São muitas as vezes que associamos o termo violência a agressão física. Contudo, a violência inclui qualquer forma de uso intencional de força, coação ou de intimidação com a finalidade de lesar a integridade, os direitos e necessidades de outra pessoa.
Na verdade, numa relação abusiva nem sempre a violência física se manifesta, não significando que o relacionamento não seja violento. A violência emocional e psicológica é mais prevalente do que a violência física, contudo também pelo facto de não causar marcas visíveis, nem sempre é totalmente compreendida.
O que é o abuso emocional e psicológico?
O abuso emocional e psicológico consiste num conjunto de comportamentos verbais ou mesmo não verbais, isolados ou repetidos continuamente, utilizados de forma intencional, com o intuito de causar dano e sofrimento emocional e psicológico no outro.
Apropria-se das emoções com o intuito de criticar, constranger, envergonhar, culpar ou manipular o outro, desacreditando-o, isolando-o e silenciando-o.
Muitas vezes, a sociedade tende a desvalorizar esta forma de violência, por considerar mais leve por não apresentar marcas físicas. Contudo, esta é (como qualquer outra forma de violência), extremamente grave.
Por ser emocional e psicológica e, assim, não ser possível ser vista, uma vez que não deixa marcas físicas, pode tornar-se mais difícil de identificar e reconhecer, mas gera um sofrimento profundo e duradouro nas vítimas, afetando negativamente o bem-estar e saúde psicológica.
O abuso emocional e psicológico poderá ser perpetuado por um parceiro(a) numa relação amorosa, poderá ser um pai ou uma mãe, um(a) amigo(a), um colega de trabalho, um chefe, um irmão ou irmã, etc.
Na verdade, os agressores podem ser qualquer pessoa, independentemente da sua idade, do seu género, do seu estatuto socioeconómico ou mesmo nível educacional, podendo esta forma de violência anteceder outras formas de violência (exemplo, física, sexual, financeira, etc).
Todas as relações, seja qual for a sua natureza (amorosa, familiar, entre amigos, profissional) é sempre abusiva, quando existe alguma forma de violência. Uma relação saudável é uma relação onde nos sentimos vistas, consideradas, compreendidas, respeitadas, onde existe espaço para ambos os elementos, vivenciando a relação com equilíbrio e com base em direitos iguais.
Pelo contrário, nas relações abusivas, a vítima tem sempre a percepção de deixar de existir, de desaparecer enquanto pessoa.
Esta forma de violência poderá conter comportamentos como:
Depositar expectativas irreais no outro
- Fazer exigências irracionais;
- Esperar que a vítima deixe tudo e atenda constantemente às suas necessidades;
- Independentemente do quanto tenta ou do quanto dá, o agressor revela uma insatisfação constante;
- Exigir que passe o tempo todo consigo;
- Exigir que nomeie datas e horários exatos ao discutir coisas que o incomodam.
Invalidação emocional
- Contaminando ou distorcendo as percepções da vítima acerca da realidade;
- Recusando-se a aceitar os sentimentos e emoções da vítima, procurando definir como esta se deve estar a sentir;
- Acusando a vítima desta ser “demasiado sensível”, “muito emocional” ou até “louca”;
- Recusar-se a reconhecer ou aceitar as opiniões ou ideias da vítima como válidas;
- Descartar os seu pedidos, desejos ou necessidades, catalogando-os de “ridículos, não merecidos ou sem sentido”;
- Sugerir que as percepções da vítima estão erradas ou que esta não é confiável.
Vivência de caos constante
- Iniciar discussões face à forma como a vítima pensa ou argumenta;
- Fazer declarações confusas e contraditórias;
- Mudanças drásticas de humor com explosões emocionais repentinas;
- Criticar ao pormenor as roupas, o cabelo, o trabalho e muitos contornos que fazem parte da vida da vítima;
- Comportando-se de forma imprevisível, como se a vítima estivesse a pisar um campo de minas.
Chantagem emocional
- Manipulando ou controlando a vítima, fazendo-a sentir-se culpada;
- Humilhando-a em público ou em privado;
- Utilizar os medos ou as fragilidades emocionais da vítima de modo a controlá-la;
- Exagerar as falhas da vítima ou apontá-las de modo a desviar a atenção ou evitar assumir a responsabilidade pelas suas próprias más escolhas ou erros;
- Negar que um acontecimento ocorreu ou mentir sobre ele;
- Punir a vítima, não lhe dando afeto, ou remetendo-se a um silêncio gélido.
