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Crónica. O que mudou nos relacionamentos nos últimos 20 anos?

Crónica. O que mudou nos relacionamentos nos últimos 20 anos?

Nunca pensamos tanto no amor e nos afetos como hoje, mas nunca nos sentimos tão sozinhos e infelizes como hoje. O que mudou realmente na forma como nos relacionamos?

Por Out. 24. 2022

Tanto existe na nossa vida que nos envolve, mas também que nos esgota. Os dias são corridos e tentamos que os obstáculos não se tornem intransponíveis. Nem sempre sobra muito de nós para tudo o que de resto existe na nossa vida e que se liga àquilo que muitas vezes referimos como sendo a nossa real prioridade: as nossas relações.

De facto, muito tem vindo a mudar nos últimos anos face à forma de vivenciarmos os nossos relacionamentos mais íntimos e, na verdade, as expectativas encontram-se mais altas do que nunca.

Hoje, queremos do nosso parceiro o que sempre procurámos: estabelecer uma família, ter filhos, ter um apoio económico, status e respeito social. Mas queremos também que o nosso parceiro seja um eterno apaixonado, amante, confidente, amigo e uma âncora para o nosso desenvolvimento pessoal. Queremos tudo numa só pessoa.

Hoje, é comum procurarmos numa só pessoa o que antes encontrávamos numa comunidade inteira.

A superficialidade e o imediato da vida acabou por interferir também na superficialidade dos vínculos e das relações
Sílvia Coutinho, psicóloga

Embora as expectativas sejam altas, a dedicação e entrega é muitas vezes reduzida ou dispersa por um conjunto infinito de tarefas, estímulos e a carreiras sucessivamente mais exigentes.

Cada vez mais as pessoas parecem querer relacionamentos, é verdade, mas relacionamentos fáceis, que não exijam esforços, trabalho ou grandes preocupações ou responsabilidades.

A superficialidade e o imediato da vida acabou por interferir também na superficialidade dos vínculos e das relações. Somos seres relacionais, necessitamos de relações, mas por vezes parece que o amor, o afeto e os vínculos fortes e seguros perderam o seu lugar.

Era do individualismo

Por muito tempo, a humanidade viveu em tribos ou comunidades onde era muito claro o que se esperava de cada um. A liberdade era reduzida, não obstante, parecia existir um maior sentido de identidade e de pertença.

Atualmente, encontramo-nos bastante isolados, as pessoas sentem-se muito sozinhas, conduzindo sucessivamente a um maior medo face à conexão emocional com o outro, o medo da vulnerabilidade, do outro não estar realmente na relação ou a colocar o mesmo investimento, o que conduz a relações superficiais, sem grande compromisso face aos vínculos.

Envolvemo-nos com os outros para lidar com essa solidão, mas não nos queremos comprometer com a profundidade e a responsabilidade da relação.

Colocamos as nossas fronteiras e, mais importante ainda, indisponibilizamo-nos enquanto indivíduos a estar naquela relação.

Sentimo-nos assim asfixiados e encurralados, e quando assim é, voltamo-nos para a enorme montra global das relações (nomeadamente através das redes sociais) e substituímos com bastante facilidade ‘aquele’ por um ‘outro’ que acreditamos ser muito melhor, mais bonito, mais competente, mais atraente, ou simplesmente menos aborrecido e exigente.

Neste individualismo constante, os vínculos vão-se perdendo e dando lugar a outros, sucessivamente menos profundos.

Andamos incessantemente à procura da felicidade, mas na verdade não sabemos o que ela significa para nós
Sílvia Coutinho, psicóloga

A escravidão da felicidade

Neste sentido, hoje em dia a grande questão não reside apenas em perceber se nos sentimos felizes neste relacionamento, mas se poderíamos estar ainda mais felizes noutro.

Andamos incessantemente à procura da felicidade, mas na verdade não sabemos o que ela significa para nós. Conhecer alguém, casar e morrer é uma fórmula que deixou de fazer sentido na sociedade moderna.

Nunca investimos tanto no amor mas, ao mesmo tempo, nunca tivemos um número de divórcios tão elevado. A sobrevivência das famílias nunca dependeu tanto da felicidade de casais como atualmente.

Não obstante, esta pressão para uma felicidade que idealmente deverá ser constante e permanente escraviza-nos e fragiliza-nos.

Parecemos esquecer que, de todo um vasto leque de emoções, a tristeza, a frustração, a impotência, a desilusão, podem e devem também fazer parte das nossas relações. Servem para serem colocadas em cima da mesa, obrigar-nos a refletir, a escutar realmente o outro e a olhar para o mais fundo de nós e questionarmo-nos. Obriga-nos a negociações para então amadurecermos e crescermos individualmente numa relação ou mesmo enquanto casal.

