Crónica. Como o trauma pode afetar as suas relações
São inúmeras as situações traumáticas que podemos experienciar e que permanecem marcadas em nós num corpo que não esquece, impactando duramente as relações mais importantes da nossa vida.
Para ser confrontadas com o trauma, não necessitamos de estar numa zona de guerra, nem experienciar uma catástrofe natural, um desastre, um abuso sexual ou um acidente violento. Inúmeras vezes o trauma poderá igualmente residir no seio dos nossos vínculos mais íntimos, diante das pessoas que um dia mais confiamos.
A violência, os maus tratos (físicos ou emocionais), a traição, o desamparo e o abandono de quem amamos é igualmente traumático, nomeadamente durante o período da nossa infância e adolescência, que corresponde na verdade à altura da nossa vida em que somos mais vulneráveis.
Na verdade, o trauma não é o que acontece connosco (não é a guerra, o sismo, o acidente, o abuso, a violência), é o que acontece dentro de nós (o desamparo, a dor, a solidão, o terror, o choque, o sofrimento profundo) como resultado do que aconteceu.
O trauma é a cicatriz que fica, que permanece e que entorpece, que nos abandona de nós e que nos retira do sentimento de nós mesmos.
Quando o trauma é desencadeado, os nossos sinais automáticos de perigo são ativados e podemo-nos tornar hiper ou hipoativos, ou seja, reativos ou anestesiados. O trauma instala-se a partir daí na nossa mente e corpo, podendo desenvolver Perturbação de Stress Pós-Traumático.
O terror face aquilo que foi tão perturbador e traumático é insuportável, e a pessoa que o experienciou procura a partir daí afastar-se desesperadamente de si, de modo a seguir em frente. Tudo se torna difícil e pesado.
É necessário mais energia para conseguir funcionar de forma adaptada, sem nunca conseguir apagar da memória o peso, a ameaça, a vergonha, a imensa fraqueza e vulnerabilidade face a tudo o que experienciou. A dor emocional é imensa.
As reações pós-traumáticas surgem de forma incompreensível, conduzindo a que a pessoa se possa sentir descontrolada, despida de si mesmo, perdida e desorientada, sem compreender como poderá libertar-se da profunda dor.
São inúmeros os sintomas que podemos englobar nestas reações pós-traumáticas:
• Aumento do ritmo cardíaco, raiva, vergonha, pesadelos noturnos, flashbacks, baixa autoestima, suores frios, sentimentos de impotência;
• Evitamento de lugares, atividades e pessoas, dificuldade em dormir, hipervigilância crónica em relação a ameaças/perigo, dependência (comida, álcool, drogas, etc.);
• Atração por situações perigosas, incapacidade de lidar com o stress, incapacidade de amar, nutrir ou relacionar-se com outras pessoas;
• Medo de morrer, automutilação, incapacidade de assumir compromissos, doenças psicossomáticas (dores de cabeça, enxaquecas, problemas no pescoço e nas costas, dor crónica, asma, problemas digestivos e na pele);
• Depressão e sentimentos de desesperança e catastrofização.
O mundo, a vida, a intimidade torna-se em si uma ameaça. Implicam entrega, estar e viver novamente em vulnerabilidade, no maior ato de confiança e de fé, numa vulnerabilidade que anteriormente foi profundamente marcada.
Como voltar a confiar no mundo quando este se tornou tão feio, agressivo ou assustador? Como voltar a confiar em alguém, quando tantas vezes, é no seio de uma relação de confiança que nos magoamos tanto?
É muito comum as pessoas que experienciaram uma situação traumática, enunciarem sentir as suas relações afetadas (as relações com a família e amigos, no trabalho e nas relações amorosas).
Os acontecimentos traumáticos alteram profundamente o sentido de si e de segurança diante do mundo que o envolve.
Viver após uma situação traumática significa viver com a lente do perigo, da traição e de tudo o que é potencialmente danoso aumentado. A confiança no futuro torna-se mais escura, o sentido e significado da vida alteram-se, a forma como a pessoa pensa e sente-se acerca de si mesma fica negativa e profundamente afetada.
Por isso mesmo, as relações podem espelhar todo este choque de variadíssimas formas, porque estas necessitam que pelo menos duas pessoas se conectem.
E conectar requer entrega, confiança, vulnerabilidade, sentir….tudo o que se torna tão difícil e arriscado para alguém que passa por uma dor tão insuportável (e à qual foi exposta de forma chocante uma vez ou de forma continuada).
A conexão, a intimidade e a proximidade podem ser um lugar tremendamente assustador para alguém que sente tanto medo de ser novamente magoado num mundo tão inseguro.
A vítima de trauma sente-se muitas vezes incompreendida e sozinha, conduzindo progressivamente ao seu isolamento, evitamento, ou desligar emocional face aos outros, sejam amigos, família ou mesmo na relações amorosas.
Vão-se construindo crenças que ficam enraizadas no próprio, crenças de medo de rejeição (diante de tudo o que insuportavelmente sente e é), de estar ou ficar sozinho.
