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Crónica. Como o trauma pode afetar as suas relações

Crónica. Como o trauma pode afetar as suas relações

São inúmeras as situações traumáticas que podemos experienciar e que permanecem marcadas em nós num corpo que não esquece, impactando duramente as relações mais importantes da nossa vida.

Por Mar. 22. 2023

Para ser confrontadas com o trauma, não necessitamos de estar numa zona de guerra, nem experienciar uma catástrofe natural, um desastre, um abuso sexual ou um acidente violento. Inúmeras vezes o trauma poderá igualmente residir no seio dos nossos vínculos mais íntimos, diante das pessoas que um dia mais confiamos.

A violência, os maus tratos (físicos ou emocionais), a traição, o desamparo e o abandono de quem amamos é igualmente traumático, nomeadamente durante o período da nossa infância e adolescência, que corresponde na verdade à altura da nossa vida em que somos mais vulneráveis.

Na verdade, o trauma não é o que acontece connosco (não é a guerra, o sismo, o acidente, o abuso, a violência), é o que acontece dentro de nós (o desamparo, a dor, a solidão, o terror, o choque, o sofrimento profundo) como resultado do que aconteceu.

O trauma é a cicatriz que fica, que permanece e que entorpece, que nos abandona de nós e que nos retira do sentimento de nós mesmos.

A conexão, a intimidade e a proximidade podem ser um lugar tremendamente assustador para alguém que sente tanto medo de ser novamente magoado num mundo tão inseguro
Sílvia Coutinho, psicóloga

Quando o trauma é desencadeado, os nossos sinais automáticos de perigo são ativados e podemo-nos tornar hiper ou hipoativos, ou seja, reativos ou anestesiados. O trauma instala-se a partir daí na nossa mente e corpo, podendo desenvolver Perturbação de Stress Pós-Traumático.

O terror face aquilo que foi tão perturbador e traumático é insuportável, e a pessoa que o experienciou procura a partir daí afastar-se desesperadamente de si, de modo a seguir em frente. Tudo se torna difícil e pesado.

É necessário mais energia para conseguir funcionar de forma adaptada, sem nunca conseguir apagar da memória o peso, a ameaça, a vergonha, a imensa fraqueza e vulnerabilidade face a tudo o que experienciou. A dor emocional é imensa.

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As reações pós-traumáticas surgem de forma incompreensível, conduzindo a que a pessoa se possa sentir descontrolada, despida de si mesmo, perdida e desorientada, sem compreender como poderá libertar-se da profunda dor.

São inúmeros os sintomas que podemos englobar nestas reações pós-traumáticas:

Aumento do ritmo cardíaco, raiva, vergonha, pesadelos noturnos, flashbacks, baixa autoestima, suores frios, sentimentos de impotência;

Evitamento de lugares, atividades e pessoas, dificuldade em dormir, hipervigilância crónica em relação a ameaças/perigo, dependência (comida, álcool, drogas, etc.);

Atração por situações perigosas, incapacidade de lidar com o stress, incapacidade de amar, nutrir ou relacionar-se com outras pessoas;

Medo de morrer, automutilação, incapacidade de assumir compromissos, doenças psicossomáticas (dores de cabeça, enxaquecas, problemas no pescoço e nas costas, dor crónica, asma, problemas digestivos e na pele);

Depressão e sentimentos de desesperança e catastrofização.

O mundo, a vida, a intimidade torna-se em si uma ameaça. Implicam entrega, estar e viver novamente em vulnerabilidade, no maior ato de confiança e de fé, numa vulnerabilidade que anteriormente foi profundamente marcada.

Como voltar a confiar no mundo quando este se tornou tão feio, agressivo ou assustador? Como voltar a confiar em alguém, quando tantas vezes, é no seio de uma relação de confiança que nos magoamos tanto?

É muito comum as pessoas que experienciaram uma situação traumática, enunciarem sentir as suas relações afetadas (as relações com a família e amigos, no trabalho e nas relações amorosas).

Os acontecimentos traumáticos alteram profundamente o sentido de si e de segurança diante do mundo que o envolve.

Viver após uma situação traumática significa viver com a lente do perigo, da traição e de tudo o que é potencialmente danoso aumentado. A confiança no futuro torna-se mais escura, o sentido e significado da vida alteram-se, a forma como a pessoa pensa e sente-se acerca de si mesma fica negativa e profundamente afetada.

Não existe nenhuma outra forma de recuperar de um trauma do que estar em verdadeira ligação emocional com outros seres humanos
Sílvia Coutinho, psicóloga

Por isso mesmo, as relações podem espelhar todo este choque de variadíssimas formas, porque estas necessitam que pelo menos duas pessoas se conectem.

E conectar requer entrega, confiança, vulnerabilidade, sentir….tudo o que se torna tão difícil e arriscado para alguém que passa por uma dor tão insuportável (e à qual foi exposta de forma chocante uma vez ou de forma continuada).

A conexão, a intimidade e a proximidade podem ser um lugar tremendamente assustador para alguém que sente tanto medo de ser novamente magoado num mundo tão inseguro.

A vítima de trauma sente-se muitas vezes incompreendida e sozinha, conduzindo progressivamente ao seu isolamento, evitamento, ou desligar emocional face aos outros, sejam amigos, família ou mesmo na relações amorosas.

Vão-se construindo crenças que ficam enraizadas no próprio, crenças de medo de rejeição (diante de tudo o que insuportavelmente sente e é), de estar ou ficar sozinho.

