Crónica. A depressão na relação de casal
Na encruzilhada da vida, são inúmeros os desafios que um casal poderá ter de vivenciar e ultrapassar, mas certamente poderão não ser tão desafiantes quanto o impacto que a doença mental poderá ter na relação de casal.
Estima-se que em todo o mundo cerca de 450 milhões de pessoas sofram de alguma doença mental e cerca de 300 milhões de pessoas sofram de depressão, prevendo-se que esta se torne, já em 2030, na principal causa de incapacidade no mundo inteiro.
O impacto da depressão no dia a dia de um indivíduo é enormíssimo:
- Alterações de humor;
- Apatia;
- Cansaço;
- Alterações no sono, apetite;
- Implicações na vida sexual e na vivência da intimidade do casal;
- Desinteresse por algumas ou todas as áreas da vida;
- Tendência para o isolamento ou afastamento de figuras significativas (podendo incluir-se o cônjuge);
- Pensamento e humor disfórico;
- Sentimentos de inutilidade;
- Maior irritabilidade;
- Não atenção (não intencional) às necessidades do outro;
- Culpa.
A vivência da depressão poderá ser diferente conforme o género. Por norma, os homens podem manifestar mais zanga e irritação, podendo refugiar-se em comportamentos destrutivos como o álcool ou drogas.
As mulheres manifestam maior sintomatologia como tristeza e distanciamento. Verifica-se ainda uma maior taxa de suicídio nos elementos do sexo masculino.
A ciência diz-nos que o amor é considerado um elemento protetor da nossa saúde mental. Quando amamos temos mais saúde. Somos mais felizes. É uma das mais intensas e desejáveis emoções humanas.
Todos nós necessitamos de pertencer a um outro especial e sentirmo-nos amados, compreendidos, escutados, validados, importantes e desejados. Mas criamos também esta ideia irrealista, tão inspirada nos filmes de Hollywood, de que um amor romântico existirá em contínuo estado de paixão, em que a felicidade e bem-estar do outro advém da paixão que possa encontrar todos os dias na relação, possibilitando ultrapassar todos os obstáculos ao longo da vida do casal. Contudo, nem sempre esta ausência de bem-estar se deve à qualidade dos vínculos na relação presente com o(a) companheiro(a).
São inúmeros os fatores que podem ser potenciadores de gerar dor, sofrimento, angústia e até desespero e, neste sentido, o aparecimento de uma patologia, seja esta de natureza física ou mental, constituirá um importante elemento de stresse para a vida do próprio, assim como para o casal ou família.
Assim, a ideia de que o bem-estar do companheiro advém da relação, poderá solidificar ainda mais a dificuldade em dar espaço para a vivência da dor, da tristeza e do sofrimento na relação de casal. Esta poderá roubar espaço para que o casal se consiga realmente escutar e dar voz à tristeza e à desesperança, sem colocar a relação em causa.
Os desafios que o casal enfrenta
A dor
O desafio para o casal poderá passar por criar um espaço para acolher a dor do outro, de modo a que esta consiga ser abraçada, sentida, expressada, vivida em relação e não suprimida com mil e uma soluções mágicas e tão pouco empáticas, que conduzem a pessoa que sofre de depressão a um enorme buraco escuro de solidão e incompreensão.
Mas que também caiba neste espaço um lugar para que o companheiro não deprimido consiga comunicar as suas emoções e como tudo isto pode ser também para si por vezes difícil, confuso, de como também possa precisar do suporte do companheiro, sem que também este espaço de dor seja sentido ou percecionado pelo outro como uma crítica.
A individualidade
O desafio do casal poderá passar por criar um espaço para acolher a expressão de individualidade do outro. Um espaço de maior compreensão e empatia pela vida interior do seu companheiro, de onde também podem fazer parte dúvidas, angústias, medos, memórias longínquas que doem ainda na alma e no corpo ou mesmo fantasmas.
Neste sentido, um dos grandes desafios do casal, poderá passar por criar um espaço negociado e conversado, de onde pode fazer parte a necessidade de alguma solidão e recolhimento da pessoa deprimida, de reencontro com a sua individualidade, com as suas emoções, com os seus pensamentos.
Que este espaço seja negociado e conversado, de modo a tornar-se previsível e menos ameaçador para o companheiro não deprimido e não funcione também este momento como mais um gatilho que reativa emocionalmente os elementos e distancie a relação com perceções ou sentimentos como “ele(a) está tão distante”, “não faço parte da vida dele(a)”, “não me estou a sentir amado(a)”.
Por outro lado, este espaço de individualidade pode ser importante para que o casal consiga ressignificar o peso e o papel da doença mental na vida de cada um e especialmente na relação.