Desenvolve relações de grande evitamento emocional (por se sentir tão dormente emocionalmente – o torpor emocional), sem se sentir na posse do sentido de Si mesmo (sentir é absolutamente esmagador) ou pelo contrário de superproteção ou dependência emocional (o pânico diante da solidão ou abandono).
O vício do trauma
A situação traumática que foi experienciada (seja uma guerra, uma catástrofe, um abuso sexual único ou repetido, a violência física ou emocional no seio de uma relação disfuncional – familiar ou outrem), obriga a ativar o modo alerta/hipervigilância, de modo a encontrar alguma proteção ou defesa diante dos perigos.
Perante novas situações perigosas que despoletam respostas traumáticas, são ativados constante e repetidamente altos níveis de cortisol (stress).
Neste sentido, a pessoa aparenta sentir-se bem ou calma quando está diante de um elevado stress ou mesmo diante de situações ameaçadoras ou perigosas.
Pelo contrário, a pessoa sente-se com medo, irritável, vazia e aborrecida quando o nível de stress diminui, ou seja, quando não está pressionada, reativa ou numa situação perigosa. Este processo foi descrito como o vício do trauma.
Com esta lente, consegue-se facilmente compreender o que nos poderá influenciar na perceção de aborrecimento e desinteresse, quando as pessoas que de certa forma experienciaram trauma, se encontram diante de uma relação segura, saudável, funcional e respeitadora, por exemplo. Simplesmente, o cortisol não é disparado.
Não existe stress e portanto é como se, aos nossos olhos, faltasse “emoção” nessa relação, o que provavelmente nos conduz a escolher ou estar num relacionamento com um parceiro indisponível ou menos seguro.
Contudo, com o evoluir da ciência, temos vindo a compreender que, na verdade, as emoções fortes parecem potenciar o bloquear da dor.
Neste sentido, a reexposição ao stress, a uma ameaça ou a um perigo (seja situacional ou relacional), permitiriam de certa forma um alívio temporário e aparente da angústia, do vazio e da dormência emocional que advém do trauma.
A mudança: regulação emocional
Para que aconteça uma mudança, não implica apenas a mente compreender o que se passou. Na verdade, o corpo necessita de aprender e de sentir que o perigo passou, de modo a conseguir voltar a viver na realidade do presente.
Deste modo, a regulação emocional é crucial para gerir o efeito do trauma na mente, no corpo e na vida. Esta é fundamental para lidar com efeitos como o medo do abandono, da solidão, da incompreensão, da rejeição, da vulnerabilidade e da intimidade, porque é simplesmente desta forma que a pessoa que experienciou o trauma poderá novamente reganhar a consciência de si mesmo.
Para isso, a pessoa que experienciou o trauma deverá de ser convidada a aprender a sentir com atenção plena (mindfulness) o que se passa no seu interior. Aprender a escutar o corpo e escutar a mente, reconhecendo as flutuações do que sente momento a momento, para que (e só desta forma) consiga estar e gerir melhor tudo o que se passa dentro de si.
É através da compreensão do que aconteceu, em conjunto com a consciência do corpo, que será possível organizar as emoções, as memórias, os significados atribuídos, os padrões e as crenças interiorizadas, integrando e recuperando desta forma o controlo e o sentimento de si mesmo.
O poder da conexão
Não existe nenhuma outra forma de recuperar de um trauma do que estar em verdadeira ligação emocional com outros seres humanos.
Neste sentido, é possível compreender como os outros são na verdade a melhor proteção e a melhor ferramenta para lidar com o mesmo. Ferimo-nos nas relações, mas é também no seio destas que reside o potencial de cura.
A segurança e o terror são incompatíveis, assim como a conexão e a dormência também são incompatíveis. Deste modo, sabemos que para que a pessoa consiga recuperar do trauma, deverá conseguir baixar as suas defesas, o que é efetivamente arriscado.
Mas não existe nenhuma outra forma de chegar ao outro lado do medo, do terror, do vazio, da angústia e da escuridão. A vulnerabilidade diante da conexão com o outro consiste na única forma de lidarmos e curarmos as nossas feridas mais profundas. A vulnerabilidade é absolutamente essencial para o nosso crescimento.
Quando nos entregamos, quando nos revelamos e mostramos com autenticidade (mesmo na dor), quando permitimos que nos vejam, nos toquem com respeito e segurança, que nos abracem e nos dêem colo, abrigo, chão e céu, acalma a hiperexcitação em que o nosso cérebro se encontra devido ao trauma, e reganhamos a sensação de estarmos de novo intactos, protegidos, inteiros, seguros e com nova e total capacidade para lidar e controlar as diversas situações da nossa vida.
Precisamos de conseguir fechar os olhos e confiar. Deixarmo-nos ir, com confiança, numa nova experiência corretiva de segurança e conexão.
Precisamos de conexão e relações seguras à nossa volta. Um amigo de confiança, um(a) companheiro(a) seguro, um familiar ou mesmo um terapeuta.
Alguém que nos segure e ajude, acompanhe e escute seguramente o nosso maior terror, devolvendo-nos o que de mais precioso temos em nós, a nossa integridade física e emocional e o sentimento único de nós próprios.