Crónica. Quanta solidão cabe no amor?
Um novo dia começa, corrido e igual a tantos outros. Qual é a primeira coisa que faz quando acorda? Qual é a última coisa que faz quando se deita? Como são as despedidas do casal? Como são os reencontros? Como são vividos os momentos desafiantes da relação? No final, quando está sozinha e reflete sobre a sua relação, quais são os sentimentos que imperam?
São inúmeros os casais que relatam o sentimento de desconexão e solidão na sua relação. O desamparo, o silêncio, o não sentir o outro ali para si, o não fazer com e pelo outro. As ausências emocionais no conforto desconfortável de quem vive e está ali lado a lado.
São cada vez mais os casais que trocam os gestos de carinho, os beijos, o toque afetuoso e a presença emocional tão essenciais para a sobrevivência de uma relação pela companhia e entretenimento de um scroll infinito no telemóvel que interrompe rituais, sincronias, momentos de ligação e encontros no seio do casal e da família.
O cansaço dos dias que nos suga por completo dá lugar à falta de energia, à inércia, à apatia, ao distanciamento, à quase dessensibilização e frieza para com a nossa pessoa parceira que temos ali imediatamente ao lado, e que também precisa de nós. O quase esquecimento de que uma relação, para continuar ligada emocionalmente, necessita de ser vivida e cuidada também por nós.
Olhamos em volta e percebemos rapidamente que vivemos cada vez mais sozinhos no meio de uma multidão e, na verdade, vivemos cada vez mais sozinhos dentro das nossas casas e das nossas relações.
A escravatura da felicidade VS O estigma da solidão
Numa sociedade cada vez mais individualista, focada no sucesso e na conquista, sermos felizes é-nos comunicado diariamente como sendo altamente imperativo, seja em que dimensão da nossa vida nos estejamos a referir: profissional, pessoal ou social.
Caso não nos encontremos num determinado momento da nossa vida nesse lugar de felicidade pura e genuína, acabamos por sentir que estamos a fazer com toda a certeza algo errado, ou acabamos mesmo por virar a lente da nossa narrativa interna para um Eu crítico e julgador que passa a identificar-se automaticamente com o sentimento de fracasso e incompetência pessoal.
Sentimo-nos estranhos no meio de uma multidão que grita a sua felicidade, que clama os seus ganhos, as suas conquistas a todo o instante. Sentimo-nos pressionados para sermos felizes, mas também indubitavelmente mais sozinhos no caminho que vamos trilhando.
Não obstante, talvez uma das maiores certezas da vida é que a dor e o sofrimento fazem parte, assim como todo um conjunto de emoções que muitos tendem a designar de negativas. A preocupação, o medo, a tristeza, a impotência, a deceção, o desalento, entre outras, fazem parte de todo um espectro de emoções que certamente todos nós seres humanos iremos experienciar nas nossas vidas em alguns momentos, mas que muitos tendem em, vergonhosamente, esconder e camuflar.
Também neste contexto, para um casal colocar o dedo na ferida ou ter conversas difíceis, talvez seja umas das tarefas mais árduas a ter na vivência diária de uma relação. É aparentemente mais confortável silenciar ou menos conflituoso calar as emoções desconfortáveis que os elementos vão sentindo na sua relação.
Numa relação é muitas vezes difícil a gestão e a construção de um equilíbrio dinâmico entre as duas partes, em aceitar e navegar as diferenças, colocarmo-nos no lugar do outro e desafiar colocar em perspetiva a nossa posição inicial diante do desafio ou obstáculo.
Neste sentido, os elementos do casal ao depararem-se com o sentimento avassalador da desconexão que esses momentos geram – assim como o não sentir o outro ali para ir ao seu encontro, à procura da compreensão e da escuta da sua lente, não envolvido ou mesmo até indisponível – poderão conduzir-se a um sentimento de paz podre (um lugar de aparente bem-estar e felicidade, mas que na sua raiz reside um tremendo mal-estar, insatisfação e infelicidade).
