Crónica. Porque nos apaixonamos pela pessoa errada?
Dos dias iniciais de uma paixão intensa ao amor destrutivo, parece que só conseguimos perceber o quão errada é uma pessoa quando estamos no lugar de sofrimento. Mas, afinal, o que nos leva a apaixonar por quem nos apaixonamos? E porque é que, tantas vezes, parece que nos apaixonamos pela pessoa errada?
Ninguém quem ser magoado numa relação. Mas o que é certo é que muitas vezes acabamos por entrar em relações que acabam por ser tremendamente destrutivas ou, pelo menos, que mais cedo ou mais tarde revelam provocar-nos grande dor, instabilidade emocional e insegurança, com enormes consequências ao nível da nossa autoestima, tornando-se o amor num lugar do qual queremos fugir.
Julgamo-nos livres nas nossas escolhas. Mas talvez não sejamos assim tão livres. Na verdade, revelamos muitas vezes uma tendência para nos sentirmos atraídos por determinado tipo de pessoa, de qualidade ou de característica.
O que nos leva a sentir atração e apaixonar por quem nos apaixonamos?
A paixão é um processo bastante complexo, envolvendo a combinação de diversos fatores que poderão ser biológicos, psicológicos, sociais e até culturais.
Quando conhecemos alguém atraente, o nosso cérebro liberta substâncias químicas, como dopamina, oxitocina e seretonina, que nos ativam e nos inundam de sensações de prazer, ligação e felicidade. Sentimos atração com alguém porque também essas substâncias são libertadas mais intensamente quando estamos em contacto com essa pessoa. A ciência refere que até a libertação de um determinado tipo de cheiro, nos poderá fazer sentir mais atraídos por alguém.
Para além das características físicas que possamos associar a beleza ou intelectuais/psicológicas, existe uma certa química que nos parece ligar a determinadas pessoas, assim como a ausência desta a distanciar de potenciais pessoas-parceiras. A ciência vai-nos indicando tratar-se não só de uma química física, mas também cognitiva e emocional.
Esta química cognitiva e emocional, não descarta os aspetos fisiológicos, mas parece adicionar a estes características mais profundas de conexão ou desconexão emocional e de pensamentos mais imediatos face a uma potencial pessoa-parceira. Desta forma, poderemos sentir-nos conectados ou não com determinada pessoa, com base no nosso mundo interno, ou seja, com tudo aquilo que existe estruturado em nós, face às experiências que vivemos e que deram origem a uma espécie de modelo interno acerca do amor, do afeto, do cuidado, do nosso merecimento, valor, etc.
É como se existisse dentro de nós um grande software de computador onde fica registado tudo o que interpretamos e anotamos acerca de questões absolutamente complexas das relações, muitas vezes a partir das experiências que vamos vivendo no decurso da nossa vida, não só com as nossas primeiras figuras cuidadoras, como também amigos e experiências românticas anteriores. A forma como fomos cuidados poderá moldar a maneira como nos relacionamos com os outros no nosso momento presente.
Estas experiências vividas são integradas no nosso modelo interno acerca do mundo, dos outros e de nós, dando origem à construção de diversos padrões de vinculação (ou seja, a forma como nos iremos relacionar tendo origem na forma como se relacionaram connosco), mas também, por vezes, a padrões cognitivos disfuncionais designados de esquemas mal adaptativos precoces. Estes esquemas resultam de experiências e de necessidades básicas não satisfeitas ou não respondidas desde a nossa infância, consistindo em memórias, emoções, crenças, cognições e sensações físicas que influenciarão o nosso pensamento e comportamento, e consequentemente as nossas escolhas e decisões.
Quando a desconexão, a instabilidade emocional, a violência, o abandono, a crítica, a frieza, a distância, a inflexibilidade, entre outros, acontecem nas nossas primeiras relações ou mesmo nas relações que se seguem, a vivência destes poderá conduzir-nos ao afastamento daquilo que tanto precisamos enquanto seres humanos. Mesmo precisando de amor, segurança e consistência podemos, muitas vezes, começar a acreditar (por vezes, sem grande consciência), que todas essas coisas são grandes e boas demais para nós, de que não precisamos assim tanto delas, ou que não serão necessárias.
Desta forma, poderemos sentir-nos atraídos por pessoas que ativam uma espécie de química emocional e psicológica, de acordo com os padrões de vinculação, mas também desta química esquemática que possuímos.
