Crónica. Somos pais, e agora? Saiba como equilibrar o tempo do casal e o tempo de família

Se por uma lado o nascimento de um filho é um momento único e especial para o casal, por outro pode levar a uma crise na relação amorosa. O segredo está em saber gerir o tempo passado em família e a dois.

Por Dez. 27. 2021

O momento do nascimento de um primeiro filho é um momento lindíssimo na história de vida de qualquer casal. Contudo, é igualmente um momento extremamente desafiante e que pode conduzir inúmeros casais a uma crise intensa, sem saber como reequilibrar o tempo dedicado à relação e o tempo em família, acabando por distanciar-se.

Tornar-se família é um dos processos de mudança mais significativos da vida humana e, por isso, com a chegada do primeiro filho a família transforma-se.

O conceito familiar, anteriormente assente em dois elementos que viviam concentrados na sua vida conjugal, na sua individualidade e na sua vida profissional, assume agora uma nova configuração e uma nova dinâmica à qual o casal terá de se reajustar. Duas pessoas que querem continuar a viver a sua vida conjugal mas que assumem agora mais do que um novo papel, uma nova relação, a parentalidade enquanto pai e mãe.

Nesta fase da vida familiar, assiste-se (de forma expectável e normativa) a uma crise familiar, implicando uma reorganização tanto individual como conjugal dos diversos papéis que cada elemento vivencia mas, acima de tudo, a uma redefinição da identidade: a pessoa que agora sou enquanto mulher/homem, e também na identidade conjugal de marido/mulher, companheiro/companheira.

Por um lado, encontramos uma mulher ligada ao bebé, procurando garantir a sua sobrevivência, assim como a construção de um laço de forma segura, cuidada, responsável e atenta. Um mulher que vivencia um momento em que se encontra mais vulnerável do que nunca, em que o seu corpo foi casa e passou por inúmeras transformações, encontrando-se muitas vezes hipervigilante aos sinais de desconexão emocional que possam surgir na relação com o seu parceiro.

Por outro lado, temos o homem que acaba de se tornar pai e que procura responder a este seu novo papel de forma séria, assumindo a responsabilidade, garantindo a segurança, a subsistência, proteção e equilíbrio da sua família.

Este aspeto, em paralelo com a ansiedade vivida neste momento da vida, mais a incerteza quanto ao desempenho deste novo papel de pai e mãe, o enorme cansaço e esgotamento, a privação de sono, conduzem tantas vezes a uma diminuição da vida sexual e a não estarem mais um para o outro enquanto homem e mulher que são e como anteriormente se reconheciam.

O casal confronta-se agora com menos tempo, menos comunicação, menos horas de sono dormidas, menos dinheiro, menos contacto físico, menos intimidade e menos sexualidade, menos privacidade e menos liberdade.

Pelo contrário, surge a necessidade de maior rotina, de maior previsibilidade, estrutura, controlo, estabilidade e responsabilidade, tantas vezes considerados inimigos do erotismo, mas tão necessários para um bom desenvolvimento de um bebé.

Torna-se tão fácil esquecer que antes de sermos pais fomos amantes, companheiros íntimos de vida
Sílvia Coutinho, psicóloga

O casal assiste a uma parentalidade que parece agora ameaçar o romance e a vivência da conjugalidade e onde o nível de stresse e desafios vividos acabam por revelar e expor as feridas da relação, que podem sempre ter existido, mas de uma forma menos presente ou visível. “Estarás realmente lá para mim agora que eu preciso tanto de ti?”.

O casal confronta-se agora com um sentimento de distanciamento e estranheza que tem um importante impacto na relação conjugal: “Quem éramos e não somos mais. E agora, quem somos nós?”. Torna-se tão fácil esquecer que antes de sermos pais fomos amantes, companheiros íntimos de vida.

Muitos casais que se tornam pais sentem-se absolutamente esmagados por este peso e nem sempre sabem como reparar ou reinventar a relação nestes momentos de maior stresse e ansiedade. Não sabem como podem ligar-se novamente, reconectar-se de forma segura e apoiando-se mutuamente.

A conjugalidade entra em crise. Desaparece o ‘ser-se casal’ e apenas se vive o ‘ser-se família’. O ‘nós’ perde-se entre os beijos apressados, nos abraços que deixam de ser sentidos, no toque que se desvanece, nas palavras que deixam de ser ditas, vencidas pelo cansaço.

A culpa não se deve à vivência da parentalidade, mas na forma como o casal deixa de viver a conjugalidade. De como se vai permitindo deixar de ouvir, deixar de se notar, de reconhecer, de se admirar e de realmente se ver. Como o par deixa de se tornar flexível e cúmplice diante dos mais diversos malabarismos que a vida agora convida ainda mais a fazer.

Como equilibrar o tempo do casal e o tempo de família

Portanto, como pode o casal reequilibrar o tempo para a sua relação, de modo a promover novamente a sua intimidade, com o tempo que necessita agora de dedicar à família? Seguem algumas sugestões.

Abrir agendas

Temos tantas prioridades escritas para não serem esquecidas nas nossas agendas, mas não marcamos a nossa relação ou a nossa pessoa mais importante.

