Somos com um livro, repleto de personagens e histórias mais ou menos fantásticas, repletas de verdade, de penumbra ou nevoeiro, segredos ou tabus. Histórias de eventos e situações nos acontecem e através das quais vamos categorizando o mundo, os outros e nós mesmos, dando origem a perceções, mas também a crenças que vamos utilizando ao longo da vida para ler e interpretar a realidade.
Integramos dentro de nós ideias e crenças, umas mais adaptativas e saudáveis que outras, de acordo com as experiências que vamos vivendo, como:
- “sou importante”
- “sou amado”
- “faço tudo mal”
- “não posso falhar”
- “sou uma porcaria”
- “não adianta falar do que sinto ou preciso”
- “devo ser castigado e punido pelos meus erros”
- “os outros são perigosos e não dignos de confiança”
- “faça o que fizer, os outros vão-me abandonar ou trocar por outra pessoa”
- “sou fantástico e os outros deveriam estar rendidos aos meus pés pela sorte de estarem comigo”
A nossa realidade torna-se, na verdade, um espelho daquilo que somos e de como olhamos a vida e a nós mesmos, onde vamos buscar ao baú destas crenças e categorias indicações, muitas vezes distorcidas, de como as coisas vão acontecer, do que está a acontecer, mas também sobre os outros e acerca de nós mesmos.
Estas distorções de medo de abandono, de subjugação, de negativismo e pessimismo, de inibição emocional, de postura punitiva, de desconfiança e abuso, de vergonha, de isolamento social, de fracasso, entre outros, dão lugar, tantas vezes, a medos ou desejos que nos moldam e se assumem em padrões de vinculação, que influenciam inibições ou mesmo até fantasias. Ou seja, influenciam a forma como nos damos com maior ou menor segurança ao outro, não só na forma como amamos, mas na forma como fazemos amor.
As mensagens que ouvimos no decorrer da nossa infância e adolescência, os preconceitos e ideias pré-concebidas, os segredos, as orientações que (não) nos dão tingem a sexualidade de horror, de nojo, de culpa, de perigo ou desconfiança, surgindo na nossa vida adulta sob a forma de ansiedade ou rigidez.
A humilhação e desvalorização sentida lá atrás, traz para a cama do adulto a necessidade deste se sentir desejado ou escolhido. A dependência e a não diferenciação emocional poderá dificultar a expressão de autonomia e vivência individual do prazer. O que nos excita é tantas vezes fruto das mágoas e frustrações que encerramos dentro de nós.
Os conflitos que vivemos na infância, as imagens que povoaram o nosso imaginário desde cedo, que advêm do cinema, da televisão, da pornografia e da escola, tudo isto condiciona de alguma forma como nos entregamos e vivemos a nossa intimidade sexual.
A intimidade sexual e o seu padrão de vinculação
A sexualidade é um comportamento de vinculação adulta, que reforça a ligação e o vínculo entre duas ou mais pessoas.
Na verdade, uma profunda conexão emocional advém da construção de um vínculo seguro, criando a possibilidade de um bom sexo, gratificante e positivo para ambas as partes. Neste sentido, os nossos padrões de vinculação desempenham igualmente um importante papel na forma como nos relacionamos sexualmente.
A ciência vai destacando o padrão de vinculação seguro como estando associado a uma vida sexual satisfatória e prazerosa, enquanto os padrões de vinculação inseguros (ansioso e evitante) estão associados a uma menor satisfação nas interações sexuais.
Poderá ser importante reter a ideia de que não há prazer sexual sem relaxamento, e para relaxarmos é essencial a perceção de segurança. Quando estamos no medo, na hipervigilância, no alerta por alguma razão (por exemplo, as tais crenças que ficam ativadas diante do encontro sexual), não conseguimos estar calmos e esta é uma condição essencial para nos rendermos na sexualidade, em desfrutar, ir ao lugar erótico e viver o prazer.
Padrão de vinculação seguro e a intimidade sexual
Os adultos que apresentam um padrão de vinculação seguro tendem a revelar níveis baixos de ansiedade e evitamento, mostrando-se mais seguros e confiantes em relação a si mesmos, à sua autoestima, assim como ao papel que desempenham na sua relação. Por revelarem uma maior segurança emocional, tendem a sentir-se confortáveis com a proximidade e interdependência que uma relação amorosa exige.