Desenvolve relações de grande evitamento emocional (por se sentir tão dormente emocionalmente – o torpor emocional), sem se sentir na posse do sentido de Si mesmo (sentir é absolutamente esmagador) ou pelo contrário de superproteção ou dependência emocional (o pânico diante da solidão ou abandono).

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O vício do trauma

A situação traumática que foi experienciada (seja uma guerra, uma catástrofe, um abuso sexual único ou repetido, a violência física ou emocional no seio de uma relação disfuncional – familiar ou outrem), obriga a ativar o modo alerta/hipervigilância, de modo a encontrar alguma proteção ou defesa diante dos perigos.

Perante novas situações perigosas que despoletam respostas traumáticas, são ativados constante e repetidamente altos níveis de cortisol (stress).

Neste sentido, a pessoa aparenta sentir-se bem ou calma quando está diante de um elevado stress ou mesmo diante de situações ameaçadoras ou perigosas.

Pelo contrário, a pessoa sente-se com medo, irritável, vazia e aborrecida quando o nível de stress diminui, ou seja, quando não está pressionada, reativa ou numa situação perigosa. Este processo foi descrito como o vício do trauma.

Com esta lente, consegue-se facilmente compreender o que nos poderá influenciar na perceção de aborrecimento e desinteresse, quando as pessoas que de certa forma experienciaram trauma, se encontram diante de uma relação segura, saudável, funcional e respeitadora, por exemplo. Simplesmente, o cortisol não é disparado.

Não existe stress e portanto é como se, aos nossos olhos, faltasse “emoção” nessa relação, o que provavelmente nos conduz a escolher ou estar num relacionamento com um parceiro indisponível ou menos seguro.

Contudo, com o evoluir da ciência, temos vindo a compreender que, na verdade, as emoções fortes parecem potenciar o bloquear da dor.

Neste sentido, a reexposição ao stress, a uma ameaça ou a um perigo (seja situacional ou relacional), permitiriam de certa forma um alívio temporário e aparente da angústia, do vazio e da dormência emocional que advém do trauma.

Ferimo-nos nas relações, mas é também no seio destas que reside o potencial de cura
Sílvia Coutinho, psicóloga

A mudança: regulação emocional

Para que aconteça uma mudança, não implica apenas a mente compreender o que se passou. Na verdade, o corpo necessita de aprender e de sentir que o perigo passou, de modo a conseguir voltar a viver na realidade do presente.

Deste modo, a regulação emocional é crucial para gerir o efeito do trauma na mente, no corpo e na vida. Esta é fundamental para lidar com efeitos como o medo do abandono, da solidão, da incompreensão, da rejeição, da vulnerabilidade e da intimidade, porque é simplesmente desta forma que a pessoa que experienciou o trauma poderá novamente reganhar a consciência de si mesmo.

Para isso, a pessoa que experienciou o trauma deverá de ser convidada a aprender a sentir com atenção plena (mindfulness) o que se passa no seu interior. Aprender a escutar o corpo e escutar a mente, reconhecendo as flutuações do que sente momento a momento, para que (e só desta forma) consiga estar e gerir melhor tudo o que se passa dentro de si.

É através da compreensão do que aconteceu, em conjunto com a consciência do corpo, que será possível organizar as emoções, as memórias, os significados atribuídos, os padrões e as crenças interiorizadas, integrando e recuperando desta forma o controlo e o sentimento de si mesmo.

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O poder da conexão

Não existe nenhuma outra forma de recuperar de um trauma do que estar em verdadeira ligação emocional com outros seres humanos.

Neste sentido, é possível compreender como os outros são na verdade a melhor proteção e a melhor ferramenta para lidar com o mesmo. Ferimo-nos nas relações, mas é também no seio destas que reside o potencial de cura.

A segurança e o terror são incompatíveis, assim como a conexão e a dormência também são incompatíveis. Deste modo, sabemos que para que a pessoa consiga recuperar do trauma, deverá conseguir baixar as suas defesas, o que é efetivamente arriscado.

Mas não existe nenhuma outra forma de chegar ao outro lado do medo, do terror, do vazio, da angústia e da escuridão. A vulnerabilidade diante da conexão com o outro consiste na única forma de lidarmos e curarmos as nossas feridas mais profundas. A vulnerabilidade é absolutamente essencial para o nosso crescimento.

Quando nos entregamos, quando nos revelamos e mostramos com autenticidade (mesmo na dor), quando permitimos que nos vejam, nos toquem com respeito e segurança, que nos abracem e nos dêem colo, abrigo, chão e céu, acalma a hiperexcitação em que o nosso cérebro se encontra devido ao trauma, e reganhamos a sensação de estarmos de novo intactos, protegidos, inteiros, seguros e com nova e total capacidade para lidar e controlar as diversas situações da nossa vida.

Precisamos de conseguir fechar os olhos e confiar. Deixarmo-nos ir, com confiança, numa nova experiência corretiva de segurança e conexão.

Precisamos de conexão e relações seguras à nossa volta. Um amigo de confiança, um(a) companheiro(a) seguro, um familiar ou mesmo um terapeuta.

Alguém que nos segure e ajude, acompanhe e escute seguramente o nosso maior terror, devolvendo-nos o que de mais precioso temos em nós, a nossa integridade física e emocional e o sentimento único de nós próprios.

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