Além do físico: a importância da intimidade nas relações
O que esconde a palavra “intimidade”? Mais do que um conceito abstrato, é um dos segredos para um relacionamento de sucesso, afirma Sílvia Coutinho, psicóloga, terapeuta familiar e de casal e autora da obra O Poder da Relação (Crisântemo), com quem a Saber Viver teve a oportunidade de conversar.
Nem só de amor se constrói uma relação. Aliás, o segredo aqui está mesmo no verbo construir. Como as peças Lego que se vão encaixando estrategicamente umas nas outras, assim é uma relação amorosa, que apenas floresce e perdura quando certas condições são apresentadas, sendo uma delas a intimidade entre parceiros.
Que implicações tem este pedaço fundamental do puzzle numa relação? Conversámos com Sílvia Coutinho, psicóloga, terapeuta familiar e de casal e autora do livro O Poder da Relação (Crisântemo), para descobrir mais sobre o tema.
Entrevista a Sílvia Coutinho
Na obra O Poder da Relação afirma que “a vivência da intimidade sexual está profundamente ligada à forma como nos sentimos ou não suficientes e merecedores de amor”. Podemos amar verdadeiramente o outro sem nos amarmos em primeiro lugar?
É certo que, ao longo de todo o nosso processo pessoal, teremos de aprender a amarmo-nos. É uma importante competência para lidar com inúmeras situações da nossa vida, também a ser utilizada diante da nossa relação com a nossa pessoa parceira. Não obstante, acredito que o encontro connosco não acontece em solidão ou diante apenas de nós mesmos, mas acontece, sim, sempre em relação.
A melhor coisa para um ser humano é sempre outro ser humano, da mesma forma que a pior coisa para um ser humano também poderá ser outro ser humano. Isto expressa a importância da construção de relações saudáveis.
A forma como nos vemos, como nos sentimos ou não suficientes e merecedores de amor advém necessariamente das relações e interações da nossa vida. Em como estas nos fizeram sentir aceites e amados.
A consistência, responsividade e segurança das relações precoces com os nossos cuidadores, na adolescência com os pares, assim como nas experiências amorosas das quais vamos fazendo parte, são sempre extremamente importantes para a construção do nosso mapa acerca do mundo, das relações e de nós mesmos.
Desta forma, esse mapa mundo surge como uma espécie de impressão digital, que é determinada pela forma como fomos amados, a maneira como nos olharam, falaram, como nos abraçaram e ampararam, ou então como não o fizeram, sendo mais ou menos construtiva, positiva, negativa ou ansiogénica, definindo igualmente a forma como nos vemos a nós mesmos e como iremos amar.
Ou seja, vamos estruturando desde o primeiro dia da nossa vida um padrão de vinculação que age como um espelho da (in)disponibilidade de todas essas figuras cuidadoras.
E isto pode resultar num padrão de vinculação “bom” ou “mau”…
Um padrão de vinculação consiste na forma como a ligação a essas figuras cuidadoras se vai estabelecendo, com o objetivo de permitir a sua proximidade e garantir a nossa segurança física e emocional. É a nossa primeira estratégia de sobrevivência, refletindo-se na maneira como aprendemos o amor, a amar e a sermos amados; a sentir segurança, a descansar na relação ou a ter de lutar pela mesma, pelo amor e pela nossa sobrevivência.
Quando sentimos essas figuras cuidadoras disponíveis e responsivas nos seus cuidados e afeto criamos um padrão de vinculação seguro, que nos preenche de tudo aquilo que definimos como um lugar de amor, experienciando baixos níveis de ansiedade e evitamento. A relação é percecionada como um lugar seguro para estar e ser, assim como futuras relações da nossa vida. A perceção de nós mesmos passa por um lugar de aceitação pessoal, maior confiança interna e boa autoestima.
Pelo contrário, quando não tivemos a sorte de sentir que essas figuras consistem nos seus cuidados e presença física e emocional, previsíveis na sua atenção e afeto, ou sendo mesmo negligentes, a nossa impressão digital ou representação interna fica impregnada de insegurança emocional e relacional, baixa autoestima e maior ansiedade face às relações e à intimidade.
A relação com os pares na adolescência e principalmente a relação de intimidade com uma pessoa parceira consistirá numa oportunidade incrível de podermos atualizar, reaprender sobre os vínculos, o afeto e a segurança, e possibilitar mostrarmo-nos e estarmos numa relação de maneira muito mais segura e saudável.
Percebemos, assim, que nenhum de nós poderá encontrar-se a si mesmo e aprender a amar-se melhor apenas na sua solidão. É no seio das relações que acontece sempre essa possibilidade, que surgem as nossas perceções, interpretações, enviesamentos, distorções ou desconstruções, e onde poderemos aprender a amarmo-nos melhor. Desta forma, será impossível sermos já esse produto acabado de aprendizagem e autoestima pronto para amar. É também lá que nos conhecemos e onde podemos construir a nossa autoestima.