Desta forma, experienciam a relação amorosa e a intimidade sexual como um espaço de equilíbrio entre a sua necessidade de pertencer ao outro e à relação, sem desinvestir da necessidade de pertencer igualmente a si mesmos, sem se abandonarem.
Tendem a procurar uma relação de longo prazo na qual encontram a intimidade, o compromisso, a compreensão mútua e a proximidade emocional que necessitam para se sentirem preenchidos emocionalmente e confiantes para descobrirem e aventurarem-se em novos lugares ao nível da sexualidade.
Neste sentido, e porque a pessoa que apresenta um padrão de vinculação seguro revela um modelo de si e dos outros positivo, tendem a percecionar o seu parceiro sexual com carinho e como sendo bem-intencionado. Ao não existir um lugar de ameaça e perigo, a pessoa com padrão de vinculação seguro propende a relaxar as suas defesas, a ser menos ansiosa e a permitir-se desfrutar da intimidade sexual.
A sexualidade é percecionada como uma forma de expressão de amor e afeto, e não como uma forma de manipulação de outras pessoas ou de alimentação do próprio ego.
Estes adultos com padrão de vinculação seguro, por possuírem um modelo positivo de self, tendem a permitir-se desejar e sentirem-se desejados e acarinhados durante o encontro sexual, potenciando o experienciar de um maior número de emoções positivas durante o sexo, a terem níveis mais elevados de excitação e prazer, maior frequência de relações sexuais, maior satisfação sexual e relacional, assim como uma comunicação mais positiva e construtiva em relação ao sexo.
Padrão de vinculação inseguro ansioso e a intimidade sexual
Este padrão de vinculação é geralmente caracterizado por preocupações excessivas e um profundo desejo de conexão e proximidade, levando frequentemente a relações fusionadas.
Estas pessoas apresentam, por norma, um enorme medo de rejeição e abandono, o que é totalmente compreensível, tendo em conta a inconsistência e a ambivalência com que foram abraçadas, cuidadas e amadas na sua infância. Isso não significa que a infância delas não tenha sido rica em amor e interações de qualidade, mas essas interações podem ter sido marcadas por imprevisibilidade e inconsistência.
Desta forma, os adultos que apresentam este padrão tendem a sentir-se constantemente inseguros e desconfiados em relação aos gestos de amor e intimidade do outro. Podem desenvolver comportamentos reativos e de controlo para lidar com a insegurança emocional que sentem, o que paradoxalmente pode afastar o outro e promover conflitos na relação. Estas pessoas podem precisar de ajuda adicional para regular as suas emoções e lidar com a hiperativação emocional que podem experimentar (termómetro emocional elevado).
Muitas vezes, a intimidade sexual pode surgir como uma resposta à imensa necessidade de aprovação e de apreciação, sendo muitas vezes percecionada como uma possibilidade de criar de forma mais imediata proximidade. Por este motivo, poderão utilizar a sexualidade como uma forma de preencher necessidades não atendidas de outra forma, como amor e segurança.
Tendem a ter uma perceção negativa, distorcida e pessimista de si mesmas (baixa autoestima), considerando-se pouco competentes, pouco interessantes ou atraentes (modelo negativo de si), o que poderá dificultar o seu relaxamento e a sua entrega à sexualidade, tornando o prazer e a sexualidade como um lugar bastante ambivalente.
O desejo sexual poderá ficar tingido de nuvens de dúvidas e ruminações face à sua atratabilidade e competências sexuais. A necessidade excessiva por proximidade poderá conduzir a comportamentos sexuais intrusivos, consentindo atividades sexuais que, na verdade, não desejam (muitas vezes com o intuito de prevenir a rejeição e abandono do outro), podendo, desta forma, incorrer em comportamentos de sexo irresponsável (por exemplo, sem a utilização do preservativo), podendo ser perigoso para si e para o seu parceiro.
Tendem a apaixonar-se facilmente, embora não acreditem que o outro esteja realmente interessado e disponível para uma relação íntima e profunda a longo prazo, a iniciar a sua vida sexual mais tarde e a ter encontros sexuais com menor frequência. Face ao intenso medo de rejeição que podem apresentar, a comunicação sobre a sexualidade poderá ser diminuta.
