Família é e sempre será um ponto de origem. Uma orientação ou uma consistente necessidade humana básica de pertença que se quer calorosa, íntima, flexível e contentora, pois é onde habitam as ligações emocionais mais importantes e significativas que o ser humano constrói.
Partimos assim da convicção de que os seres humanos apresentam uma profunda necessidade de conexão e pertença às suas pessoas mais importantes, à sua família.
Contudo, o sentimento ‘casa’ a segurança emocional que esta possibilita, nem sempre está garantida em todas as famílias.
As famílias perfeitas não existem. Muitas enfrentam uma série de desafios e exigências perante os períodos do ciclo de vida, perante os desafios da vida quotidiana e crises inesperadas que requerem que a família consiga encontrar e manter um equilíbrio emocional coerente, e que possibilite simultaneamente promover o sentido de pertença, assim como o de ser, e/ou o de tornar-se pessoa. Outra tantas, podem revelar contornos mais tóxicos ou disfuncionais devido à sua estrutura.
A família em que crescemos é a nossa primeira janela para o mundo e oferece-nos o primeiro olhar que estabelecemos do que é ou não normal. Só à medida que vamos crescendo e maturando, assim como construindo novas relações afetivas, é que damos conta dos erros ou até da disfuncionalidade existente na nossa família.
Como este sempre foi o nosso mundo conhecido, a nossa vivência habitual, podemos sentir alguma dificuldade em olhar conscientemente para os padrões tóxicos e disfuncionais da nossa família e, durante muito tempo, considerá-los como um padrão e uma relação normais.
Ao longo do nosso desenvolvimento, aprendemos a tolerar comportamentos que seriam muitas vezes intoleráveis por parte de outras pessoas, como das que nos rodeiam.
Características dos laços familiares tóxicos ou disfuncionais
Violência
A violência poderá assumir múltiplas formas, tornando-se muitas vezes difícil de reconhecer. Por exemplo, ser-se emocionalmente violento não consiste apenas em gritar, insultar ou humilhar.
Poderá passar por comportamentos de silêncio, utilização de jogos de ameaça e de comportamentos deliberados de ausência de afeto quando o outro não vai de encontro às suas necessidades; de virar de costas deixando o outro sozinho, utilizando a indiferença e fazendo o outro sentir-se absolutamente nada; a hipercrítica e humilhações constantes, a utilização do sarcasmo, o ignorar as necessidades (físicas ou emocionais) do outro; a utilização de ameaças e chantagem, entre outros comportamentos que fazem a pessoa sentir-se imensamente agredida na sua integridade emocional.
É desconcertante percebermos que, muitas vezes, o primeiro lugar onde o bullying e a violência acontece, é dentro da nossa própria casa, no lugar designado de “seguro”, com a nossa família.
Abusos
Quando falamos de uma família disfuncional, por norma falamos de uma família onde se presencia a existência de abusos. No entanto, muitas vezes associamos estes automaticamente à existência de abusos físicos ou sexuais, que claramente o são!
Contudo, é igualmente importante clarificar a importância do impacto que os abusos emocionais causam ao indivíduo ao longo da sua vida.
Quando falamos em abusos, podemos falar em agressão física e emocional, comportamentos de humilhação, desvalorização, crítica constante, ameaças, etc.
Ao tratar-se de uma maneira comum dos elementos interagirem entre si, em terapia observamos muitas vezes a uma normalização, aceitação e total ausência de consciência da disfuncionalidade deste tipo de comportamentos.
Amor condicional
Nas famílias disfuncionais, é frequente passar-se um sentimento de amor condicional, ou seja, um amor apenas partilhado com base em determinadas condições.
Deste modo, nestas famílias é comum expressar-se o sentimento de enorme desilusão face às escolhas, às opções, às emoções ou reações do outro, quando estas vão num sentido oposto à sua vontade ou à sua perspetiva, sendo o amor ou o afeto automaticamente retirado.
Muitas vezes, a comunicação entre os elementos mantém-se, embora de uma maneira mais fria, distante, desprovida de afeto e suporte.
Nestas famílias, não existe espaço para a diferenciação, para a existência do espaço individual e de expressão de autenticidade.
