‘Dating burnout’, uma das consequências que o digital trouxe ao amor
Chatbots de companhia, dating burnout, menos desejo sexual e receio de encontros fora dos ecrãs. São estes alguns dos desafios que a era digital trouxe para o amor.
O mundo digital mudou as nossas vidas e os relacionamentos amorosos não são exceção.
A Internet trouxe consigo as aplicações de encontros, encurtou relacionamentos vividos à distância, aumentou a probabilidade de conhecer possíveis parceiros, facilitou o início, mas também o fim de relações…
Está também associada ao facto de os jovens de hoje terem menos sexo e a uma maior ansiedade com os encontros ao vivo. Deu ainda origem ao dating burnout e a inteligência artificial está a criar os chatbots de companhia.
Estarão os relacionamentos, como os conhecíamos até aqui, em perigo? Ninguém sabe dizer, mas que estão diferentes, disso ninguém duvida.
O bom, o mau e o vilão
“A era digital mudou os relacionamentos em vários aspetos. Os mais jovens já cresceram com a Internet e têm mais facilidade em comunicar online do que presencialmente; surgiram as aplicações de encontros, que são usadas, quer pelos mais novos, quer pelos mais velhos.
Como tenho tendência para olhar para o lado positivo disto, acho que é ótimo termos no nosso telemóvel a possibilidade de conhecermos alguém que poderá ser o(a) nosso(a) companheiro(a) durante algum tempo ou para o resto da vida.
Mas, se facilitou o início das relações, também simplificou o seu fim, tornando tudo mais descartável“, confirma Mafalda Cruz, médica especialista em Medicina Sexual e sexóloga.
Opinião semelhante tem María Esclapez, psicóloga, terapeuta de casal e autora do livro Gosto de Mim, Gosto de Ti (Arena).
“O mundo online trouxe coisas boas e más aos relacionamentos. Abriu-nos a porta para conhecermos pessoas e para contactarmos com quem queremos, mesmo que estejamos longe. Antes namorava-se por carta, depois por telefone, agora temos videochamadas, mensagens áudio e instantâneas.
Insegurança e infidelidade
Mas também é verdade que a tecnologia mal-usada pode piorar as relações; temos de saber geri-la”, diz a psicóloga, dando como exemplo usar a tecnologia para controlar o outro: “Estar sempre a ver se o outro está online ou se está e não responde, acharmos que é sinal de que está a falar com outras pessoas…”.
Na opinião de Mafalda Cruz, “algumas pessoas com um traço de personalidade insegura podem tentar estar sempre a descobrir uma possível infidelidade“.
Declínio do desejo
São vários os estudos que indicam que a população mais jovem tem relações sexuais com menos frequência e começa a vida sexual mais tarde do que a geração anterior, apesar de esta ser a geração mais fluida sexualmente falando.
Se, há 20 anos, a sexualidade era o centro de conversas entre os jovens, hoje, deixou de ser um tema tão premente.
As razões para que isto aconteça são variadas. Uma delas é o acesso fácil à pornografia, que, como nos diz Mafalda Cruz, “pode satisfazer as necessidades sexuais dos jovens”.
No entanto, a médica especialista em Medicina Sexual acredita também que há acesso a um maior conteúdo educativo, “o que faz com que estejam mais informados e esclarecidos e com mais poder para não ceder a pressões, fazendo escolhas em consciência”.
O impacto da pornografia
Voltando à pornografia, a sexóloga lembra que ela por si só não é um problema: “Existe, sim, boa e má pornografia, e a de acesso livre é pouco ética. Está muito virada para o prazer do homem e pouco preocupada com o prazer feminino.
Além disso, os corpos que lá vemos não são reais. Mostram pénis enormes, mulheres com um corpo muito estereotipado, sexo violento e rápido sempre com orgasmo…
Claro que, depois, os jovens poderão espelhar tudo isso na sua vida sexual, até porque não há praticamente educação sexual nas escolas e pouco se fala de sexo em casa”.
O acesso à pornografia, continua a médica, é “inevitável, mas seria ótimo que os pais conseguissem capacitar os filhos para fazerem as melhores escolhas”.
Mafalda Cruz lembra ainda que há também muitos adultos viciados em pornografia.