Pelo contrário, esta escravidão da felicidade conduz-nos a um sentimento de desadequação social. E “se todos são tão felizes, porque é que também não posso sentir-me ainda mais feliz?”. Cruzamos os braços, não nos envolvemos, não aprofundamos. Desistimos e passamos à história seguinte.

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Novas configurações relacionais

Os relacionamentos amorosos têm assumido diferentes configurações, cada vez mais os seus principais intervenientes se questionam sobre o que é, afinal, o amor, anseiam por relações apaixonadas e vibrantes, que contribuam para o seu desenvolvimento pessoal.

Todas as novas formas de relação são negociações para lidar com o paradoxo do amor e do desejo. Procuramos uma vida inteira manter um relacionamento estável, comprometido a longo prazo, ao mesmo tempo que nos realizamos pessoalmente, encontramos a felicidade e a satisfação sexual.

Antes, a monogamia era ter uma pessoa para a vida, hoje a monogamia é ter uma pessoa de cada vez
Sílvia Coutinho, psicóloga

Todos os modelos procuram dar às pessoas segurança e proteção, ao mesmo tempo que procuram responder à necessidade de aventura, de mistério e adrenalina na relação, para que esta não se torne enfadonha e previsível, sendo necessário tornar-se algo que se cultiva e explora em conjunto, quer se trate de relações não monogâmicas consensuais (Bigamia, Poligamia, Relações Abertas, etc.), quer se trate de relações monogâmicas (Casais monogâmicos hétero, homossexuais, casais que vivem em casas separadas, etc.).

Atualmente, a monogamia passou a ser percecionada e experienciada de maneira diferente. Antes, a monogamia era ter uma pessoa para a vida, hoje a monogamia é ter uma pessoa de cada vez.

A comunicação dos casais e a grande pedra no sapato

É facilmente compreendido que a comunicação numa relação é essencial. Contudo, concluímos muitas vezes que, na verdade, não sabemos como o fazer, não sabemos como conversar, não sabemos como nomear o que sentimos ou até mesmo o queremos ou necessitamos. Sentimo-nos perdidos.

As relações saudáveis e positivas são maravilhosas, mas são ainda poucos aqueles que aprenderam corretamente a navegá-las.

Simplesmente não sabemos como comunicar emoções e precisamos urgentemente de descobrir, conduzindo na sua ausência à falência de muitas relações. Hoje, a intimidade nos casais é uma intimidade onde o companheiro deverá conseguir aceder profundamente ao outro (ao seu mundo interno), onde temos de falar sobre coisas das quais nunca conversámos e sobre as quais não sabemos falar.

Implica o outro ver-me realmente e implica o Eu conseguir mostrar-se ao outro.

Embora a transparência seja cada vez mais uma característica comum da nossa contemporaneidade, onde tudo é mostrado e dito nas redes sociais, no final, ninguém fala verdadeiramente. Ninguém conversa sobre as dificuldades, os obstáculos, as lutas e sobre o investimento que os relacionamentos necessitam para serem nutridos, construídos e sobreviverem a um ciclo que poderá ser longo numa relação.

Mais do que nunca é preciso conversar, mas conversar verdadeira e autenticamente sobre as relações. Precisamos falar sobre as imperfeições, sobre as sombras, sobre as dores que existem também num casal que procura fazer-se feliz.

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A crise do desejo

Atualmente, são muitos os casais que afirmam ter um bom relacionamento, são cúmplices e íntimos, mas sentem faltam de desejo.

Depositamos cada vez mais no nosso parceiro esta dupla necessidade, nem sempre facilmente atingível: a necessidade de encontrar uma relação comprometida, segura e estável e, ao mesmo tempo, desejar fomentar a novidade, o desconhecido, o mistério, a aventura e o arrebatamento.

Ou seja, que esta mesma pessoa que é o nosso parceiro, seja familiar e desconhecido, previsível, mas surpreendente, que me estabilize, mas que me excite!

A ligação que inicialmente dava segurança, pode agora na sua evolução conduzir à sensação de asfixia face à necessidade de adrenalina.

A autenticidade e a espontaneidade do início do casal não permite prever a ambivalência que também pode o amor ser com o tempo. É o paradoxo do amor e do desejo no relacionamento amoroso que devemos aprender a navegar nos relacionamentos atuais.

