal são os milhões de micromovimentos, microgestos que os dois elementos vão dançando na sua relação. Em tantos momentos, poderemos voltar-nos para nós mesmos, diante dos nossos interesses e necessidades que também necessitam de existir. Mas estar em relação consiste nesta dança dinâmica entre o que é nosso e o que é do outro.
Em muitos momentos ao longo do dia, da semana, dos meses e dos anos em que uma relação é vivida, somos confrontados com milhões de oportunidades de escolha perante inúmeros riscos e tomadas de decisão de como podemos responder, agir, estar ou ser para o outro.
Aquilo que faz construir ou ganhar confiança numa relação são os milhões de micromovimentos, microgestos ou microrespostas consistentes que vão no sentido de uma verdadeira presença emocional para com a nossa pessoa parceira, em estarmos realmente sintonizados, comprometidos e responsivos emocionalmente na relação. A vivência de microriscos que o casal vai consistentemente superando ajudam a construir a confiança. Ou seja, é a consistência das respostas e gestos que constrói a confiança.
Claro que nesta dança é humano sentirmos medo de arriscar, medo de voltar a ser tocados, de voltar a rendermo-nos e sairmos da dança desiludidos, magoados, destruídos. O medo é uma emoção tão humana e tantas vezes amiga, que nos acompanha também ela para nos alertar diante do perigo, da ameaça.
Mas não nos permitirmos arriscar porque outrora nos dececionámos também poderá significar perdermos a nossa confiança diante da humanidade, diante das pessoas que não são definitivamente todas iguais, diante dos erros e imperfeições que poderão também elas ser trabalhadas com consciência e ultrapassadas.
Se nunca assumirmos riscos, se nunca fizermos o nosso salto de fé, então também nos impediremos a nós mesmos de descobrir e explorar o que existirá do outro lado. Nunca saberemos como poderá ser tão bom ou de novo mau.
Talvez arriscar consista na capacidade de nos permitirmos tolerar o que nos é desconhecido, tolerar a incerteza, tolerar a nossa vulnerabilidade, a nossa nudez de alma e de tudo. Mas se nunca o fizermos então também nunca conheceremos em consciência como será, como o outro será e como nós poderemos ser. Arriscar não consiste em negligenciar os alertas de perigo que vão sinalizando dentro de nós as ameaças – seria extremamente imprudente se assim o fizéssemos – mas podermos também colocar em cima da mesa da relação os tais gestos consistentes de confiabilidade que o outro nos dá ou nos foi dando.
Confiar é um processo que poderá ir sendo enriquecido à medida que o casal vai dançando a dois consistentemente estes micromovimentod e microgestos de presença emocional, de honestidade, de responsividade, de responsabilidade, de integridade, de verdade, de transparência e de compromisso. Contudo, como indiquei, numa dança que deverá ser feita a dois, reciprocamente.
Ou seja, a confiança deverá ser algo que deveremos aprender a ganhar e a demonstrar, a aprender a cuidar do estado de confiança nas nossas relações. Pressupõe então consciência e a tal consistência recíproca perante os micromovimentos que acontecem nas nossas relações.
Como construir a confiança na relação
As relações e o amor têm definitivamente a capacidade de nos preencher uma e outra vez de esperança, fazendo-nos renascer das cinzas. No entanto, é crucial perceber que a forma como vemos e sentimos as relações, os seus eventos mais dramáticos e os seus gestos mais puros, pode ajudar a construir, a alicerçar ou mesmo a reconstruir solidamente tijolo sobre tijolo a confiança da relação.
Todos casais têm conflitos. Todas as relações saudáveis e felizes têm momentos de discordância mútua, de desconexão e de dor que podem conduzir, de novo, à quebra de confiança na pessoa parceira. Os casais necessitam, assim, de aprender a ganhar e demonstrar confiança de modo a construirem um vínculo seguro.
