“Quero lá saber do que o tablet pode fazer às crianças. Não acredito nas notícias e nos estudos que indicam cinquenta mil problemas porque, na verdade, ninguém viveu exposto uma vida inteira a estes aparelhos para que se possa saber se há mais vantagens ou desvantagens em utilizá-los.”
Sofia Pinto é contundente no discurso que não fica por aqui. “Não me digam que as pessoas com Alzheimer têm essa doença por verem demasiada televisão. Ninguém sabe de onde vem uma doença velha como esta, quanto mais que doenças pode causar um aparelho tão novo para a Humanidade como o tablet”.
Sofia Pinto, 43 anos, bancária, sabe que o discurso que tem quanto à utilização de tablets, smartphones e outros aparelhos eletrónicos é raro e justifica-se: “Estou bem treinada. Desde que o meu filho nasceu que tenho tomado decisões polémicas, mas tenho resposta para tudo e não é irrefletida. Eu acredito que há velhos do Restelo e outros, como eu, dispostos a olhar de forma otimista para os avanços do mundo”.
Eletrónica ao serviço da educação
Sofia pode contar as vantagens que o avanço tecnológico lhe tem oferecido na educação do filho Luís, hoje com 13 anos: “Nunca limitei o acesso do meu filho à televisão, ao computador, aos jogos, aos tablets, aos smartphones… Em minha casa somos loucos por tecnologia, e tudo o que podemos, compramos. Acha razoável mudar a vida radicalmente porque se tem um filho ou, pior, dizer uma coisa e fazer outra?”
Foi assim que desde pequenino Luís aprendeu a viver com a tecnologia. Logo desde que nasceu, quando os pais organizavam em casa campeonatos de videojogos entre amigos e o bebé estava acordado, ficava na sala a olhar para o ecrã. Com dois anos já jogava num dos tablets que existiam em casa, juntava cores e formas geométricas.
Os pais descobriram que era mais fácil que comesse de televisão ligada ou tablet na mão e usaram os aparelhos para facilitarem as refeições. “Talvez aos cinco tenha jogado o primeiro FIFA e nunca mais parou.” Sofia sabe que o filho sempre teve mais tempo de televisão e videojogos do que aquilo que é recomendado pelos especialistas.
Saúde Pública em perigo
A Associação Americana de Pediatria (AAP), por exemplo, publicou em 2014 uma tabela indicativa da duração da exposição ideal a televisão e aparelhos eletrónicos muito clara: com menos de dois anos as crianças não devem ter acesso a nenhum tipo de aparelho e duas horas, no máximo, a partir dessa idade e até à idade adulta.
No entanto, no último relatório Children and Adolescents and Digital Media, divulgado pela AAP, a recomendação é para baixar o tempo desses períodos de lazer.
Os perigos para a saúde são apontados pela mesma organização que diz que crianças muito expostas a ecrãs têm mais probabilidades de serem obesas, agressivas, consumistas. A dependência dos aparelhos eletrónicos é outro fenómeno indicado no relatório, um aspeto que a China já considera ser um problema de Saúde Pública.
Confrontada com estes dados Sofia Pinto responde: “Nada disso acontece como causa-efeito. O Luís é um miúdo magro. Joga muito mas come de forma saudável e faz desporto fora da escola, por isso nunca iria engordar. Ainda agora, com 13 anos, anda sempre atrás de mim para me dar beijos, nunca teve problemas na escola. Consumista é, mas eu e o pai dele também somos, por isso…”
A bancária faz uma lista mais lata dos problemas que lhe apontam frequentemente por não limitar o acesso do filho a videojogos, redes sociais e televisão: “Dizem-me que afeta o cérebro e que o Luís vai ficar mau aluno, dizem-me que vamos deixar de conversar com ele, que será uma pessoa solitária. O Luís continua a ser aluno de quatros, conversa sobre tudo, interessa-se por política, é um craque a geografia… muito diferente de muitos miúdos da idade dele que vejo. O Luís sabe imensa coisa de História Mundial por causa de videojogos como o Age of Empires ou o Battlefield.”
Combater o isolamento através dos jogos
Quanto ao perigo da solidão, Sofia Pinto acrescenta: “Para nós, os videojogos são fontes de convívio familiar e que alargamos aos amigos. Continuamos a fazer campeonatos, vivemos aventuras no ecrã, fazemos equipas e conquistamos o mundo.”
Nas redes sociais Sofia Pinto só vê vantagens: “Não há nada que o Luís queira ver e discutir que não possa fazer em casa. Pode conhecer pessoas, estar com amigos online, não precisa de estar sozinho. Nada disso para nós é um problema. Só temos uma regra: quando nos vamos deitar, os aparelhos de todos ficam na sala, com as notificações desligadas.” Para Sofia Pinto, “os adolescentes que não falam com os pais fazem-no por causa da relação que foi estabelecida entre todos muito antes dos jogos ou smartphones entrarem em casa.”
