Relações e família

“Fair Play não é uma lista, mas uma espécie de sistema para equilibrar a carga de trabalho doméstico”

Eve Rodsky defende que a divisão de tarefas em casal deve ser justa. A Saber Viver esteve à conversa com a advogada que escreveu um livro sobre esta temática.

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“Fair Play não é uma lista, mas uma espécie de sistema para equilibrar a carga de trabalho doméstico” “Fair Play não é uma lista, mas uma espécie de sistema para equilibrar a carga de trabalho doméstico”
Madalena Alçada Baptista
Escrito por
Fev. 16, 2020

A advogada norte-americana especializada em mediação familiar lançou Fair Play, um guia em que identifica 100 tarefas que devem ser divididas igualmente pelo casal, desde trabalhos domésticos óbvios, como limpar e cozinhar, até aos mais impercetíveis (mas muito necessários), como preencher formulários escolares ou programar as férias.

Fair Play, Eve Rodsky (32,38€)

Foi um episódio com mirtilos que a levou a escrever este livro. Quer falar-nos mais sobre este momento?

Fui educada por uma mãe solteira e desde cedo habituei-me a ajudá-la a gerir ordens de despejo e contas em atraso. Jurei a mim mesma que, quando crescesse, iria ter um parceiro de vida como eu… e tive! Dois filhos mais tarde, dou por mim a chorar à beira da estrada por causa de uma mensagem que o meu marido me enviou: “Não acredito que não compraste mirtilos!”.

Quando me sentei no carro, pensei: estou tão sobrecarregada que já nem consigo dar conta de uma lista de compras (quando costumava gerir uma equipa inteira de funcionários) e, mais importante, quando é que me tornei na única responsável pelas tarefas domésticas e cuidados infantis? Esta não era a combinação carreira + casamento que tinha idealizado.

Naquele momento, soube que alguma coisa tinha de mudar. E, assim, encetei uma busca na tentativa de encontrar a solução para o reequilíbrio doméstico, não apenas para o meu casamento, mas para todos os casais.

As mulheres falam muitas vezes em ‘ajuda’ para descrever as tarefas dos companheiros em vez de tratá-los como iguais. Não estará nas mãos das mulheres (como mães e esposas) alterar este panorama?

É verdade que muitas vezes as mulheres culpam os homens de não fazerem nada ou de falharem por não corresponderem às suas expectativas, mas muitas de nós não estamos a dar-lhes o contexto e autonomia necessários para que percebam como podem ‘ajudar’ da melhor forma.

Se queremos convidar os nossos companheiros a tornarem-se verdadeiros colaboradores nas tarefas domésticas, temos de despedir-nos de velhos hábitos, deixar de fazer exigências e de delegar sem nenhum plano intencional. As minhas entrevistas com todos os tipos de homens/pais/maridos revelaram que a maioria deles responde positivamente a uma abordagem direta relativamente à partilha de tarefas domésticas se estas forem passadas com clareza e as expectativas forem explicitas.

Eles arregaçam as mangas de bom grado quando entendem claramente os ‘pedidos’ que lhes são feitos – a tarefa completa e o papel que está a ser pedido que desempenhem.

A implementação de sistemas leva algum tempo, por isso não espere que o seu companheiro faça o seu trabalho do dia para a noite

O que quer dizer quando refere que as listas não funcionam, mas os sistemas sim?

Entregar uma lista de tarefas ao companheiro não vai levá-la longe! Sei isto porque foi o que fiz inicialmente. Enviei ao meu marido, por e-mail, uma lista em Excel de todas as tarefas que realizava em casa. Chamei-lhe Sh*t I Do List [Lista das M*rdas Que Faço, em português]. Sabem o que aconteceu? Não ligou nenhuma… e quem poderia culpá-lo? Fair Play não é uma lista, mas uma espécie de sistema para equilibrar a carga de trabalho doméstico.

Convida a leitora a sentar-se com o companheiro num espírito de cooperação e transparência para falarem sobre tudo o que é preciso fazer para uma casa funcionar. Juntos, decidam que tarefas são válidas e relevantes para a vossa família e depois alinhem as vossas expectativas e definam papéis claros.

Noutras palavras: quem faz o quê, como e quando? A implementação de sistemas leva algum tempo, por isso não espere que o seu companheiro faça o seu trabalho do dia para a noite. Comece por negociar uma tarefa. Apenas uma pode virar completamente o jogo. Quando o meu marido ‘assumiu a pasta’ das atividades extracurriculares dos meus dois filhos, recuperei oito horas da minha semana.

Qual a melhor maneira de explicar isto a um homem? Que as tarefas domésticas devem ser vistas como gerir um negócio para que sejam bem-sucedidas?

Imagine-se a entrar no escritório todas as manhãs e perguntar ao seu colega do lado/chefe/diretor: ‘Podes lembrar-me o que tenho para fazer hoje? Vou só sentar-me aqui à espera que me digas o que tenho de fazer’. Isto simplesmente não acontece em ambientes profissionais porque… não é profissional!

Iria provocar o caos e ineficiências colossais. Então, porque é que nos comportamos assim em casa? Se tratarmos a nossa casa como a nossa organização mais importante, podemos começar a otimizar a eficiência e igualdade no âmbito doméstico.

Fair Play é um jogo figurativo que deve ser jogado pelo casal. Cada um agarra em várias ‘cartas’ que correspondem a tarefas domésticas.