Quando se posiciona num sentido oposto ao seu ponto de vista, aquele elemento confronta-se com o facto de ter de optar pelo vínculo (porque não conseguimos sobreviver sozinhos, e quando crianças ou jovens, encontramo-nos ainda num lugar de grande vulnerabilidade para nos conseguirmos impor de forma saudável) em detrimento da sua autenticidade (de quem realmente é, do que sente, do que pensa ou do que necessita), podendo dar origem a uma enorme instabilidade emocional e psicológica.
Inexistência de fronteiras
Nas famílias disfuncionais, as fronteiras entre os elementos são diluídas ou mesmo inexistentes.
Inexistência de coesão familiar e intimidade
Nas famílias disfuncionais, assiste-se a um grande emaranhamento (ex.: onde toda a gente se intromete e resolve a vida de toda agente, o que poderá ser confundido, por vezes, com coesão familiar), resultante da inexistência de fronteiras claras.
De um modo geral, nas famílias disfuncionais não existe a devida valorização dos sentimentos ou das necessidades de cada elemento, nem o respeito por cada indivíduo, o que dificulta uma verdadeira expressão emocional e de intimidade.
Triangulação
Nas famílias disfuncionais, é inexistente o espaço para comunicar abertamente.
Por norma, tendem a fazer muitas triangulações, ou seja, a passar a mensagem por terceiros elementos e só então chegar ao recetor, em vez de resolver o assunto comunicando diretamente.
Este aspeto tende a dificultar a resolução dos problemas ou a escalar conflitos.
Comportamentos aditivos
Nestas famílias, é comum encontramos o consumo abusivo de álcool, drogas, jogo, entre outros comportamentos de dependência, colocando a família num confronto constante de instabilidade emocional e de incerteza.
O ambiente familiar é caracterizado pelo caos, pelos gritos e pela violência, sem os seus elementos nunca terem a certeza do que irão encontrar (o que gera fortes sentimentos de angústia e ansiedade).
O abuso emocional e o trauma vivido em contexto familiar (nomeadamente desde a infância) encontra-se muito frequentemente na causa de vulnerabilidades futuras, como, por exemplo ao nível das relações amorosas.
Aliás, viver um vínculo traumático na infância pode ser o motivo pelo qual tantas pessoas continuam a reproduzir e a perpetuar durante anos, ou vidas inteiras, geração atrás de geração, padrões disfuncionais e de violência.
Quando falamos de famílias disfuncionais e tóxicas, não estamos a falar unicamente em famílias violentas e abusivas fisicamente. Estamos a falar também de famílias manipuladoras, em que uma das figuras pode assumir um registo de manipulação, sedução narcisista, chantagens, de coação, de abuso emocional, de anulação, de ironias e de desprezo, sendo estes os aspetos que os elementos vão muitas vezes encontrar de novo nas épocas festivas, como o Natal ou Páscoa.
Esses momentos de reencontro familiar ficam muito longe da imagem calorosa e brilhante dos anúncios de Natal que circulam na TV.
7 passos para lidar com a toxicidade familiar neste Natal
1. Definir expectativas realistas
É expectável que os familiares não mudem só porque é Natal. Que a lente com que veem o mundo já é por si conhecida.
Recordar este pequeno aspeto poderá ajudar a nivelar as expectativas relativamente às festas.
2. Conhecer e colocar os seus limites pessoais
Poderá ser importante refletir sobre essas relações e perceber o seu limiar de tolerância.
O que é ou não aceitável para si? Quem são as pessoas com quem se sente confortável em estar? E as que não se sente confortável? Quais os temas que se encontra disponível para conversar e os que não?
Conhecer-se melhor, definir os seus limites e as suas intenções poderá ser um importante guia orientador para manter as relações de forma mais saudável.
Neste sentido, poderá ser importante relembrar que pode sempre permitir-se a recusar convites, eventos, temas de conversa, ou estar com determinadas pessoas, caso não seja confortável ou saudável para si.
3. Reconhecer os padrões relacionais
É muito comum, quando estamos de novo com a nossa família, sentir que voltamos aos mesmos padrões relacionais, à mesma dinâmica familiar ou aos velhos papéis e funções familiares por nós sempre conhecidos.