A responsividade emocional (mediante o processo A.R.E. – Are you there with me?, ou Estás aí para mim? em português, presente na relação e na forma do casal comunicar e dançar em conjunto permite transformar a dança de desconexão, desarmonia e confiança do casal:
- Accessibility (Disponibilidade)
Este princípio pressupõe mantermo-nos abertos e disponíveis para o nosso parceiro, mesmo quando temos dúvidas ou nos sentimos inseguros. Fazer sentido das nossas emoções e das emoções do outro e sintonizarmo-nos emocionalmente. Necessitamos, numa relação, de sentir a nossa pessoa parceira disponível e realmente presente emocionalmente para nós.
- Responsiveness (Responsividade)
Implica sintonizar-se emocionalmente com o seu parceiro e demonstrar que as suas emoções (nomeadamente as suas necessidades de vínculo e medos) têm um impacto em si. Significa aceitar e priorizar esses sinais emocionais que o seu parceiro lhe dá, respondendo com respostas claras de conforto, carinho e segurança quando a pessoa que ama mais necessita. Significa ser sensível e responsivo às necessidades do outro. Por norma, sempre que isso acontece, o outro sente-se envolvido emocionalmente, tornando-se mais calmo e sereno (regulado emocionalmente).
- Engagement (Compromisso)
Implica compromisso, envolvimento emocional e esse envolvimento pressupõe atender mais ao outro, tocar mais (quando existir consentimento), olhar mais, falar melhor e mais profundamente, respondendo às necessidades que sentimos no nosso parceiro. Significa, na verdade, conseguir estar presente emocionalmente para o outro.
A reparação emocional do ciclo “conexão-desconexão-insegurança-quebra-confiança” é uma das ferramentas mais importantes para se manter um vínculo seguro e a maior parte de nós não aprendeu a construir um espaço de reparação emocional com as suas famílias de origem, impactando naturalmente as famílias e os casais que somos no momento presente e que seremos no futuro.
John Gottman, terapeuta de casal que realiza estudos científicos muito interessantes na área das relações, realizou um estudo no qual verificou que os casais que permaneciam casados utilizavam a reparação emocional em 86% do tempo na relação, enquanto os casais que se divorciavam utilizavam esta ferramenta em apenas 33% do tempo, o que predizia a satisfação e longevidade da relação.
Na verdade, é raro sabermos como reparar as nossas relações, pois não é algo que a maioria de nós tenha aprendido a fazer. Todos nós desejamos construir vínculos seguros nas nossas relações, mas muitas vezes sentimo-nos perdidos em relação à forma de como o fazer. Talvez seja apenas necessário permitirmo-nos aprender a estar de uma maneira diferente, emocionalmente inteligente e mais consciente relacionalmente.
A reparação emocional pode ser vista como um barco à vela, cujas velas vamos ajustando conforme os ventos. As reparações emocionais honestas e francas são os ajustes que vamos fazendo, os sucessivos ziguezagues da embarcação, de modo a chegarmos seguros ao destino final.
Quando as desconexões são inevitáveis e profundas, as reparações são bastante necessárias pois permitem ao casal construir a sua força e consistência diante de situações adversas, solidificando o seu vínculo de forma segura e possibilitando o ganhar e demonstrar a confiança tão necessária para a saúde da relação.
Uma relação amorosa é e sempre será um lugar arriscado entre duas pessoas que se procuram partilhar, nos corpos e na vida, de uma maneira profunda e vulnerável. Envolve empatia, envolve a construção de segurança, de escuta ativa, mas envolve, acima de tudo, dois elementos disponíveis a co-construir a relação e a sua confiança dia após dia. A intimidade não é algo que se tem com outra pessoa, é algo que se constrói.
Quando sabemos que a pessoa que amamos está lá para nós quando precisamos, que é consistente nos micromovimentos de segurança e presença emocional, tornamo-nos mais seguros e confiantes do nosso valor enquanto pessoas também.
Quando sabemos que a nossa relação é um vínculo seguro no qual podemos ser e trazer o que somos, com competência e segurança necessária para abraçar e navegar as diferenças, relaxamos e confiamos. O mundo torna-se menos intimidante quanto temos com quem contar, sabendo e sentindo que não estamos sozinhos.