A ciência vai indicando que tendem a procurar parceiros mais íntimos (de modo a encontrar segurança) e a percecionar a sexualidade como algo de menor importância para si e para a sua relação.
Padrão de vinculação inseguro evitante e a intimidade sexual
Geralmente, os adultos que apresentam este padrão tendem a ser fugidios, esquivos e distantes face ao seu desconforto com a proximidade e com a existência de modelos negativos de si e do outro, podendo assim interferir com o estabelecer de intimidade em situações de encontro sexual.
Estes adultos tendem a distanciar-se, como estratégias de regulação emocional, tornando-se, por isso mesmo, evitantes face aos desejos e necessidades do seu parceiro.
Ao analisar a sua história é comum perceber que não receberam o contacto emocional necessário para desenvolver um sistema nervoso regulado. Identificam-se vários fatores relevantes ao longo da infância até à idade adulta, tais como isolamento, a ausência de presença, a ausência de toque, a negligência emocional e a rejeição.
O profundo impacto destes fatores na criança, que mais tarde se torna adulta, é extremamente doloroso, sendo facilmente compreensível o motivo pelo qual a criança procura neutralizar e reduzir os seus comportamentos de procura por conexão, proximidade e vínculo.
Estes fatores estão na origem das respostas de autosuficiência. Ou seja, ao não poder contar com a presença emocional, suporte e respostas emocionais de qualidade por parte dos cuidadores, a criança só pode contar consigo mesma para atender às suas necessidades. É uma autonomia que advém de um lugar profundamente traumático devido à negligência emocional que experienciou.
Quando crescemos num ambiente desprovido de afeto, suporte emocional, responsividade emocional, presença emocional contida, inconsistente e insegura, torna-se muito difícil arriscarmos a nossa vulnerabilidade, mostrarmo-nos, revelarmo-nos, partilharmo-nos autenticamente com alguém. As relações tornam-se, aos olhos desta criança agora adulta, demasiado perigosas, acabando por vezes por autosabotar a relação.
Estes adultos não procuram aparentemente por proximidade e intimidade, evitam demonstrações de afeto e optam pelo seu distanciamento e frieza emocional. Desta forma, as pessoas com este padrão tendem a envolver-se menos emocionalmente, sendo difícil apaixonarem-se, temendo a intimidade de uma forma geral.
Os encontros sexuais tendem a ser casuais, de curta duração ou até mesmo podem optar por abster-se sexualmente. A intimidade é percecionada como sendo verdadeiramente assustadora e desconfortável, fazendo com que a sexualidade seja vivida sem uma real partilha de intimidade, de conexão, tornando o sexo um lugar desprovido de emoções ou até mesmo de toque.
O sexo pode ser utilizado como forma de manipular ou controlar o outro, para ganhar prestígio social, inflamar a sua autoestima ou apenas para responder a uma necessidade fisiológica ou de redução de stress. Desta forma, a sexualidade não é vivida como forma de expressar amor, intimidade e desejo pela proximidade ou conexão.
Todos nós trazemos na mochila repleta de ideias, histórias, experiências, crenças que moldam a forma como experienciamos a sexualidade, o toque, o beijo, o abraço, este espaço íntimo tão único para cada um de nós. Fica gravado em cada célula do nosso corpo, as angústias, as frustrações e a dor que fomos experienciando ao longo da vida. No encontro sexual, o corpo comunica o que pensávamos ter esquecido. As nossas necessidades e carências, abandonos, terrores e anseios.
Ganhar consciência de tudo isto permite olhar com novos olhos a sexualidade e experimentar paulatinamente a construção de vínculos seguros que trazem até nós um novo template relacional, de onde a segurança física e emocional tão necessárias fazem parte para nos rendermos à sexualidade e ao prazer de uma maneira completamente nova.
Sílvia Coutinho é psicóloga e terapeuta familiar e de casal. Em terapia, procura promover relações com maior conexão emocional, com famílias, casais e a nível individual. Adora refletir sobre as emoções mais profundas que sentimos quando nos relacionamos e acredita ser através destas relações, vividas de forma saudável, que conseguimos também individualmente potenciar o nosso bem-estar, equilíbrio e felicidade. Siga-a no Instagram.