Comportamento de superioridade
- Menosprezar, diminuir, inferiorizar e humilhar a vítima;
- Culpá-la pelos erros ocorridos;
- Duvidar de tudo o que a vítima diz e tentar provar que esta está errada;
- Ridicularizá-la;
- Dizer que as opiniões, ideias, valores e pensamentos são estúpidos ou sem sentido;
- Utilizar sarcasmo ou condescendência ao interagir com a vítima;
- Agir como se estivesse sempre certo, como se soubesse o que é melhor ou como fosse mais inteligente do que a vítima.
Controlar e isolar a vítima
- Controlar com quem a vítima se relaciona, incluindo amigos, colegas de trabalho ou familiares;
- Controlá-la digitalmente, incluindo mensagens de texto, redes sociais, WhatsApp ou email;
- Exigir saber onde está a vítima de forma constante, utilizando o GPS de modo a rastrear todos os seus movimentos;
- Tratá-la como uma posse ou propriedade;
- Criticar os amigos ou colegas de trabalho da vítima;
- Utiliza o ciúme como um sinal de amor, de modo a evitar que a vítima se relacione com outras pessoas;
- Coagir a vítima a passarem o tempo todo juntos.
Pode ser bastante difícil discernir se a relação é de facto abusiva. Para tal, pode tornar-se mais fácil refletir como as interações com aquela pessoa a fazem sentir.
Se após essas interações se sente de forma constante confusa, incompreendida, magoada, frustrada, deprimida, ansiosa ou inútil, então existe uma grande probabilidade de se tratar de um relacionamento abusivo.
Questões que podem ajudar a perceber se está numa relação abusiva
1. Ele(a) tenta apanhar as inconsistências do meu discurso de modo a demonstrar que estou a mentir?
2. Tenta convencer os outros de que estou louca?
3. Afirma às outras pessoas que algo de errado se passa comigo?
4. Diz coisas que me magoam profundamente?
5. Diz-me que não sou atraente?
6. Diz-me que sou desadequada?
7. Insulta a minha religião e os meu valores?
8. Insulta as minhas origens?
9. Insulta a minha família?
10. Fala comigo sobre coisas que me fazem sentir mal?
11. Diz-me que nunca ninguém me desejará?
12. Humilha-me à frente de outros?
13. Faz-me fazer coisas degradantes?
14. Questiona a minha saúde mental?
15. Revela informações pessoais privadas a outras pessoas?
16. Ataca verbalmente a minha personalidade?
17. Insulta-me dizendo que sou incompetente?
18. Ridiculariza-me?
19. Força-me a fazer coisas contra a minha vontade?
20. Questiona se o meu amor é verdadeiro?
21. Compara-me desfavoravelmente a outros parceiros?
22. Intencionalmente faz coisas para me assustar?
23. Ameaça-me fisicamente durante as discussões?
24. Ameaça-me de que se continuo a fazer alguma coisa, a violência continuará?
25. As nossas discussões escalam para fora de controlo?
26. Preocupo-me ainda mais quando ele(a) está demasiado calmo?
27. Conduz furiosamente ou demasiado rápido quando está zangado(a)?
O impacto emocional e psicológico nas vítimas
Nem sempre é fácil de reconhecer e identificar uma situação de violência emocional e psicológica. Nomeadamente, quando muitas vezes esta tende a acontecer de forma muito subtil.
Esta relação abusiva, tóxica e violenta atira a vítima para um profundo lugar de insegurança, vergonha e humilhação, sentindo-se permanentemente incompetente, incapaz ou sem qualquer tipo de valor, sem controlo ou poder sobre si própria, impotente, com uma enormíssima falta de confiança interna, com uma ausência de autoestima, sendo incapaz de explicar o que acontece de errado naquela relação, perdida, vazia emocionalmente, sem espaço para ser quem é, duvidando das suas perceções e emoções ou com uma urgência em alterar o seu comportamento de modo a agradar ao agressor.
Quando o abuso emocional é grave e contínuo, e com o decorrer constante das acusações, das dúvidas permanentes, do abuso verbal, das humilhações, críticas e gaslighting, a vítima tende a perder o seu sentido de identidade, não se percecionando se forma realista, ou percecionando o comportamento violento como um sinal de proteção, de amor, de cuidado ou proteção, minimizando ou mesmo normalizando ou justificando o comportamento abusivo do agressor.
Muitas vezes, as vítima apresentam traços de comportamentos de dependência emocional, mantendo-as persistentemente na situação de violência.
