Crónica. Será amor ou dependência emocional?
Somos seres relacionais e necessitamos, por isso, dos outros. Mas qual a diferença entre uma relação amorosa saudável ou uma relação onde existe um padrão dependência emocional?
De modo a garantir a nossa sobrevivência, precisamos e dependemos dos outros desde o primeiro dia da nossa vida. Nascemos programadas para a conexão emocional com os outros. Criamos vínculos, necessitamos de proximidade, validação emocional perante as nossas necessidades. É esta a nossa natureza enquanto seres humanos.
Mas, muitas vezes, a forma como amamos poderá ter de ser trabalhada e reaprendida, pois nem sempre a forma como aprendemos a amar ou como interiorizamos a ideia de amor é saudável. É o caso da codependência emocional.
O que é a codependência emocional?
A codependência emocional é uma condição psicológica na qual a pessoa estabelece um apego excessivo a outra pessoa, desenvolvendo uma relação de dependência. É comum observar-se nas relações de casal, mas poderá ocorrer igualmente entre amigos e familiares.
Tantas vezes, estas pessoas acabam por procurar o sentido de valor pessoal através do outro, interiorizando a crença que o amor existe apenas na “segurança” de uma dependência emocional ou fusão com o outro. Por esta razão, há uma tendência a colocar os desejos e necessidades do outro em primeiro lugar, esquecendo os seus desejos e suas necessidades, anulando-se, numa profunda ausência de sentido de individualidade e capacitação pessoal.
Esta necessidade excessiva de agradar o outro, de lhe responder, de o ouvir em primeiro lugar, de o atender e de viver em prol, subvalorizando-se a si ou esquecendo-se face às suas necessidades, resulta numa assimetria relacional que advém de um medo extremo e de uma crença de que autonomia representaria risco de abandono.
E é tantas vezes ao abandono que o codependente procura a todo custo fugir, por se representar tão ameaçador para si esta percepção de individuação, autonomia ou eficácia.
Os codependentes apresentam uma personalidade organizada estruturalmente de um modo rígido e inflexível em torno de um funcionamento que tem por base a dependência, sendo este um distúrbio reconhecido cientificamente (personalidade dependente).
Tendem a apresentar baixa autoestima e uma enorme insegurança interna, observando-se de forma constante e permanente uma forte necessidade em sentirem-se protegidos, cuidados ou próximos do outro, podendo resultar numa imensa incapacidade em estarem sozinhos ou funcionarem de forma autónoma e independente.
Observa-se ainda de forma frequente uma transgressão nos valores pessoais, assim como uma quebra de limites no respeito pessoal e no seu sentido de individualidade, resultando numa incapacidade para se construírem relações sólidas e saudáveis.
Como surge a codependência emocional?
Muitas vezes, advém de um padrão relacional com origem na infância, onde muito provavelmente se estabeleceram relações sem fronteiras claras e definidas entre os diferentes interlocutores, dando origem a uma negligência crónica no sentido de se “ser pessoa” e onde a grande necessidade passa por ganhar a aprovação, o reconhecimento, a validação, o amor, ou até mesmo um sentido de identidade através do outro. “Eu existo porque tu existes”, “Porque me validas e reconheces, e só então eu sou merecedora”.
As relações e as ligações emocionais marcam todo o desenvolvimento do ser humano, permitindo-nos sobreviver e crescer.
Construímo-nos enquanto pessoas a partir da vivência de dependência. Ou seja, no início da nossa vida, iniciamos o nosso percurso por depender dos outros (dos pais ou de outros cuidadores que os substituam, suportando a nossa sobrevivência do ponto de vista físico e emocional, garantindo as nossas necessidades mais básicas: abrigo, proteção, nutrição e carinho).
Na verdade, todos somos dependentes, mas vamos construindo concomitantemente um sentido diferente de ser e estar em relação e em comunidade. Um sentido de interdependência, que nos permite desenvolver e integrar outras características essenciais à vida e à vivência de relações saudáveis: a nossa autonomia e independência, que advém de um sentido de individuação “eu existo”, “eu sou capaz”.
Contudo, o codependente emocional apresenta uma autoestima vulnerável, assim como uma forte necessidade de ser aceite, protegido e amado pelo outro, podendo ter vivenciado nas suas relações primárias um enorme sentimento de insegurança ou ambivalência.
Nessas relações, o mundo passou a ser percecionado como um lugar perigoso, onde caberiam certamente medos terríficos de desamparo e abandono e aos quais ninguém acolheu com segurança e responsividade.
O que é certo é que as falhas vivenciadas na primeira infância tendem a repercutir-se no vínculo amoroso através de uma dependência patológica.