Tendo em conta os padrões de vinculação, verificamos que:
• Pessoas com Padrão de Vinculação Seguro – Tendem a escolher parceiros emocionalmente disponíveis, saudáveis e estáveis;
• Pessoas com Padrão de Vinculação Inseguro Ansioso – Muitas vezes escolhem parceiros que são emocionalmente distantes ou difíceis de ler, o que pode reforçar sua insegurança e medo de abandono. Tendem a ficar ansiosos com a falta de contacto ou comunicação, o que pode resultar em pressões emocionais excessivas sobre o parceiro. A procura por segurança emocional constante pode ser vista como “exigente” ou “carente”, o que pode conduzir ao afastamento da pessoa-parceira;
• Pessoas com Padrão de Vinculação Inseguro Evitante – Tendem a evitar compromissos profundos ou têm dificuldade em formar conexões emocionais profundas. Podem ser atraídos por parceiros que são igualmente distantes ou que não pressionam por maior intimidade emocional. Evitam confrontos ou discussões profundas sobre sentimentos, preferindo manterem-se independentes e reservados;
• Pessoas com Padrão de Vinculação Inseguro Desorganizado – As relações podem ser intensas, volúveis, caóticas e contraditórias, com comportamentos de “aproximação” seguidos de “afastamento”. Têm dificuldade em confiar completamente no parceiro, o que pode levar a uma constante sensação de insegurança e instabilidade emocional.
Por outro lado, a química esquemática consiste na atração de relações que ativam as nossas dores emocionais mais profundas e nos aproximam de situações ou emoções que um dia já foram comuns/habituais para nós. Ou seja, consistem em situações ou respostas já conhecidas, coerentes ou familiares, de acordo com o que um dia já foi vivido por nós.
Por exemplo, uma pessoa que recebeu desprezo, críticas, humilhação, desvalorização, indisponibilidade emocional ou situações de intensa instabilidade emocional, poderá perceber como semelhante ou familiar este tipo de situações nos seus relacionamentos. Não se torna atraente porque desejemos viver tudo isso novamente, mas porque este poderá ser um lugar muito pouco saudável, mas no qual nos habituamos a viver.
Por outro lado, quando estamos diante do novo, de novas respostas tão diferentes do habitual disfuncional, estas poderão ser sentidas como estranhas, parecendo que não nos sabemos encaixar. Muitas vezes, não sabemos como lidar com uma relação saudável, onde demonstram interesse por nós, atenção, cuidado, afeto e tantas outras coisas boas de existir numa relação. Às vezes, não sabemos como receber amor e conexão.
Às vezes, ficamos viciados no ciclo de instabilidade emocional, reconhecendo como adrenalina a relação, pelas relações tóxicas que nos colocaram em modo de sobrevivência e com altos níveis de cortisol (stresse) e adrenalina, acabando por associar todas estas reações físicas intensas a paixão e atração.
Outras vezes, quando estamos encantados por alguém, muitos dos seus comportamentos poderão tornar-se impercetíveis ou acabamos por criar mecanismos (iludimo-nos), de modo a fazer com que aquela pessoa e as suas respostas se encaixem nos nossos modelos internos. A ilusão é como um filtro mental que permite enquadrar a pessoa por quem nos sentimos atraídos nos nossos modelos internos, por vezes utilizando expectativas irrealistas ou idealizadas. Por exemplo, acreditando que com o passar do tempo da relação, esta será melhor, mesmo quando vamos assistindo a ausências de progressos e muitas vezes até de iniciativas nesse sentido.
Ganhar consciência das nossas armadilhas internas
Lidar com as nossas dores, os nossos padrões, a nossa bagagem emocional e emoções não é fácil. Contudo, ganhar consciência de nós mesmos e das necessidades emocionais que trazemos em nós, poderá ser o início de um processo de consciência pessoal, e também com a nossa pessoa parceira numa relação, promovendo desta forma a construção de uma relação saudável.
Se não conhecermos aquilo que precisamos, então teremos uma enorme tendência a mergulhar em relações onde iremos repetir os mesmos padrões infinitamente, impactando-nos emocionalmente. O lugar das escassez emocional de uma relação nunca será um lugar saudável.
