Outras tantas vezes, acabamos por acreditar que só seremos inteiros se formos autossuficientes e que, nesta viagem sobre a nossa inteireza pessoal, para realmente sermos e nos encontrarmos, teremos de deixar para trás o espaço da relação.
Tendemos a olhar para este processo como se existissem duas forças que são incompatíveis. Colocamo-nos diante destas necessidades que são aparentemente paradoxais. Ou somos inteiros e seres individuais, ou somos seres relacionais.
Na verdade, encontrar o equilíbrio na nossa relação entre o nosso espaço individual (Self; Eu) e o espaço da mutualidade (Nós; União) talvez seja das tarefas mais desafiantes e complexas de construir.
O espaço da individualidade impulsiona-nos a seguirmos as nossas próprias diretrizes, em sermos nós próprios e em criar uma identidade única. Por outro lado, o espaço da mutualidade/nós empurra-nos a seguir as diretrizes dos outros, a fazer parte do grupo ou do outro.
À medida que evoluímos enquanto ser humano, vamos diferenciando-nos, não só fisicamente, como também emocional e psicologicamente.
Um dos aspetos mais importantes para uma relação saudável passará muito provavelmente pela capacidade de diferenciação dos elementos do casal.
Falamos de um dos mais bonitos e poderosos conceitos teóricos no campo da terapia familiar e de casal sistémica, que consiste na capacidade de uma pessoa se tornar totalmente autónoma e separada (psicológica, emocional e espiritualmente) do outro (família ou no casal).
Um aparente paradoxo do amor
Em todas as relações encontramos uma polaridade:
• Vinculação/Conexão: a força para amar, ser amado e pertencente;
• Autonomia/Individualidade: a força para ser totalmente eu e livre.
As polaridades fazem parte da vida e não existem sempre de forma antagónica ou mesmo conflituante. Na verdade, é como se fosse uma dança. Uma dança que poderá ir alternando momento a momento, dia a dia, de acordo com aquilo que percebemos que vamos necessitando (é flexível e de acordo com o ciclo de vida).
Quando um elemento dança passos numa dança que reclama por mais vinculação, esse elemento poderá minimizar ou reduzir as suas preferências ou até esconder aspetos de si próprio, no sentido de obter conformidade, promover e manter a conexão e a inexistência de conflitos ou tensão, por acreditar que desta forma mais facilmente será amado pelo seu parceiro.
Se os passos da dança de um elemento vão no sentido de uma maior autonomia, poderá evitar a conexão, receá-la ou mesmo distanciar-se das experiências de mutualidade no casal (togetherness), no sentido de procurar manter-se inteiro, mais “si próprio”, autossuficiente ou enquanto ser individual.
Assim, quando um elemento se encontra muito pouco diferenciado, poderá confrontar-se com um grande dilema: ser ele próprio vs estar conectado (como se de um processo antagónico se tratasse; sim ou não; tudo ou nada).
A diferenciação consiste então em incorporar de forma equilibrada a vinculação e a autonomia. Quanto mais diferenciada se torna, melhor consegue dançar de forma saudável com as polaridades.
Torna-se mais conectada consigo mesma (com as suas necessidades, pensamentos, sentimentos, valores e experiência), enquanto consegue ser e estar conectada com alguém (nomeadamente, o(a) seu/sua parceiro(a), ao mesmo tempo que experiencia a sua diferença (a sua unicidade).
A diferenciação consiste, assim, num dos processos que permitem uma maior saúde dos relacionamentos, na medida em que, ao tornar-se autónoma, vai processando igualmente a sua capacidade de regular as emoções.
Quando abandonamos quem somos
Muitas vezes, confundimos amor com fusão emocional e muitas podem até mesmo sentir-se seguras em relações fusionadas. Contudo, a fusão emocional é quando abandonamos quem somos, quando procuramos caber no outro, criando uma relação onde apenas cabe a co-dependência emocional.
Nestas relações, o outro é visto e sentido como uma extensão de nós e nós dele, vivendo numa fusão emocional. Uma relação onde o “eu” e o “tu” vivem numa conexão emaranhada, em que não nos encontramos a nós mesmos. Neste sentido, a fusão emocional é o oposto da diferenciação, ou seja, consiste numa conexão sem espaço para a individualidade.
