Passamos os dias na correria e azáfama do trabalho. Chegamos a casa, cuidamos dos filhos, fazemos o jantar. Quando chegamos à noite, sentamo-nos no sofá e não sentimos energia para nada, nem ninguém. Absolutamente esgotados, sem nada mais para dar.
Contudo, este seria o tempo para o casal se conectar, aproveitar para conversar, alinhar, sentir entre si. Do outro lado, obtemos respostas curtas e rápidas, olhares corridos e pouco atentos, uma total falta de reciprocidade. O vazio, a falta, o silêncio vai encontrando espaço para morar na relação, ao longo dos dias, meses e anos vividos nesta rotina que se torna vagarosamente em distanciamento longínquo. Os ecrãs vão ganhando a nossa absoluta atenção. Sentimo-nos conectados a todo o mundo, mas profundamente desconectados do que e de quem realmente importa.
Vivemos mais do nunca a época da I.A., as siglas referentes não meramente à inteligência artificial, mas também à intimidade artificial. Profundamente desconectados, alienados das relações, dos vínculos, mais sozinhos do que nunca. É a designada solidão moderna. Lado a lado, conectados artificialmente, profundamente desconectados na vida real. Não nos entregamos inteiros na relação, na interação, surgimos apenas em metade de nós. Preguiçosos, desleixados, considerando que uma relação sobrevive neste deserto absolutamente árido, sem ser regada ou nutrida.
“Realmente importo? Interessas-te? Vês-me aqui ao teu lado a precisar de ti?” Quem cuida de nós quando essa pessoa deveria ser a nossa pessoa parceira, que está ali, mas não está? O que chega até nós é, na verdade, a perceção que tudo e todos são mais importantes do que nós e que estamos em último lugar das prioridades.
Vai nascendo assim um sentimento de profunda solidão, de perda, mas uma perda incoerente, um tanto ou quanto confusa, não clara, ambígua. Afinal de contas, a nossa pessoa parceira está ali. Tão perto…mas tão longe! Esta sensação vivida entre tantos casais assume a designação na literatura de perda/luto ambíguo.
O que é o luto ambíguo?
A perda ou luto ambíguo é um conceito definido pela psicóloga Pauline Boss, referindo-se a duas possíveis situações:
1. Quando alguém está fisicamente presente, mas ausente emocional e psicologicamente
Não é possível fazer o luto da relação, porque o outro ainda está fisicamente ali. Somos apanhados na ambiguidade entre uma presença física e uma ausência emocional. Esta situação pode acontecer da forma que descrevemos entre muitos casais, mas também em situações de divórcio e separação (em que o outro não está ligado emocionalmente, mas está fisicamente presente nomeadamente para os filhos), quando temos um familiar com demência, Alzheimer ou doença crónica, em coma ou, por exemplo, nos casos de dependência.
Neste sentido, a pessoa está fisicamente presente, mas quem conhecíamos não está mais connosco. Neste lugar, a relação que antes existia deixa de ser o que era anteriormente. As mudanças que se assistem no comportamento, nas habilidades e na interação podem criar uma sensação de vazio. Neste caso, o luto ambíguo acontece porque a ausência da pessoa que amávamos anteriormente não é reconhecida como uma perda clara. A outra pessoa parceira poderá ficar presa, bloqueada ou mesmo refém entre a esperança de que o outro regresse ao seu estado anterior ou o medo de que essa mudança se revele irreversível.
Poderá também advir esta sensação de perda e de luto ambíguo fruto de uma infidelidade ou traição. Nestas situações, uma das pessoas parceira poderá afastar-se emocionalmente, mesmo que ainda esteja fisicamente presente. Poderá advir de inúmeros fatores, como o desgaste emocional, o stresse, a falta de comunicação ou mesmo uma mudança nos seus interesses. A pessoa parceira que ainda se encontra investida e ligada à relação poderá sentir que perdeu a conexão emocional, mas sem que haja uma separação formal ou mesmo uma morte. Este distanciamento pode ser tão doloroso quanto uma separação real e efetiva, face à ausência emocional sem possibilidade de encerramento definitivo.