O gélido labirinto da solidão
Como afeta a nossa saúde
A ciência tem vindo cada vez mais a estudar as reações da mente humana quando esta se depara com a perceção de solidão e privação das experiências emocionais tão necessárias para o indivíduo. Os diferentes estudos vão dando indicações de que a ausência de estímulos emocionais positivos e o sentimento de desconexão e indisponibilidade emocional da nossa pessoa parceira tende a afetar o estado emocional imediato, assim como a saúde física e mental a médio e longo prazo.
Indicam ainda que a solidão acarreta inclusive um enormíssimo risco de mortalidade, mais ainda do que o consumo de álcool ou mesmo situações clínicas como a obesidade.
Uma das principais consequências do sentimento de solidão é o aumento do risco de desenvolvimento de perturbações mentais, como a depressão e a ansiedade. Sabemos que a ausência de interações afetivas positivas e a inexistência de suporte emocional (o não puder contar realmente com a pessoa parceira) poderão conduzir a sentimentos de desesperança, angústia, vazio emocional e intensa solidão, potenciando condições psicológicas adversas.
Diz a ciência que quando nos sentimos isolados e sozinhos, o nosso modo de sobrevivência fica ativado: sentimos tudo à nossa volta como sendo potencialmente perigoso, intensificando desta forma respostas de hipervigilância e alerta. Neste sentido, assiste-se a um aumento de produção da hormona do stress (cortisol) que influencia atempadamente a qualidade do sono, assim como a nossa defensividade e comportamentos mais impulsivos ou reativos.
Os estudos indicam-nos também que a solidão e o stress emocional que dela decorre poderá alterar inclusive a nossa expressão genética, como ao nível da nossa biologia, acentuando-se quadros inflamatórios e presumivelmente situações de doenças autoimunes, por exemplo.
Como afeta a relação
Por outro lado, a solidão nos nossos relacionamentos poderá dar origem a um ciclo vicioso do qual se torna tão difícil sair. O sentimento de solidão poderá intensificar a dificuldade de expressar e receber afeto na relação, potenciando por sua vez a dificuldade de construção de um vínculo saudável.
Neste sentido, a perceção de desconexão e o sentimento de solidão poderão resultar num isolamento progressivo, contribuindo consecutivamente para uma deterioração dos vínculos emocionais e do estado emocional daquela pessoa, conduzindo a um gélido labirinto de solidão do qual é tantas vezes difícil sair. Neste, os elementos sentem-se absolutamente desacompanhados, desprovidos de cuidados, afeto, suporte e compreensão por parte do outro.
É Gottman, terapeuta de casal e investigador reconhecido na área da conjugalidade, que nos indica os sete maus hábitos dos casamentos sem sucesso que predizem o divórcio e o mal-estar na relação:
• Mais negatividade do que positividade: pressupondo que o clima afetivo do casal seria essencial para compreender a sua dinâmica, verifica-se que nos casais estáveis e felizes predominam os afetos positivos na resolução de conflitos. A negatividade faz parte também de alguns momentos da vivência destes casais, sendo impossível construir uma relação duradoura sem a existência de emoções mais desafiantes;
• Os 4 cavaleiros do apocalipse: na comunicação destes casais é possível verificar com frequência a presença de criticismo, defensividade (posicionamento de proteção face a qualquer tipo de pressão), desprezo e evitamento (distanciamento e afastamento na interação do casal);
• Fracasso nas tentativas de reparação emocional: a intenção não passa pela cessação dos conflitos, mas a forma como o casal os procura resolver, como vão ao encontro ou não do outro;
• Persistência de percepção negativa na comunicação e narrativa do casal;
• Inundação: consiste em sentir-se submerso pelas queixas da pessoa parceira, conduzindo a distanciamento e isolamento pelo protesto em cascata de situações e acontecimentos negativos;
• Alerta fisiológico como respostas corporais intensas perante situações que desencadeiam stress;
• Ausência de resposta dos companheiros em aceitar a influência das suas companheiras, mediante a tendência de acção de:
a) afastamento emocional dos homens;
b) escalada por parte dos homens (agressividade, desprezo, sarcasmo, defensividade) como resposta às queixas e necessidades das suas companheiras.