Como todas as formas de violência, a vítima sente-se imensamente vulnerável e frágil emocionalmente, apresentando uma necessidade de isolamento, dificuldades de concentração, dificuldades em dormir, apresentando sintomas de ansiedade e estado de hipervigilância, permanecendo numa situação de medo e confusão mental face ao que acontece.
Deste modo, ao experienciar uma situação de violência emocional e psicológica, não é estranho verificarmos que a vítima poderá vir a desenvolver problemas de saúde psicológica, tais como perturbação de ansiedade, depressão, distúrbios alimentares, comportamentos autolesivos ou mesmo suicídio ou mesmo a afetar fisicamente, desenvolvendo palpitações cardíacas ou insónias.
As vítimas de violência emocional e psicológica podem não ter uma única nódoa negra ou marcas visíveis do abuso. Assim, embora as suas feridas não sejam visíveis, tendem a ser verdadeiramente devastadoras.
O que fazer numa situação de abuso emocional?
O processo de identificar o abuso emocional numa relação poderá ser difícil, face ao carácter subtil com que muitas vezes se manifesta. Contudo, observar aquela relação de uma forma franca e honesta, reconhecendo as diferentes formas do abuso se manifestar, poderá ser o primeiro passo para conseguir lidar com a situação e tomar a decisão das batalhas que de facto pretende travar na sua vida. O que aceita que faça parte da sua vida e o que não aceitará mais.
No que respeita à nossa saúde mental e física, é essencial trabalharmos em nós a capacidade de nos preservarmos e priorizarmos. Neste sentido, é fundamental reaprender a cuidar das suas necessidades, a cuidar de si, recordando-se novamente do seu sentido de pessoa e do seu imenso valor pessoal.
Estratégias simples de autocuidado poderão ser importantes neste caminho de regresso a si.
Por outro lado, torna-se urgente a colocação de limites firmes e claros diante do abusador, indicando-lhe as suas bandeiras e linhas vermelhas de tudo aquilo que não permite mais que aconteça naquela relação.
Caso o abusador não respeite, indique-lhe as consequências de não tolerância face a situações de abuso, de não puder fazer parte daquela relação ou de se retirar do local, caso o abuso permaneça.
É igualmente importante compreender que é o comportamento do abusador que é errado, não se colocando no lugar de culpa que paralisa a acção de se retirar de uma situação tão destrutiva individualmente.
Abusar é ultrapassar limites pessoais e individuais que não deu (nem dará) o consentimento para que aconteça. Abusar emocionalmente é uma forma de violência e, por isso mesmo, inaceitável!
O abuso emocional não é um comportamento do outro que possamos alterar ou transformar. Não somos terapeutas de ninguém. Há coisas que simplesmente não podemos consertar, nem temos de assumir essa responsabilidade.
Embora esta forma de violência seja na verdade a mais prevalente, o certo é que nem sempre os amigos, familiares ou colegas de trabalho partilham da mesma perspectiva, ao estarem posicionados fora daquela relação.
Muitas vezes, apenas contactam com a parte sedutora do abusador e, portanto, a parte aparentemente simpática e gentil.
Deste modo, nem sempre é fácil comunicar com alguém sobre o que realmente se passa naquele relacionamento, com medo de tudo isto não ser aceite ou compreendido. Não obstante, é importante construir uma rede de apoio, conversar com pessoas de confiança e que a poderão ajudar, nomeadamente ao não se sentir tão sozinha.
A solução mais salutar passa por terminar ou sair do relacionamento abusivo. Permanecer numa relação abusiva, torna-se bastante destrutivo e demolidor da saúde mental e física.
Por outro lado, muitas vezes o abuso emocional tende a dar origem a outras formas de violência, nomeadamente da violência física, verificando-se a tendência das formas de abuso geralmente aumentarem e agravarem-se.
Por tudo isto, é fundamental cuidar de si e preservar-se, não se permitindo estar numa relação abusiva com contornos tão destrutivos, podendo ser vital a ajuda de um especialista.
Sílvia Coutinho é psicóloga e terapeuta familiar e de casal. Em terapia, procura promover relações com maior conexão emocional, com famílias, casais e a nível individual. Adora refletir sobre as emoções mais profundas que sentimos quando nos relacionamos e acredita ser através destas relações, vividas de forma saudável, que conseguimos também individualmente potenciar o nosso bem-estar, equilíbrio e felicidade. Siga-a no Instagram.