Desta forma, poderá ser importante:
1. Identificar as suas necessidades emocionais;
2. Identificar os gatilhos que ativam os seus esquemas e padrões – as características das pessoas que vão mantendo os esquemas ou que costumam fazê-la sentir emoções desconfortáveis e que remetem a experiências dolorosas do passado;
3. Diferenciar o presente do passado – reconhecer que existe a tendência humana de repetir padrões conhecidos, porque são familiares, e que proporcionam, por isso, intensa atração, mas que nos conduzem a feridas emocionais. Podemos ganhar consciência, sair do piloto automático e quebrar o padrão;
4. Compreender que comportamentos alimentam o padrão – ou seja, que estratégias costuma utilizar para aliviar as emoções desconfortáveis da ativação dos esquemas, como por exemplo:
- comportamentos evitantes ou de fuga – mudar o rumo da conversa com alguém que a está a elogiar, pois contraria o seu esquema de vergonha e defetividade (defeito/desvalorização pessoal);
- comportamentos resignados sendo sabotadores da sua satisfação emocional – não expressar as suas necessidades emocionais ou pensar que nunca haverá hipóteses de ser feliz;
- Comportamentos hipercompensatórios – na procura de preenchimento emocional, poderá lutar para ter as suas necessidades respondidas, mas a resposta que utiliza acaba por afastar mais as pessoas.
5. Modificar a dinâmica que favorece o padrão – quando compreendemos o que realmente precisamos numa relação, torna-se mais fácil ter atitudes em relação a esta mais assertivas e construtivas. Por exemplo, alterando a comunicando do casal. A verdadeira conexão emocional envolve clareza no que expressamos, mas também atenção e cuidado no que é falado pela outra pessoa e em como a mensagem o(a) poderá fazer sentir. Comunicar melhor é de uma enormíssima importância para construir melhores relações!
Neste sentido, para cada modelo interno, há relações que seriam potencialmente saudáveis, proporcionando experiências emocionais corretivas. Contudo, este é um processo de autoconhecimento e que necessita desta capacidade de reflexão e conhecimento pessoal.
Alguém que tem no seu modelo interno o esquema de abandono, deverá ter em atenção, no que toca à escolha amorosa, uma pessoa-parceira estável emocionalmente e motivada para criar um vínculo duradouro ou uma relação que gira segurança pela sua consistência e durabilidade.
Alguém que traz consigo o esquema de defetividade/vergonha, deverá ter em atenção uma pessoa-parceira afetuosa e pouco crítica ou uma relação com conexão emocional, empatia, apoio e cuidado entre as partes.
Para alguém que traz consigo o esquema da subjugação/anulação pessoal, a escolha amorosa deverá passar por uma pessoa-parceira que consiga escutar o que ela ou ele tem a dizer, validar as suas necessidades e desejos, ou uma relação em que ambos possam expressar espontaneamente e na qual não se precise submeter ou tornar-se invisível para ser amada/o ou por medo de ser abandonada ou sofrer retaliação.
Aumentar o conhecimento de como é uma relação com um vínculo seguro, poderá ser igualmente uma forma interromper/trabalhar padrões destrutivos ou fazer escolhas erradas.
Encerrar relações destrutivas
É natural investirmos na melhoria e na saúde das nossas relações intimas e próximas. Contudo, quando a relação é pautada por este tipo de dinâmica absolutamente disfuncional e que tem tantas vezes o potencial de deixar marcas profundas ao nível da autoestima e até da saúde mental, poderá ser importante ponderar a possibilidade de terminar a relação e encerrar este capítulo de relações destrutivas.
Mudar implica sempre medo e insegurança, mesmo que consigamos agora perceber que nos apaixonamos por alguém que nos traz um profundo sofrimento e/ou que a base da relação é abusiva ou disfuncional. Tantas vezes, as pessoas ainda assim se mantém naquele vínculo porque mesmo sendo abusivo, trata-se de uma conexão. Muitas pessoas, referem o medo da solidão, de nunca mais encontrar um outro alguém ou de não puderem ser novamente felizes.
Não obstante, quando estamos diante de uma relação que não funciona, que se revela destrutiva, esquecemos muitas vezes o objetivo que claramente uma relação deverá ter para nós: de crescimento conjunto, de reciprocidade, de saúde relacional, de bem estar, de alegria e entusiasmo e não de dor e sofrimento. Esquecemos muitas vezes de nós mesmas. Poderá ser importante recordar que as suas necessidades emocionais são importantes, assim como o seu bem-estar e saúde física e emocional.
Nada impacta mais a qualidade da nossa vida, do que a qualidade das relações que construímos.