É-nos indicado que o autocuidado e o amor-próprio vêm de dentro, que inicia em nós, que se primeiramente não estivermos inteiras, nunca estaremos prontas para amar; que será vital termos de nos bastar a nós próprias, sermos autossuficientes, determinadas o bastante para nos termos em conta, aprendermos a valorizar-nos. Em primeiro lugar o nosso Eu, só depois os outros, só depois as relações.
Será esta a equação da nossa vida, em que numa mão cabe o “meu amor-próprio” e só então na outra mão cabem “os outros”? Será isto, de facto, o amor-próprio que tanto se deseja alcançar para se ser mais saudável e feliz? Não serão estas ideias fruto de uma individualização excessiva?
Outro olhar sobre o amor-próprio
Como seres humanos, as relações são fundamentais para sermos quem somos. Estas podem ser uma enorme fonte de felicidade, preenchimento e realização nas nossas vidas, como podem ser uma enorme fonte de stresse.
Contudo, é indiscutível que o nosso Eu constrói-se de um conjunto de coisas várias, de uma multiplicidade de conexões e interações com as pessoas que existem à nossa volta, assim como de estruturas sociais, políticas e até económicas.
Somos seres relacionais e a verdade é que não aprendemos a amar-nos sozinhos. Conhecemo-nos a nós próprios mais profundamente através da lente da relação com os outros. Somos moldados pelas relações nas quais estamos e vamos construindo. Descobrimos um sentido de amor muito mais profundo por causa da relação. Nós fazemos a relação, a relação faz-nos a nós.
É a qualidade das nossas relações que determina a qualidade da nossa vida, e quem somos é na verdade uma combinação de como nos vemos e de como os outros nos veem.
Possibilitar-nos passar algum tempo sozinhos, vivenciarmos momentos de autocuidado, usufruirmos de uma massagem ou experienciar um retiro de meditação, são momentos excelentes para a nossa autoconfiança e aprendermos a gostar de estar na nossa própria companhia. Porém, não são por si só autoestima ou amor-próprio.
Contudo, fruto de uma individualização por vezes excessiva, parece que vivemos obcecados por nós mesmos ao perseguirmos um sentido de melhoramento de todas as partes da nossa pessoa.
Neste sentido, não é a autoestima ou o amor-próprio que é o problema, é a forma como esta se assume que pode ser problemática e colocar-nos tão próximos de um narcisismo ou até de sentimentos depressivos e destrutivos.
Necessitamos cada vez mais de compreender e aceitar quem somos enquanto indivíduos (seres relacionais que precisam dos outros).
O que é o amor-próprio e como o praticar de forma saudável
O amor-próprio está muito mais relacionado com a consciência e aceitação da nossa incompletude e imperfeição, tendo-nos em consideração nesses momentos difíceis, do que propriamente com a capacidade de experienciar a solidão ou estabelecer a independência ou autossuficiência.
O amor-próprio é a capacidade de não nos desprezarmos mesmo quando somos imperfeitos ou falhamos. Neste sentido, amor-próprio resultaria de um olhar de autocompaixão para connosco mesmos, de aceitação incondicional da nossa pxersonalidade única, sem (des)considerações face ao (in)sucesso atingido em cada momento da nossa vida.
Esta lente do amor-próprio e da autoestima poderá ajudar cada um de nós a não cair na armadilha comum de não corresponder às nossas próprias expectativas (tantas vezes irrealistas), conduzindo a comparações desadequadas com os outros, sentimentos de depreciação e desvalorização pessoal ou mesmo depressão.
A ciência tem vindo a concluir que quando utilizamos a autovalorização para a construção de uma autoestima positiva, acabamos mais frequentemente por fortalecer uma intolerância face aos nossos erros, falhas (e às dos outros) e de tudo aquilo que na verdade faz de nós aquilo que somos, a nossa humanidade.
Pelo contrário, a ciência indica que a lente da compaixão por nós e pelos outros permite-nos observar de forma muito mais atenta e positiva as nossas necessidades, bem como a dos outros, disponibilizando-nos muito mais para cooperar, ajudar e estar em relação, e não centrados exclusivamente no nosso bem-estar, sendo que este sentimento de intimidade e pertença impacta profundamente o amor e a estima que temos por nós.
A ciência aponta ainda que a compaixão está associada a uma atitude mais compreensiva do ser humano consigo mesmo e, consequentemente, ao aumento da autoestima.
Deste modo, a autoestima baseada na valorização pessoal, através da conquista, do sucesso ou do desempenho, tende, na verdade, a ser efémera. Ao contrário do que vai sendo divulgado nos media, o caminho mais eficaz para desenvolver e preservar a autoestima não consiste em pensar mais em si mesmo ou em colocar-se em primeiro lugar. Pelo contrário, passa por desenvolver compaixão pelos outros e por si próprio, numa perspetiva muito menos egocêntrica e individualista.
Sílvia Coutinho é psicóloga e terapeuta familiar e de casal. Em terapia, procura promover relações com maior conexão emocional, com famílias, casais e a nível individual. Adora refletir sobre as emoções mais profundas que sentimos quando nos relacionamos e acredita ser através destas relações, vividas de forma saudável, que conseguimos também individualmente potenciar o nosso bem-estar, equilíbrio e felicidade. Siga-a no Instagram.