Eu, tu, nós, a tecnologia e os dates

Os telemóveis, as redes sociais e a Internet vieram alterar o modo como interagimos. O mundo aumentou de tamanho e o número de pessoas que entram e se instalam na nossa vida parece ser igualmente considerável. Este é o impacto que as redes sociais assumem na nossa vida e, nomeadamente, nos relacionamentos.

Existem muitas decisões que temos de tomar: escolher com quem sair, com quantas pessoas sair ao mesmo tempo, etc. As redes sociais e as aplicações de encontros parecem ter aumentado ainda mais as diferentes opções possíveis, surgindo como uma ponte que estabelece a aproximação entre duas ou mais pessoas.

Contudo, a dinâmica de um encontro parece assemelhar-se a uma entrevista de emprego, desvanecendo o mistério, a poesia dos vínculos e o tempo necessário para os construir com calma e entrega, dificultando também a dança da relação dos casais, que nem sempre utilizam este tempo para a construção do seu Nós (definição dos limites, das fronteiras, das bandeiras verdes ou vermelhas num relacionamento, construção de valores como pilares da relação, etc.).

As tecnologias e as redes sociais trouxeram igualmente a necessidade de se repensar o conceito de traição
Sílvia Coutinho, psicóloga

Por um lado, a tecnologia é hoje uma parte integrante da nossa vida, e o grau de consumo desta (por vezes podemos mesmo falar de dependência) poderá afetar o tempo de qualidade de um casal, nomeadamente quando o telemóvel é o primeiro e o último objeto a que damos atenção. Por outro lado, as tecnologias constituem muitas vezes um meio de controlo e posse para parceiros abusivos.

Diante de discussões, mal entendidos e perspetivas diferentes, verificamos que tornou-se cada vez mais fácil descartar o outro (eliminar aquela relação, seja amorosa, seja de amizade), prosseguindo a nossa vida com outros que a nós se ajustem ou com que nos identifiquemos.

As tecnologias e as redes sociais trouxeram igualmente a necessidade de se repensar o conceito de traição.

Mesmo quando ocorre uma aproximação virtual, a partilha de aspetos relativos à nossa intimidade/privacidade, a partilha de sentimentos que conduz à construção de uma ligação emocional, poderá ser interpretado como uma traição. Independentemente de ser no mundo virtual ou real.

E agora?

Os relacionamentos são a nossa história. Eles refletem de onde vimos e para onde caminhamos. E muito tem mudado nos últimos anos na forma como os vivenciamos.

As relações têm vindo a mudar e é cada vez mais impossível que fiquem paradas, como se fossem pedras, sem serem cuidadas e trabalhadas com aquilo que realmente necessitam para serem nutridas.

As relações necessitam de um trabalho de equipa. De um trabalho movido a dois. De uma maior consciência acerca de uma nova forma de ser e estar connosco e, consequentemente, de ser e estar com o outro.

Mais do que nunca, para um futuro saudável, as relações necessitam que sejamos capazes de olhar para as nossas imperfeições.

O futuro saudável das relações passa então por nos colocarmos diante destas de uma maneira completamente nova, na certeza de que esta aceitação da nossa humanidade permite, sem dúvida, a uma maior aceitação da humanidade do outro. Da sua imperfeição.

As relações necessitam de um diálogo e de uma comunicação franca, tão honesta e profunda como se calhar nunca nos permitimos anteriormente na nossa vida. Necessitam que conversemos de coisas que nunca conversámos antes e que provavelmente nem sabemos como falar.

As relações necessitam que arrisquemos mais, que as abracemos com mais profundidade, necessitam que trabalhemos as nossa competências pessoais, a nossa inteligência emocional, as nossas emoções. Precisam igualmente de serem nutridas com disponibilidade, com energia, e não com um ser já esgotado e sem muito para oferecer.

Necessitam que aprendamos a colocar os nossos limites, que sejamos capazes de levantar as nossas bandeirolas vermelhas e que sejamos mais íntegros e honestos em primeiro lugar connosco mesmos.

Tudo isto acaba por ter impacto na qualidade das nossas relações. E da qualidade das nossas relações, resultará o sentido de qualidade da nossa vida.

Sílvia Coutinho é psicóloga e terapeuta familiar e de casal. Em terapia, procura promover relações com maior conexão emocional, com famílias, casais e a nível individual. Adora refletir sobre as emoções mais profundas que sentimos quando nos relacionamos e acredita ser através destas relações, vividas de forma saudável, que conseguimos também individualmente potenciar o nosso bem-estar, equilíbrio e felicidade. Siga-a no Instagram.

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