O ciúme é uma forma de fusão emocional, resultando da intolerância em aceitar os limites, as fronteiras, as bandeirolas vermelhas, a individualidade e o espaço separado do outro que amamos. Neste lugar, o desejo de posse torna-se frustrante pelo facto de verificarmos que o eu e o outro são dois seres fundamentalmente separados, embora interrelacionados.
Construímos relações fusionadas, devido à nossa incapacidade de estarmos e sermos separados do outro, da incapacidade nos sentirmos suficientemente bem sozinhos ou como seres individuais que se relacionam entre si.
A combinação de necessidades de diferenciação afeta a dinâmica de relacionamento, neste sentido:
• Dois parceiros que adotam a polaridade de vinculação como padrão constroem um relacionamento simbiótico/fusionado;
• Dois parceiros que adotam a polaridade de autonomia como padrão criarão um relacionamento volátil em que ambos os parceiros exercem a liderança;
• A dinâmica mais comum é onde um parceiro se inclina para a autonomia e o outro para a vinculação. Às vezes, essa dinâmica é rígida e fixa. Frequentemente, os parceiros trocam as polaridades e revezam-se na liderança.
Características de um relacionamento pouco diferenciado
Algumas características de relações pobremente diferenciadas passam por:
• Relações com uma dinâmica simbiótica ou fusional (um como extensão do outro; evitam constantemente o conflito);
• Relações com uma dinâmica simbiótica-hostil (estão constantemente em conflito; ambos os parceiros estão presos na polaridade de autonomia, sendo incapazes de ligar/respeitar as suas diferenças);
• Cuttoffs (cortes emocionais) ou evitamentos (quando os elementos evitam conversar durante meses, anos e às vezes até décadas);
• Alta reatividade (os casais pobremente diferenciados experienciam muitas vezes fusão emocional, sentindo-se responsáveis pelos sentimentos e emoções do parceiro, tornando a intimidade numa experiência bastante difícil. Como resultado, muitas vezes o casal começa a evitar partilhar as suas emoções, passando a crescer totalmente separados ou a discutir de forma constante).
Contudo, desistir da nossa individualidade para estarmos em união com o nosso parceiro acabará por ser um erro a longo curso, tal e qual como desistir da nossa relação de modo a manter a individualidade. De ambas as formas, acabamos por nos tornarmos menos pessoa com menos relação.
Como sermos pessoa individual e diferenciada mantendo uma relação ligada emocionalmente de forma saudável?
Uma relação é um lugar onde crescemos, falhamos, “morremos” e voltamos a renascer sucessivamente, de cada vez que nos propormos a reinventar. Para isso, poderão ser importantes dois processos:
• Sentido refletido de si mesmo: O sentido refletido de si mesmo é como todos nós começamos a nos conhecer, experimentar, e a “sermos”. O nosso “eu” pode ser visto como um “eu” relacional, no qual a perceção de nós mesmos depende do feedback que recebemos dos nossos pais, família de origem e sociedade.
Quando somos crianças, dependemos do feedback dos nossos cuidadores para nos conhecermos. O auge do nosso sentido de identidade acontece na adolescência, perante a pressão dos pares. Quando experienciamos a nossa vida e as nossas relações a partir de um sentido refletido de nós mesmos, encontramo-nos constantemente à procura de um feedback positivo, de validação, de aprovação e de pessoas que nos amem e aceitem.
Muitas vezes, podemos acabar por evitar pessoas que nos critiquem. Ao experienciarmos a partir de um sentido refletido de nós mesmos, tendemos a ter cuidado ao revelar muito de nós mesmos, porque tememos o feedback que poderemos obter a partir do outro, afetando profundamente a nossa confiança interna.
• Sentido sólido de si mesmo: Consiste num sentido de identidade mais desenvolvido, equivalendo na sensação de que nos conhecemos autenticamente, quem somos, o nosso valor, a nossa verdade, o nosso sentir, os nossos princípios, independentemente do feedback externo que possamos receber como resposta.
Este sentido de identidade requer o uso do córtex pré-frontal para nos lembrarmos de quem somos e no que acreditamos, apesar das críticas e dos conflitos, devendo ser uma missão da nossa vida desenvolver sentidos de identidade cada vez mais sólidos.