“Isso faz com que muitos só se sintam sexualmente satisfeitos com práticas parecidas com as que veem nesses conteúdos. Resultado? Isolam-se e não tentam ter relações sexuais com os seus parceiros”, sublinha a médica.
Medo de encontros ao vivo
Se, antigamente, os encontros aconteciam ao vivo e as cores, hoje, em grande parte dos casos, até se chegar a esse ponto, muita conversa acontece online e há quem adie ad eternum o momento de conhecer o outro.
As inseguranças são muitas e isto não acontece só com os mais jovens, mas será mais comum nestes.
Como dissemos atrás, a pornografia de fácil acesso dá visibilidade a corpos pouco reais e esse é um dos motivos para tanta insegurança com o físico, para não falar daquelas que advêm do desempenho sexual.
“Há estudos que referem que os jovens japoneses preferem ter relacionamentos online do que físicos. Manter um relacionamento apenas online, permite-nos disfarçar as nossas inseguranças e não ter de lidar com a frustração, caso algo corra mal”, afirma Mafalda Cruz.
Quando estamos ao vivo com outra pessoa, estamos mais expostos e, como lembra a sexóloga, “temos de aceitar ser vulneráveis e o sexo envolve bastante vulnerabilidade da nossa parte. Online, as pessoas só veem o que deixamos ver”.
Dating burnout
Encontrar a pessoa certa não é fácil e isso está a gerar aquilo a que se chama dating burnout ou fadiga de encontros.
“Marcar um encontro é fácil, avançar daí é que pode ser mais difícil”, diz Mafalda Cruz, que acrescenta que “o dating burnout é uma realidade e há pessoas muito cansadas, desmotivadas e descrentes com tantos encontros”.
A médica especialista em Medicina Sexual realça que, atualmente, “conhecer muitas pessoas é fácil, difícil é conhecer indivíduos interessantes. Isto está a fazer com que as pessoas comecem a achar que não vem nada de bom das aplicações, que toda a gente é igual, que toda gente está ali com objetivos pouco sérios. E isso é cansativo”.
Como diz a sexóloga, “as aplicações online não fazem grandes filtros”. Ou melhor, “já há algumas que fazem uma seleção mais dirigida ao que queremos, mas são caríssimas e, mesmo assim, estamos sempre na mão de um algoritmo. Portanto, é normal que encontremos pessoas que não correspondem ao que idealizamos”.
Não saber lidar com isso é que pode tornar-se problemático. “Começamos a achar que o problema é nosso ou que não há pessoas boas. A rejeição é dura e lidar com a frustração tantas vezes é cansativo, desanimador e compromete a autoconfiança, o que leva algumas pessoas a desistir de encontrar o(a) tal”, descreve Mafalda Cruz.
Chabot de companhia
Theodore é um escritor solitário que ainda nutre sentimentos pela sua ex-mulher até que se apaixona pela voz do sistema operacional do seu computador.
Não, não é uma história real, mas a do filme Her, com Joaquin Phoenix no principal papel, mas poderia ser.
Em 2013, quando o filme estreou, esse amor era apenas ficção científica. Mas, hoje, já é possível apaixonarmo-nos por um chatbot de companhia, desenvolvido pela inteligência artificial (IA).
“No Japão, já é bastante normal ter um relacionamento virtual”, realça Mafalda Cruz. Estes chatbots não são mais do que os(as) namorados(as) ‘perfeitos(as)’, porque nos dizem tudo o que queremos ouvir.
Podemos escolher o nome, o visual, a voz e até os seus interesses.
“Além de responder o que queremos ouvir, muitas vezes, também satisfaz as necessidades sexuais, ao ponto de as pessoas não sentirem vontade de ter encontros físicos. A IA está muito bem desenvolvida neste campo”, esclarece a médica especialista em Medicina Sexual.
“Se a pessoa se sente satisfeita, não vejo qualquer problema. Contudo, é inevitável que tenha um impacto a nível psicológico, pois contribui para o isolamento e para que as pessoas tenham ainda mais receio de relações. Tudo isto vai gerar mais ansiedade e depressão. Para não falar da baixa da natalidade”, alerta.