2. Quando alguém está fisicamente ausente, mas presente emocional e psicologicamente
Exemplos: quando alguém se encontra emigrado do seu país, uma criança desaparecida, alguém feito refém, etc. Contudo, também poderá ser algumas situações mais abstratas como perder a perceção de segurança no mundo ou no seu país, perder o emprego, a sua casa, a sensação de paz, entre outras.
O luto ambíguo descreve assim uma forma de perda que não é claramente definida, tornando particularmente difícil de analisar e lidar emocionalmente. Em ambas as situações, o encerramento da situação ou o luto fica comprometido ou impedido de se processar de forma convencional. Num processo de luto tradicional, quando acontece uma perda clara – como uma situação de separação ou pela morte da pessoa que amamos – a pessoa passa por um processo de encerramento e adaptação à situação de perda. Existe diante destas situações o reconhecimento de que algo acabou e que a relação não pode ser mais aquilo que era anteriormente. Esse processo de encerramento permite que a pessoa se vá ajustando, no seu ritmo, à nova realidade e consiga seguir em frente.
Quando o distanciamento emocional ocorre sem uma separação real, quando acontece a desconexão, a profunda solidão emocional e o desligamento emocional do outro, o encerramento nunca ocorre de forma clara. Na verdade, o distanciamento emocional impede que a relação se defina, gerando uma sensação de insegurança e incerteza constante, sem que a pessoa perceba se a relação poderá ser ainda recuperada ou se, na realidade, já terminou, mas sem a confirmação de uma separação formal.
Esta incerteza torna toda a situação extremamente desafiante, criando um limbo onde a pessoa fica presa entre o futuro da relação (onde talvez as coisas possam melhorar ou a pessoa parceira volte a conectar-se emocionalmente) e o presente (onde a relação não é mais sentida como segura). Esta situação de não saber em que ponto está a relação impede que a pessoa inicie um processo de luto saudável ou mesmo de aceitação face ao fim da relação, ficando num lugar de ambivalência extrema ou de espera prolongada.
Que impactos psicológicos tem a situação de luto ambíguo?
O impacto psicológico desta falta de encerramento é enorme:
Ansiedade e incerteza: A pessoa tende a viver em permanente estado de ansiedade e incerteza face ao futuro. A insegurança tende a traduzir-se numa sensação de falta de controlo;
Depressão: A experiência de luto ambíguo poderá intensificar-se para um estado de tristeza profunda, desconexão, desvalorização, desesperança e isolamento. Esta desconexão poderá colocar a pessoa num profundo questionamento sobre o seu valor pessoal, se é amada, podendo ter um grande impacto ao nível da sua autoestima e identidade, para além de não conseguir processar a perda de modo a seguir em frente;
Baixa autoestima: Quando um parceiro se distancia desta forma, a pessoa afetada poderá começar a duvidar de si mesma, do seu valor, das suas competências, do seu merecimento, etc;
Confusão e desorientação: Quando o parceiro se afasta emocionalmente desta forma, o outro poderá ter a sensação de perda da sua individualidade, de confusão sobre quem é afinal, sensação de não pertença, vazio, despersonalização;
Sentimento de rejeição e abandono: Esta situação poderá ainda promover sentimentos de exclusão e abandono, invisibilidade, desconsideração e intensa dor emocional;
Problemas de confiança: A pessoa afetada poderá sentir uma quebra de confiança diante da pessoa parceira, assim como traduzir-se em desconfiança e medo perante os outros;
Dificuldade em processar o luto: Uma das questões centrais do luto ambíguo é efetivamente a impossibilidade de encerramento da situação. A pessoa afetada fica emocionalmente paralisada, sentindo-se incapaz de avançar ou de seguir em frente, impedindo que o processo de cura e resolução aconteça.
O que podemos fazer para lidar com a situação de luto ambíguo na relação?