Nesta casa a electrónica não entra
Do outro lado da barricada está Elisabete Domingos, gerente uma loja de roupa de 33 anos, que não permite que o filho de oito anos veja televisão, jogue um jogo eletrónico, tenha acesso à Internet. “Não posso controlar o que se passa fora do ambiente familiar mas em casa e na casa dos avós, o Samuel não usa, nem vê essas coisas. Há muita coisa bonita com que se distrair.”
A decisão que já tinha tomado antes do filho nascer não foi feita de ânimo leve. “Lemos muito quando estamos grávidas e eu li coisas pavorosas que acontecem às crianças que vêem televisão desde pequeninas. Danos cerebrais. O mesmo acontece com os miúdos que jogam videojogos. Acho uma tolice deixar que as crianças usem coisas que lhes fazem mal. Mais vale por-lhes um cigarro na mão.”
A morfologia do cérebro está a mudar
Efetivamente, são vários os estudos académicos que encontraram alterações nas estruturas do cérebro de crianças e jovens muito expostos aos aparelhos. Em 2014, por exemplo, um estudo da Universidade de Tohoku, na cidade japonesa de Sendai, descobriu uma alteração no cérebro provocada pela televisão e relacionada com uma inteligência verbal mais baixa.
Mais recentemente, em 2017, a Universidade de Montreal, no Canadá, demonstrou através de uma investigação científica, que os jogos de atiradores na primeira pessoa estão relacionados com a perda de memória espacial, fenómeno provocado pela repetição e pelo hábito.
Vantagens de criar uma criança de forma estranha
“Não é sempre fácil. As pessoas são muito boas a criticar os outros e eu estou sempre a ser acusada de estar a criar uma criança estranha. Mesmo com os meus pais foi difícil impor-lhes a minha de decisão de não deixar o Samuel ver televisão. Foi a condição que pus para que pudessem ficar com ele todas as tardes, a partir das 15h00. Mas a verdade é que o meu pai joga com ele jogos de tabuleiro, saem para ir ao parque, a minha mãe senta-se com ele para desenhar. É bom para todos.”
Elisabete reconhece alguns traços “estranhos” no filho, quando o vê com outras crianças: “Se há uma televisão ligada, ele pára em frente a ela e fica desligado do resto do mundo, se os outros têm um tablet ele não é capaz de jogar, limita-se a ver. Nem sempre é fácil.” Mas vê vantagens noutras situações como não ter medo do mundo, nem dos desconhecidos, nem dos animais. “É uma criança que faz rapidamente amigos. É ele que toma a iniciativa, na maioria das vezes”.
Além dos estudos que leu, Elisabete e o namorado decidiram não ter televisão em casa porque ela não lhes fazia falta. O companheiro de Elisabete é alemão e foi ele que a convenceu. “Ele já não via televisão quando nos conhecemos. Quando fomos viver juntos não estava na lista de prioridades a comprar, o Lars dizia-me que a televisão faz imenso barulho e ocupa imenso espaço. Com o passar do tempo deixei de sentir necessidade de ver televisão.”
Este não é o único aparelho eletrónico que de que Elisabete e a família prescindem: “Temos um computador para todos e os nossos telefones relativamente velhos. Não precisamos de mais nada para comunicar com o mundo”.
À medida que o pequeno Samuel vai crescendo, Elisabete vai identificando traços que acredita estarem relacionados, pelo menos em parte, com a ausência de distrações eletrónicas. “O meu filho começou a falar muito cedo, a leitura estava quase toda adquirida na altura do pré-escolar, continua a ter um vocabulário extenso para a idade.” A leitura de livros infanto-juvenis é um hábito que Samuel adquiriu recentemente. “Há quem passe o tablet ao filho para que ele fique sossegado, o meu fica quieto a ler Os Diários de um Banana.”
Nem tudo é, no entanto, um mar de rosas. O filho de Elisabete quer ter um tablet, jogar consola e ver as séries de desenhos animados que os colegas da escola comentam no recreio. “Às vezes grita, fica desesperado nestas discussões. Outras mostra-se muito triste por não não poder ter essas coisas.”
Mas Elisabete não desarma e refere que as vantagens são mais do que as desvantagens. “O meu filho não está exposto à violência e ao sexo que passam na televisão constantemente. Ele não precisa de saber já da guerra da Síria ou da fome o Iémen. E quando quer saber, nós explicamos, mas sem lhe mostrar aquelas imagens horríveis de crianças famintas.”
De que lado da barricada está quanto à presença de aparelhos eletrónicos na vida dos seus filhos? Descubra ainda 6 essenciais para criar crianças felizes.