David Schnarch, um terapeuta de casal de grande estima e referência para mim, indicava mesmo que o casamento ou as relações são uma máquina poderosíssima de fazer crescer pessoas. É no seu seio que nos desenvolvemos e nos confrontamos com inúmeras situações e eventos que nos espelham os gatilhos e vulnerabilidades que deveremos continuamente melhorar e construir.
Porque temos medo de mostrar vulnerabilidade?
Muitas vezes este medo poderá surgir precisamente de uma “mochila” que trazemos às costas perante a forma como possa ter sido percecionada uma relação, diante de uma lente de ameaça, perigo ou intrusão. A ausência de amor e afeto na infância, situações e eventos traumáticos podem criar a necessidade de construção de um mecanismo de defesa e proteção, de maior evitamento e retirada daquilo que poderá ser tão assustador de se sentir numa relação íntima. Nestas situações, a intimidade poderá ser sentida como intrusiva, assustadora, ameaçadora ou perigosa.
O conceito de família, casa ou até mesmo de amor nem sempre rima com aceitação, segurança, liberdade, compreensão e carinho. Para muitos poderá reportar a um lugar de crítica, de desvalorização, de humilhação, violência, negligência e abandono. Atenção que por abandono não me refiro apenas a um abandono físico. Existem múltiplas situações de abandono emocional.
Na verdade, podemos sentirmo-nos profundamente sozinhos ao lado de alguém. Poderá surgir o medo da intimidade ou de sermos vulneráveis, ou seja, autênticos, honestos e verdadeiros (sem máscaras ou subterfúgios) numa relação íntima. Poderá sempre residir um profundo medo de confiar e arriscar uma não- aceitação já tão sua conhecida de relações anteriores (não só amorosas, mas também com as nossas figuras cuidadoras).
Fala a certo ponto da ideia do amor romântico. O sexo também é idealizado através de filmes e da pornografia? Pode isto ser prejudicial para a relação?
Sem dúvida! O erotismo é muito diferente do lugar da pornografia. Através desta o casal ou um dos seus elementos poderá ter acesso a um conjunto de ideias sobre o sexo, sobre as relações, sobre o corpo (do homem e da mulher), sobre o que será potencialmente prazeroso, sobre atitudes que poderão não corresponder de todo ao cenário daquilo que é uma relação amorosa ou a sexualidade de um casal.
Por outro lado, poderá prejudicar os estímulos sexuais naturais e próprios de uma relação face à exposição a estímulos que muitas vezes correspondem a um maior exagero sexual, a uma idealização desmesurada ou muitas vezes longe da realidade, influenciando a forma de percecionar a sua sexualidade (ou outros elementos e fatores associados a esta) como não sendo tão excitante quanto os estímulos percecionados em pornografia. Isto pode conduzir a uma maior insatisfação, desinteresse ou mesmo desinvestimento perante a sexualidade real do casal.
O sexo pode ser a boia salva-vidas de uma relacão?
O sexo ou a sexualidade não é uma boia salva-vidas, mas a sexualidade e a sua intimidade é e será uma importante parte de uma relação amorosa e nem sempre passará por uma penetração ou um coito. Cada casal poderá dar largas à sua forma de viver a sua sexualidade do modo que melhor lhes convém ou melhor lhes possa fazer sentir, com maior ou menor presença ou frequência desta.
Contudo, a intimidade sexual é um elemento muito importante da intimidade relacional, permitindo conectarmo-nos emocionalmente com alguém que amamos, e não uma tática ou estratégia para salvar relações.
A sexualidade, mais do que um comportamento mecânico ou sincronizado, é um comportamento de vinculação nos adultos, uma linguagem poderosa e prazerosa de estar conectado a um outro. É regressarmos ao sentimento bom de estarmos na nossa casa segura, no toque de pele com pele junto à nossa pessoa parceira, ligados intimamente, independentemente se estivermos a falar de uma relação amorosa diádica ou poliamorosa.
Costumo referir que ser íntimo pressupõe ser conhecido, ser descoberto por nós e pelo outro, sendo este um aspeto que poderá gerar enorme sentido de felicidade, prazer e bem-estar. E sermos descobertos pelo outro não consiste apenas na descoberta do corpo.
A intimidade vai muito além do corpo. É um lugar de honestidade e vulnerabilidade autêntica e esta sim é uma poderosa ferramenta que potencia a relação a longo prazo, consistindo no próprio poder da relação em si. Neste lugar, o amor alimenta o sexo, o sexo alimenta o amor.