Quando o casal abre as suas agendas e marca um tempo para o ‘nós’, verifica-se que desta atitude advém um gesto que pressupõe a intenção de cuidar da relação, para que ela continue a ter lugar nas vidas de ambos de forma saudável, com tempo, com olhos que realmente observam e com ouvidos que realmente escutam.

Com empenho e dedicação a um ‘nós’ que necessita de ser nutrido para sobreviver.

Desligar aparelhos eletrónicos

No final do dia, ambos os elementos sentem que toda a sua energia desapareceu e tudo o que mais desejam naquele momento é uma pausa do mundo e das exigências. Ficar no vazio.

Contudo, sempre que se ergue um aparelho eletrónico, ergue-se um muro que distancia os dois elementos e que tanto necessitam de proximidade.

Sincronia

Casais felizes são mais síncronos. O tempo dedicado à família, ao bebé, poderá ser realmente exigente, mas poderá ser importante manter uma rotina de sincronicidade entre o casal.

Fazer as refeições juntos (pequeno-almoço, almoço e jantar) e ir dormir ao mesmo tempo, de modo a promover o contacto do casal. Continuarem a ser um para o outro e um com o outro.

Comunicação

Comunicação pressupõe a capacidade de partilhar, tornar comum. É através da comunicação que partilhamos com o outro a nossa vivência emocional, que damos significado e sentido às nossas emoções e como as perceções erróneas e tantas vezes bloqueadoras podem ser desfeitas.

Comunicar pressupõe partilhar as necessidades, para que o companheiro as consiga perceber de forma clara e assim responder. Tudo isto sem esquecer no tanto que também se partilha e comunica no poderoso silêncio de um abraço, na troca de um olhar ou simplesmente quando se escuta o outro, sendo que tudo isto é comunicação.

Intimidade

Desejamos tanto alcançar de novo a conexão emocional e cumplicidade com o nosso companheiro, mas como a poderemos alcançar ou voltar a sentir se não nos autoresponsabilizarmos pela relação que desejamos viver ou construir?

Um vínculo seguro, prazeroso, íntimo e cúmplice não acontece só porque sim ou por magia. Necessita de compromisso emocional e disponibilidade para nos entregarmos, para trabalharmos a nossa relação e para que esta se torne mais coesa e ao mesmo tempo mais livre e fluida.

O amor é como uma dança. Necessitará sempre de dois bailarinos disponíveis para dançar. Se um não cuida, dois não dançam! A intimidade necessita de duas pessoas concentradas uma na outra.

A intimidade também acontece no silêncio que tudo comunica, aprofunda e (por vezes) fortalece
Sílvia Coutinho, psicóloga

Nem sempre o casal utiliza o ‘nós’ (a sua conjugalidade) como um espaço privilegiado para uma aprendizagem evolutiva crescente de um viver em relação. Tantas vezes se desencontram na partilha, nos dias, na comunicação, no romance e na sedução. Na construção de uma verdadeira intimidade, assistindo-se a uma desvalorização total da comunicação não-verbal das pequenas coisas que se fazem com e pelo outro.

Os gestos atenciosos, os carinhos, os sorrisos, os projetos partilhados em espírito de colaboração, o sentido de luta a dois, embora que, por vezes, em frentes diferentes e desencontradas. Ações que transparecem e fortalecem  a cumplicidade e sintonia do casal.

Claro que a comunicação é vital para a saúde do ‘nós’. Os corpos também se tocam com as palavras, mas nem sempre só de palavras se faz a comunicação e se reescreve a intimidade. A intimidade também acontece no silêncio que tudo comunica, aprofunda e (por vezes) fortalece.

Não é só a falta de tempo para se escutar e debater a relação que destrói o casal. É a diminuição dos afetos e da resposta emocional. Também a falta de capacidade de se acolher o gesto carinhoso, para se contemplar a beleza que é fazer esta viagem acompanhado(a) exatamente do jeito imperfeito que é, ou para olharmos e (re)conhecermo-nos melhor.

Existem tantas razões que fragilizam a relação de casal nesta fase da vida em que o ‘nós’ se torna pai e mãe, para além de companheiros e amantes, e que leva o casal a distanciar-se ou a desistir da sua intimidade.

Os casais corajosos são mais zelosos quando percebem que a sua relação se distanciou e a chama da intimidade emocional e do desejo diminuíram, sendo bastante empenhados no sentido de a reacender.

Não nos esqueçamos que o amor não vive só do intelecto ou do pensamento. O amor tem de ser feito como se fosse pão, e refeito o tempo todo e feito novamente todos os dias. O amor tem de ser feito nas palavras, mas também nos gestos. Uma e outra vez, todos os dias da vida do casal.

Não são os filhos que distanciam o casal, são os adultos que deixam de cuidar e de saber como manter viva a chama da paixão, do desejo e da intimidade emocional.

Sílvia Coutinho é psicóloga e terapeuta familiar e de casal. Em terapia, procura promover relações com maior conexão emocional, com famílias, casais e a nível individual. Adora refletir sobre as emoções mais profundas que sentimos quando nos relacionamos e acredita ser através destas relações, vividas de forma saudável, que conseguimos também individualmente potenciar o nosso bem-estar, equilíbrio e felicidade. Siga-a no Instagram.

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