São muitas vezes estes maus hábitos que conduzem ao labirinto da solidão dos seus elementos, profundamente distanciados entre si e desamparados na vivência dos desafios da vida de casal.
Cultivar o Jardim da Relação é diferente de apenas colher as flores
Todos os casais poderão atravessar conflitos, tempestades, autênticas travessias no deserto. O ciclo de conexão, desconexão e reconexão existe em todos eles. Contudo, muitos sentem-se perdidos ao depararem-se com a solidão e desamparo que isto promove.
A reparação e consequente reconexão exige consciência de si e do outro, intenção em ir ao encontro deste, falar das suas emoções e perguntar pelas emoções do outro, colocar em perspetiva aquela que é a posição e entendimento da nossa pessoa parceira. Escutar, realmente escutar. Trazer para a relação o que de mais precioso e desafiante existe: agarrar na nossa responsabilidade e olhar verdadeiramente o outro.
São inúmeros os casais que relatam não se olhar nos olhos, que se perderam do horizonte ocular no decurso dos dias. Era Coimbra de Matos que afirmava que na vida podemos nascer duas vezes: primeiro biologicamente, no útero da mãe, e, em segundo, na mente e no coração, no pensamento e no afeto. Nascemos e voltamos a nascer no útero psíquico do nosso amor.
Nascemos de novo cada vez que somos vistos, tocados e vividos com amor. Nascemos sempre de novo, com sentido e com propósito, cada vez que cuidamos e nutrimos a relação com intenção e consciência a dois. Deste modo, cultivar o jardim da relação exige uma atenção e um cuidado da relação consciente e intencional.
Responsividade emocional
É Sue Johnson, mentora do modelo da terapia de casal focada nas emoções, que nos indica que nestes momentos de profunda desconexão do casal é a responsividade emocional que permite transformar a dança de desconexão e solidão do casal através de:
• Disponibilidade (acessibility): este princípio pressupõe mantermo-nos abertos e disponíveis para o nosso parceiro, mesmo quando temos dúvidas ou nos sentimos inseguros. Fazer sentido das nossas emoções e das emoções do outro e sintonizarmo-nos neste sentido;
• Responsividade (responsiveness): implica sintonizar-se emocionalmente com o seu parceiro e demonstrar que as suas emoções (nomeadamente necessidades de vinculação e medos) têm um impacto em si. Significa aceitar e priorizar esses sinais emocionais que o seu parceiro lhe dá, respondendo com respostas claras de conforto, carinho e segurança quando a pessoa que ama mais necessita. Significa ser sensível e responsivo às necessidades do outro. Por norma, sempre que isso acontece o outro sente-se envolvido emocionalmente, tornando-se mais calmo e sereno;
• Compromisso (engagement): implica envolvimento emocional, o qual pressupõe atender mais ao outro, tocar mais, olhar mais, falar melhor e mais profundamente, respondendo às necessidades que sentimos no nosso parceiro. Significa, na verdade, conseguir estar presente emocionalmente para o outro.
A conexão emocional profunda, a reparação da relação, nutri-la e ir ao encontro do outro, poderá ser um profundo gesto de generosidade e amor, assim como um tremendo ato de confiança, absolutamente protetor da saúde da relação e da saúde dos seus elementos.
Para amarmos bem e de forma saudável, não dando lugar ao sentimento de solidão e desamparo dos seus parceiros, mas havendo espaço para a vivência da solitude (o sentimento de bem-estar que também podemos retirar ao entrarmos em contacto/relação connosco mesmos), a relação envolverá trabalho, compromisso diário, empenho e dedicação.
Para colmatar a solidão, não dar espaço para que esta viva e habite a relação e construa nesta a sua morada, a intimidade emocional, a partilha, a responsividade e presença deverão ser uma constante diária. Intimidade emocional não é algo que se tem com outra pessoa, é algo que se constrói, nos estrutura e organiza emocionalmente. Como dizia Honoré Balzac: A solidão é boa, mas precisamos de alguém que nos diga que a solidão é boa.