Claro que é importantíssimo os elementos serem suporte, serem apoio um para o outro, mas não numa definição de codependência (de duas pessoas que se anulam, fundem e deixam de existir), e sim de interdependência (de duas pessoas inteiras que existem e também necessitam uma da outra).
Não nos curamos, nem nos desenvolvemos no isolamento. Somos seres humanos e necessitamos dos outros no nosso caminho. Mas ninguém é responsável pela saúde mental de ninguém.
A batalha e o processo de cada pessoa contra a depressão é única, devendo ser o próprio a responsabilizar-se por se trabalhar neste sentido, sendo obviamente mais fácil estar nesse lugar escuro sentindo-se acompanhado.
É esse o papel do companheiro, mas não num sentido de resolução da mesma. É esta necessidade de compreensão que ajuda a recriar a relação ao longo do tempo, perante as diversas vicissitudes da vida, com criatividade, resiliência e maior compreensão pelo sentir e pela experiência do outro, revelando-se essencial para a perceção de qualidade da vivência amorosa.
Compreender a depressão
O desafio para o casal poderá ser, assim, compreender que a depressão é uma doença e que esta se manifesta com determinados sintomas e que todos nós, em qualquer circunstância da nossa vida, poderemos adoecer e vivenciar a doença da tristeza.
Poderá ser importante para o elemento não deprimido compreender que a depressão poderá manifestar-se de forma diferente em cada um de nós e compreender como a sintomatologia se manifesta no seu companheiro, possibilitando assim lidar com a situação de uma maneira mais tranquila e empática, sem que o elemento do casal que não está deprimido se sinta intimidado, ameaçado ou excluído da vida do seu companheiro.
A sintomatologia depressiva poderá ser sentida como que um gatilho para o parceiro não deprimido, atirando-o também a ele para um lugar onde se sente sozinho e incompreendido, onde o afastamento do companheiro conduz o elemento não deprimido para um lugar de medo do abandono e da rejeição.
Quando um dos elementos do casal está deprimido, poderá ser um desafio e mais um fator de stresse a alteração do projeto de vida do casal e das suas prioridades, fazendo parte a necessidade de uma adaptação à vivência de novas rotinas (de onde possam incluir-se o tempo para a(s) terapia(s) necessárias, a medicação, o tempo para o exercício físico tão essencial nesta problemática, a necessidade de um espaço para estar com a família e amigos para que a pessoa deprimida se possa sentir socialmente mais conectada).
Por outro lado, poderá ser igualmente desafiante a necessidade de consistência na sua vida, como consistência nos horários do sono, da alimentação, na rotina de criar hábitos de vida mais saudáveis e que exigem em certa medida que a vida da pessoa deprimida e do seu companheiro seja mais ativa, porque o oposto de depressão não é felicidade, é atividade.
A comunicação
Poderá ser um desafio para o casal trabalhar a forma como comunicam, requerendo uma comunicação mais clara, mais profunda, segura e conectada sobre as emoções que estão a sentir, trazendo desta forma às suas vidas uma maior consciência e previsibilidade de como poderão servir de apoio e suporte em cada momento para o seu companheiro, ajudando-os igualmente a estar melhor preparados para vivenciar uma nova crise com maior conexão.
Por exemplo: “Como te sentes hoje?”, “Como te posso ajudar?” ou “Como posso fazer quando estes sintomas ou emoções surgirem numa próxima vez?”.
Em suma, o impacto da depressão numa relação de longa duração é enorme, sabendo que os desafios e emoções difíceis que o casal experiencia podem aumentar a probabilidade de divórcio.
Mas é possível que o casal consiga superar esta dificuldade com fronteiras e limites claros, com suporte mútuo, entendimento e uma comunicação que permita a conexão do casal, continuando a existir espaço e até incentivo para que a nossa pessoa, que nos acompanha neste desafiante percurso a dois, continue a crescer e a evoluir enquanto ser humano e consiga vencer esta dura batalha.
O amor é uma casa imperfeita que vai exigir de nós a capacidade de amar para além da imperfeição, dos desafios que nos coloca, exigindo que sejamos capazes de nos reinventar, reorganizar, repensar, amar e voltar a amar o outro imperfeitamente melhor. Com maior consciência e empatia pelas suas batalhas, pelos seus medos. Sendo luz no meio da escuridão. Sendo âncora no meio da tempestade.
Sílvia Coutinho é psicóloga e terapeuta familiar e de casal. Em terapia, procura promover relações com maior conexão emocional, com famílias, casais e a nível individual. Adora refletir sobre as emoções mais profundas que sentimos quando nos relacionamos e acredita ser através destas relações, vividas de forma saudável, que conseguimos também individualmente potenciar o nosso bem-estar, equilíbrio e felicidade. Siga-a no Instagram.