Para Maria da Luz, Natal é sinónimo de sair para a rua, embora os cânticos que a rodeiam nem sempre sejam os mais felizes. Filha e neta única, desde que a mãe morreu, há 34 anos, optou por passar a noite de Natal na rua, junto dos mais desvalidos.
Natal é dar e receber
“Quando comecei a fazer isto nem sequer existiam as organizações que há hoje, que vão distribuir comida e bebidas quentes pelas pessoas da rua – não gosto de dizer sem-abrigo, são meus irmãos, pessoas com o mesmo coração e a mesma carne que eu. No início, comprava bolas de Berlim numa pastelaria e levava-lhes outras coisas que algumas pessoas me davam. Mas levo-lhes sobretudo um abraço, um carinho, digo-lhes que, afinal, tudo começou naquela noite”, afirma Maria da Luz.
Comeu muitas vezes no chão, sentada na rua, o jantar que uma vizinha lhe deixava feito. “Ela nunca soube que era ali que eu o comia”, admite.
Discreta, Maria da Luz gosta de fazer voluntariado sem alarde e de forma individual. Apanha um táxi que a leva a Lisboa e chega por volta das 22h30, passa parte do serão com os sem-abrigo e assiste à Missa do Galo na igreja dos Anjos onde, por vezes, é olhada de lado.
“Pelas pessoas de rua sempre fui bem-recebida. Nestes dias, há quem lhes deixe bolo rei e, muitas vezes, quando chegava ao pé deles tinham guardado um bocado para mim. Têm sempre algum mimo”, garante.
No último ano um problema de saúde impediu-a de passar o Natal como mais gosta e este ano a convalescença prolongada também não a deixa voltar à rua. “Mas assim que a saúde permita, irei. Já fui na Páscoa, que faz menos frio. Há dois anos, passei a consoada com amigos, fui à Missa do Galo, cheguei a casa, troquei de roupa, apanhei um táxi e fui ter com as pessoas de rua”, conta.
“A minha maior pobreza é não ter filhos, não ter família, mas com esta experiência sinto que fico muito enriquecida. Quando fazemos estas coisas recebemos muito mais do que damos, qualquer pessoa que experimente vai sentir isso”, garante Maria da Luz, cujo apoio às pessoas da rua se estendeu sempre para além da quadra natalícia.
“Por vezes, levava-os ao cabeleireiro, outras vezes comprava-lhes sacos cama, e quando algum tinha febre cheguei a ir comprar medicação e ficar ali ao lado durante a noite”, diz.
Sendo o Natal uma época de troca de presentes, Maria da Luz levou muitas vezes além da comida, vinho – “muitos são alcoólicos, o que é que lhes vou levar?!”-, agasalho, e sabão.
Em troca recebeu carinho e a satisfação que por vezes pode vir de uma frase tão simples como “Sinto-me mais leve!”, dita por uma mulher a quem tinha acabado de ensinar a lavar as mãos e a cara com sabonete num chafariz de rua. É assim que gosta de sentir o Natal e é assim que planeia continuar a vivê-lo, logo que a saúde lho permita.