Testou o livro antes de o publicar?

Sim. O meu marido e eu fomos os primeiros a ‘jogar’ e, acreditem, errámos imensas vezes pelo caminho. Mas eventualmente Fair Play revolucionou o nosso casamento.

Também entrevistei homens e mulheres de quase todos os estilos de vida, com diferentes famílias, salários e etnias que testaram este sistema. Juntamente com a opinião e o contributo de psicólogos clínicos, neurocientistas, economistas comportamentais, advogados e sociólogos sobre o trabalho invisível, testei o sistema Fair Play.

 

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Quais as regras de Fair Play?

Fair Play é um jogo figurativo que deve ser jogado pelo casal. Cada um agarra em várias ‘cartas’ que correspondem a tarefas domésticas. Estas são as regras (simples) que criei para prepará-los para jogar:

1. Todo o tempo é criado da mesma forma

Ambos os parceiros precisam de reavaliar a melhor maneira de aproveitar o tempo e, depois, comprometerem-se com o objetivo de reequilibrar as horas de trabalho doméstico entre os dois.

2. Recupere o seu direito de ser interessante

Quando todo o seu tempo e mente se focam unicamente nas tarefas necessárias para administrar uma família, é fácil cair no erro de achar que as suas paixões pessoais não são prioritárias. Então, está na hora de os dois recuperarem ou descobrirem interesses que vos tornam únicos, além do papel de pais e companheiros maravilhosos. E em Fair Play é exigido que tenham tempo e espaço mental para explorarem esse direito – e respeitarem esse direito mutuamente.

3. Comece a partir daqui

Não vai chegar onde quer ir sem primeiro perceber: Quem sou eu? Quem é realmente a pessoa com quem estou? E qual é minha verdadeira intenção de envolver o meu companheiro na renegociação da carga de trabalho doméstico? Quando tiver uma noção clara do que deseja, é mais provável consegui-lo. Comece a conversa abrindo o jogo ao seu companheiro.

4. Estabeleça valores e padrões

Faça um balanço do seu ecossistema doméstico e escolha o que quer fazer em casa, com base no que é mais importante para si e para o seu companheiro. Só porque habitualmente executa determinada tarefa, não quer dizer que seja uma tarefa imprescindível.

Depois de ambos determinarem quais as ‘cartas’ – tarefas que devem ser realizadas porque valorizam a família – que estão em jogo, devem concordar mutuamente num padrão razoável de execução dessas tarefas. Quanto mais investir na descompactação dos detalhes, mais será recompensada.

Uma das minhas maiores descobertas enquanto fazia pesquisa para o livro, foi que as mulheres se sentem assoberbadas, mas a solução não é necessariamente que os seus companheiros partilhem igualmente as tarefas domésticas

5. Existem 100 tarefas em Fair Play. Como estão divididas?

Como eu o projetei, o sistema Fair Play consiste em 100 tarefas ou ‘cartas’, que organizam o ecossistema doméstico de forma cuidadosa em cinco naipes-mestre – Casa, Fora de Casa, Cuidado, Magia [coisas divertidas, como presentes e brincadeiras] e Selva [momentos inesperados que podem fazer tudo descarrilar], além da importante carta ‘Espaço Unicórnio’ [tempo dedicado a estimular a criatividade de cada um] – que cada membro do casal deve jogar.

Qual o segredo do sucesso de Fair Play?

Uma das minhas maiores descobertas enquanto fazia pesquisa para o livro, foi que as mulheres se sentem assoberbadas, mas a solução não é necessariamente que os seus companheiros partilhem igualmente as tarefas domésticas.

Quando perguntei às mulheres (a trabalhar a tempo inteiro, em part-time ou mães a full-time) o que faria mais diferença na sua satisfação conjugal, responderam que depende menos que as tarefas sejam divididas 50/50 e mais que os companheiros levem a cabo a tarefa que têm entre mãos do princípio ao fim.

E isto não diz respeito apenas à tarefa em si, mas também à carga emocional e cognitiva que cada uma acarreta – a conceção, o planeamento, lembrar-se quando, onde e como o trabalho deve ser feito – e sem muitas dicas da companheira. Pode parecer contraproducente pedir aos companheiros que façam mais ou menos, mas fazê-los sentir-se no poder é mais eficaz, dá azo a menos ressentimentos e traz o sentimento de justiça para dentro de casa.

Fair Play deve ser lido a dois?

Não é necessariamente para lerem juntos, mas a certa altura há de querer convidar o seu companheiro a sentar-se para ‘jogar’!

E no caso dos casais competitivos, este livro pode ser um incentivo ou um elemento desestabilizador?

Fair Play não é um exercício de pontuações. Encorajo os casais a juntarem-se e a desviarem as suas conversas de qualquer tipo de competição e que rumem juntos em direção à colaboração e à justiça. Daquilo que vi e experienciei, a maioria dos casais aceita esta mudança!

Qual o seu livro preferido sobre casais e amor?

O meu livro preferido é Difficult Conversations, de Doug Stone, professor em Harvard.

Qual o casal que mais a inspira?

Dax Shepard e Kristen Bell

Qual o seu filme preferido sobre a vida em casal?

Before Midnight, de Richard Linklater.

A versão original deste artigo foi publicada na revista Saber Viver nº 236, fevereiro de 2020.

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