Desta forma, aquando numa relação, circulamos de uma intimidade validada pelos outros (sentido refletido de si mesmo) para uma intimidade autovalidada (sentido sólido de si mesmo).
O que experienciamos quando aumentamos a nossa diferenciação
• Uma maior liberdade e satisfação relacional: maior segurança, maior bem estar, maior sentimento de liberdade e autenticidade nos relacionamentos, que advém da autoavalidação. Através de um trabalho de maior diferenciação pessoal, cada indivíduo deixa de estar na dependência da validação externa. Também desenvolverá a capacidade de viver diferentes estados de si mesmo na sua vida;
• Promove a intimidade: Ao melhorar a capacidade de diferenciação, ganha uma maior consciência dos aspetos menos desenvolvidos, magoados ou vulneráveis do seu self. Através da aceitação destas partes de si, sentir-se-á concomitante mais segura para ser vulnerável, tornando-se muito mais capaz de experienciar uma relação em que surge tal como é, mesmo quando as suas feridas ou partes magoadas surgem. A relação tende a ser mais aberta e capaz de aceitar todos os diferentes estados pessoais, em que podemos ser tal como somos;
• Maior diferenciação familiar: Ao trabalhar a sua diferenciação, permite um ponto de partida para as relações da vida dos seus filhos muito mais desenvolvidas e saudáveis, assim como uma dinâmica familiar muito mais saudável;
• Na dinâmica de um casal diferenciado emocionalmente, a comunicação torna-se igualmente mais saudável: Por exemplo “Esta é a minha perspetiva. Estas são as minhas necessidades. Como é a tua perspetiva? Quais são as tuas necessidades? Vou-te dizer como tu me impactas nestas situações. Necessito que me digas como te impacto nessas situações”.
Como promover a nossa diferenciação emocional
Para compreendermos como promover a nossa diferenciação, poderá ser importante refletir que esta surge não na solidão ou na reflexão, mas sim nas relações íntimas. Para tal:
• Mantenha um sentido flexível e sólido de si mesmo, ou seja, conheça-se a si mesmo . Neste sentido, poderá ser importante estar conectado com quem é, conhecer os seus pontos fortes e fracos, isto é, assumir todas as partes de nós (as partes bonitas e a nossa feiura);
• Permaneça enraizada em si quando responde ao seu companheiro, mesmo quando ele está ativado emocionalmente ou desregulado. Este aspeto ajuda-la-á a permanecer no relacionamento sem explodir, bloquear ou entrar em defensividade ou evitamento. Ao aumentar a diferenciação, pode aprender a esperar que o outro se acalme, realmente ouvir e internalizar as críticas, frustrações, solidão, desespero sem se sentir inundado emocionalmente ou reativo. Com o tempo, isso permitirá que os dois sejam mais abertos na relação;
• Mantenha a mente tranquila e o coração calmo. A sua capacidade de se acalmar e se regular é importante. Poderá fazê-lo através da atenção plena (mindfulness), meditação ou psicoterapia. Verbalizar os nossos sentimentos por norma ajuda a regular as nossas emoções;
• Escolha entender que estar vivo e ser autêntico com outra pessoa é um percurso que poderá ser visceral, com ruturas, desconexões e sucessivas reparações. Os altos e baixos fazem parte da jornada rumo a uma maior diferenciação.
As relações consistem numa dança apaixonada, plena em conflitos, impasses, raiva, dor, amor, desejo, crescimento pessoal e crescimento feito a dois.
A única maneira de realmente crescermos emocionalmente consiste em mergulhar nos conflitos inevitáveis das relações que nos conduzem a novos e sucessivos equilíbrios (não rígidos e estanques, mas sim flexíveis e constantemente (re)negociados), mergulhando ao mesmo tempo dentro de nós mesmos, de modo a reganharmos a capacidade de nos vermos a florescer enquanto pessoa, enquanto indivíduo, assim como ao outro que amamos.
A diferenciação é a mais bonita linguagem de amor e de respeito por si e pelo outro. É permitir-se crescer a si e ao outro, e fazer as relações nutrir e fortalecer de uma forma profunda e sólida, equilibrada, mas não estática, livre, criativa, flexível e autónoma.