Por norma, a baixa autoestima tem na sua matriz traumas desenvolvimentais (ou seja, no vínculo estabelecido com os nossos cuidadores ou seus substitutos), podendo muitas vezes relacionar-se com maus tratos físicos ou psicológicos (por exemplo, a violência doméstica, alcoolismo, dinâmica familiar disfuncional, entre outros).
Estas importantes feridas de vínculo (trauma desenvolvimental), ficam registadas na nossa mente, na nossa pele, como se fossem uma impressão digital, fazendo com que o próprio vá construindo esta perceção desvalorizada de si, que não existe sem o outro idealizado, necessitando, portanto, deste para ser, estar, fazer ou mesmo para viver.
Frases como “sem ti nada sou”, “sem ti é tão perigoso viver”, mostram que o codependente emocional acaba por projetar no outro as suas necessidades e que caberá ao próprio aprender a ser e a estar de uma maneira completamente diferente.
A vivência da dependência emocional na relação amorosa adulta
Por norma, o codependente cuida do príncipe ou da princesa idolatrados, projetando neste as suas necessidades, procurando no outro o escape ao sentimento de solidão, vazio e desamparo que o acompanha desde a infância como se este fosse o responsável pela sua salvação.
Contudo, face à relação assimétrica que se constrói, pode muitas vezes dar origem a situações de abuso físico e emocional, nomeadamente quando a pessoa dependente sente que precisa tanto do outro para sobreviver, anulando-se completamente face aos limites e fronteiras que uma relação também deve ter.
O que se verifica é uma total ausência de espaço para as duas individualidades numa relação. Um lugar onde a idealização e a idolatração pelo outro esmaga por completo o valor próprio, o sentido de si, com um “eu” que tem pouca ou nenhuma voz na relação.
Num contexto amoroso, não existe uma verdadeira relação sem uma mútua dependência. Somos seres sociais e relacionais que precisam de se sentir integrados e preenchidos do ponto de vista afetivo. Precisamos do outro que amamos. “Eu preciso de ti e tu precisas de mim, juntos somos mais fortes, mas eu não deixo de existir em mim e por mim, e tu não deixas de existir em ti e por ti”, e assim constrói-se uma relação amorosa num sentido de diferenciação de se ser pessoa e de se ser casal, o sentido de interdependência.
O amor existe por si e enriquece a nossa vida. O indivíduo continua e deverá continuar a existir por si, sem a anulação da pessoa que é, num sentido de capacitação pessoal. O outro existe por si e igualmente de forma inteira, resultando numa forma completamente diferente de amar.
É fundamental o trabalho de ganhar consciência das feridas, dos traumas, para que então a pessoa se possa centrar no seu processo de quebrar padrões disfuncionais, na construção da sua diferenciação (de modo a que se aproprie de quem é), para então se ligar ao outro (seja numa relação amorosa, seja numa relação familiar, amizade ou profissional) de uma forma saudável.
O amor é interdependente
O amor cria entre nós o sentido de interdependência: a capacidade de estar em sintonia com o “eu” e, simultaneamente, numa relação de profunda intimidade com o outro. Duas pessoas inteiras que existem e também necessitam uma da outra.
O foco excessivo na proximidade emocional do casal, na sua fusão, com baixos níveis de autonomia, acaba também por esvaziar a relação das tensões que são igualmente importantes para um crescimento salutar de um casal (a gestão da sua autonomia, o seu risco, a vulnerabilidade dos elementos em todo o processo).
Os processos de diferenciação no casal são inerentes ao seu desenvolvimento (por exemplo, tolerar a autonomia e a separação do outro, etc.) e, embora possam por vezes ser causadores de sofrimento, devem ser aprofundados e não evitados, uma vez que são a estrutura base que mantém um desejo sexual positivo ao longo da vida do casal (mantendo ligado o motor da descoberta e curiosidade, revelando autonomia, satisfação, integrando intimidade emocional).
Os casais que hipervalorizam a proximidade, a fusão emocional e recusam a autonomia acabam muitas vezes por destruir o desejo, esvaziando a relação da possibilidade de crescimento, descoberta e abrindo caminho à rotina, monotomia e à previsibilidade.
Pelo contrário, nos casais cujos elementos ganham um sentido diferenciado de si (valor, capacidade, autoestima, individuação) e da relação (otherness), ganham um maior sentido de nós (connectedness), longe do distanciamento ou da fusão que destrói a relação de casal.
O amor saudável tem uma enorme necessidade de interdependência e diferenciação.
Sílvia Coutinho é psicóloga e terapeuta familiar e de casal. Em terapia, procura promover relações com maior conexão emocional, com famílias, casais e a nível individual. Adora refletir sobre as emoções mais profundas que sentimos quando nos relacionamos e acredita ser através destas relações, vividas de forma saudável, que conseguimos também individualmente potenciar o nosso bem-estar, equilíbrio e felicidade. Siga-a no Instagram.