Às vezes, precisamos de respostas, de significados, para conseguirmos compreender e encerrar uma relação e seguir em frente. Mas diante da situação de luto ambíguo, é muito provável que nem sempre saibamos como o fazer e por isso a resolução torna-se bem mais complexa.
Viktor Frankl, psicoterapeuta e autor do livro O Homem em Busca de Um Sentido referia que o ser humano necessita de significado para encontrar a esperança, mas também de esperança para encontrar o seu significado, mesmo em situações extremamente adversas e dolorosas.
O autor e psicoterapeuta considerava que em situações complexas, quando já não somos capazes de mudar uma situação, somos então desafiados a mudarmo-nos, procurando o sentido e o significado da própria dor e sofrimento e a partir de uma decisão interior, poder escolher a vida e não desistir.
Por vezes, é a colocação das nossas perguntas e a procura pelos seus sentidos, significados e respostas, que nos permite ganhar maior compreensão e seguir em frente. Às vezes, um encerramento ou a resolução de uma ambiguidade poderá passar por procurar estes significados e respostas, e só então fechar e seguir num lugar de maior paz.
Não obstante, um casal distanciando, desconectado e a experienciar um luto ambíguo e profunda solidão, deverá procurar construir momentos de profunda abertura, honestidade e comunicação, com espaço para a partilha de emoções e sentimentos, sem acusações e escuta ativa.
Nesta comunicação, poderá ser importante o casal validar e legitimar a dor emocional provocada pelo distanciamento, reconhecer o seu impacto e procurar encontrar as causas, as respostas e os seus diversos sentidos e significados (por exemplo, que fatores externos e situações pessoais poderão ter impactado a ausência de comunicação sobre os sentimentos e perceções de ambos).
O casal poderá ainda procurar reavaliar a sua relação e tomar uma decisão consciente e ponderada com tempo e calma. Afinal, tantas vezes o final de uma relação não implica apenas o final de um casal, mas também de todas as consequências e implicações que poderá assumir: um projeto de vida, uma família, questões financeiras, os filhos quando existem, entre outros pontos relevantes.
Neste sentido, o casal e os seus elementos deverão evitar colocar uma pressão excessiva diante da decisão, refletir mediante uma comunicação aberta, abordando o problema de forma consciente e conjunta.
O ser humano necessita de respostas binárias e lineares, de modo a percecionar maior controlo e segurança. Contudo, nem sempre as respostas cabem num “sim” ou num “não”, num “fico” ou “saio”. Por vezes, os casais ficam presos em impasses e ambivalências. É legítimo e na verdade humano, existir bastante resistência emocional, devido ao forte vínculo que construímos com a pessoa parceira.
Reconexão: fazer de novo a relação brilhar
Muitas vezes olhamos para as relações como se fossem catos: resistentes, quase independentes, sobrevivendo longos períodos sem cuidado ou atenção, num deserto árido de cuidado, toque e ações. Esta visão afasta-nos da essência de uma conexão amorosa verdadeira e significativa.
Uma relação amorosa saudável é mais semelhante a uma planta vibrante e cheia de vida. Ela não prospera na negligência, na preguiça, no dado por garantido, mas na dedicação diária. Uma relação é uma troca contínua de energia, onde cada escolha, intenção, gesto, palavra e ação são um regador que alimenta as raízes do amor.
É no mais pequeno gesto que reside a solução para a reconexão. Nas pequenas coisas do dia a dia. Nos reencontros, nas separações, na gentileza, na curiosidade que se coloca diariamente em querer saber do outro, simplesmente porque nos interessamos. Consiste em procurar trazer de novo a energia erótica para a relação, mesmo quando esta não está associada à sexualidade.
A energia erótica expressa-se através da criatividade, no entusiasmo, na vitalidade que deveremos procurar promover dia após dia, sendo que à medida que o tempo de vida da relação progride, mais importante estes pequeninos gestos, atitudes e ações se tornam!
Trazer de novo a curiosidade para a relação e dirigida à nossa pessoa parceira, poderá ser uma semente que faz florescer a intimidade e é absolutamente um bálsamo contra a solidão e distanciamento emocional.