Contudo, poderemos sempre relembrar-nos que não somos a mesma pessoa vulnerável e disponível para atuar segundo os mesmos padrões ou os mesmos papéis.
Que somos hoje pessoas adultas que se podem responsabilizar por cuidarem de si próprias da maneira que consideram ser merecedoras de cuidado, de não permitirem comportamentos tóxicos e disfuncionais na sua vida.
Somos hoje os grandes responsáveis por tudo aquilo que permitimos influenciar as nossas emoções e a nossa autoestima.
4. Relativizar
Ninguém muda ninguém e não será com toda a certeza no Natal que conseguiremos potenciar a capacidade de reflexão e compreensão dos nossos familiares face aos seus comportamentos, aos padrões disfuncionais e/ou das suas ideias para puderem ser eventualmente diferentes.
Acreditar nessa ideia potencia ainda mais um sentimento de frustração, de desilusão e raiva.
Poderá ser importante criar um espaço seguro e consciente de até onde é confortável ir ou estar e relativizar o que fizer sentido relativizar.
5. Cuidar de si
Nesta época, é tão fácil sentir-se sobrecarregada com todas estas emoções e com todas as situações que podem ser tão difíceis de navegar.
É importante cuidar de si, de modo a não ficar esgotada ou assoberbada com todas estas questões.
Fazer exercício físico, meditar, fazer uma caminhada de modo a recentrar-se nos seus objetivos e intenções pessoais em como melhor lidar com todo o stresse, bem como em manter o máximo possível de conforto e segurança emocional.
6. Criar novas tradições de Natal
Não é porque um comportamento fez parte de um ritual durante muitos anos que significa que tenha de ser mantido. Pode ser importante relembrar-se do grande segredo das famílias saudáveis: a flexibilidade.
Se não funciona de determinada maneira, se não é confortável ou saudável para si, então poderá ser uma oportunidade de reinventar a tradição de Natal e fazer com que se sinta em paz, em harmonia e segurança.
Não é obrigada a conviver com rituais que possam gerar frustração, desilusão, insegurança ou mal-estar emocional.
7. Conectar-se socialmente
Quando falamos em disfuncionalidade familiar, muitas vezes falamos também em trauma de desenvolvimento que ocorre durante a infância, sendo assim impossível não olhar para o poder que a conexão social (de novas relações) pode ter na forma como nos sentimos e como podemos olhar de volta para nós.
Ou seja, ter alguém que nos dê a mão e acredite em nós, que nos potencie e acrescente uma nova imagem de nós, para além daquela que retirámos no decorrer das nossas relações familiares disfuncionais (muitas vezes de desvalorização e inferioridade).
Poderá ser a nossa avó/avô, um amigo, o nosso companheiro(a), um terapeuta, alguém que nos potencie pessoalmente e assim ajude a lidar de forma mais saudável com a nossa realidade familiar.
As famílias podem ser um mundo complexo com quem sentimos um forte vínculo, mas com quem pode ser verdadeiramente desafiante conviver.
Por vezes, e para muitas pessoas, a família pode não significar um porto de abrigo seguro, mas sim um lugar de abuso, podendo ser um enorme estigma a necessidade que colocar limites, de cortar relações familiares ou de potenciar algum distanciamento em prol do bem-estar individual.
Muitas pessoas veem-se confrontadas com sentimentos de vergonha e de culpa por não conseguirem associar a família a um lugar de laços saudáveis, nomeadamente quando a nossa sociedade reclama nesta época do ano a família como o centro de tudo.
É certo que esta não é a realidade de toda a gente, mas pode ser importante ter a coragem de romper o estigma associado à família nesta época festiva.
Têm de vestir-se de coragem e grande consciência, de modo a vivenciarem o Natal como mais do que uma época de família, mas sim como uma época de amor. De um amor que se quer autêntico, flexível, equilibrado…e saudável! A começar em si.
Sílvia Coutinho é psicóloga e terapeuta familiar e de casal. Em terapia, procura promover relações com maior conexão emocional, com famílias, casais e a nível individual. Adora refletir sobre as emoções mais profundas que sentimos quando nos relacionamos e acredita ser através destas relações, vividas de forma saudável, que conseguimos também individualmente potenciar o nosso bem-estar, equilíbrio e felicidade. Siga-a no Instagram.