Mãos grandes e ossudas, unhas compridas em forma de garra, maquilhagem pesada, roupas austeras e um olhar malvado são as características que a Disney atribuiu à madrasta dos contos de fadas. Vemo-la assim representada nos filmes de animação branca de neve e os Sete Anões (1937) e Cinderela (1950), ambos clássicos do cinema que influenciaram o imaginário de muitas gerações.
“Ainda somos herdeiros da conotação negativa da madrasta como ‘a má da fita’”, confirma Inês Afonso marques, psicóloga clínica especializada em crianças e adolescentes. Parece inacreditável que os produtos culturais tenham tanto impacto na forma como os mais pequenos veem a esposa do pai, mas a verdade é que a ideia não só prevalece como poderá ser difícil de desenraizar.
“As madrastas são sempre vistas como uma ameaça; a outra, que não é a mãe”, explica Maria de Lurdes Candeias, pedopsiquiatra e terapeuta familiar. Ainda assim, a especialista acredita que essa visão tem vindo a mudar e atenuar-se com a evolução da sociedade e a maior aceitação dos novos conceitos de família.
Os primórdios do papel de madrasta
Portugal está bastante atrasado no que toca à dissolução do casamento e às transformações sociais que arrasta consigo comparativamente a outros países europeus – como França, que promulgou a primeira lei do divórcio no século XVIII. Em terras lusas, tivemos de esperar pela primeira república (1910) para os cônjuges se poderem separar legalmente.
Contudo, só na década de 1970 é que os casais infelizes começaram a fazer mais uso desse direito. Muito graças à sucessiva entrada das mulheres no mercado de trabalho, que lhes auferia um salário e uma maior autonomia. então, começaram a ver-se novas famílias: mulheres divorciadas e com filhos a casarem-se com homens divorciados e com filhos ou mulheres sem filhos a juntarem-se com homens que já tinham descendência de outro(s) relacionamento(s) e vice-versa. Embora tenha sido um desafio para ambos os sexos, na realidade, o papel de madrasta apresentava-se como mais exigente.
Os teus/os meus
“Se recuarmos 30 anos, a mulher ainda era vista como a cuidadora da família”, conta Maria de Lurdes Candeias. Nessa época, talvez fosse expectável que a madrasta tivesse um papel mais ativo na vida dos filhos do marido, o que pode justificar uma maior resistência da parte das crianças à mulher do pai e o surgimento de tensões e de conflitos. Porém, segundo a pedopsiquiatra e terapeuta familiar, “deram-se mudanças tremendas na sociedade, com os desenvolvimentos tecnológicos e o aparecimento da Internet; nos casais mais recentes e nas famílias reorganizadas, tanto pode ser cuidador o pai como a mãe”.
Será que o atrito no seio de núcleos familiares reconstituídos terá tendência a diminuir como consequência dessas alterações? o que acontece, nas palavras da psicóloga clínica Inês Afonso marques, é que “as expectativas sociais são mais flexíveis do que há uns anos”. mas não é por estas novas famílias serem cada vez mais comuns que as transformações na sua dinâmica funcional são facilmente aceites e adotadas.
“Quando duas pessoas se apaixonam e uma delas tem filhos de relações passadas, na minha experiência, a maioria não pensa em fatores importantíssimos como a pensão de alimentos (que vai diminuir o rendimento do novo casal), os fins de semana e as férias (que acarretam encargos e responsabilidades). Muitas vezes, são as crianças e os adolescentes que acabam por levar com a má-disposição que estas coisas por vezes originam”, critica Maria de Lurdes Candeias.
E os nossos?
Ninguém sonha ser madrasta. Pode passar pela cabeça só pelo facto de hoje em dia os relacionamentos amorosos terem uma duração mais curta do que nas gerações anteriores. Contudo, não faz parte dos planos de nenhuma mulher. e, mesmo gostando-se muito do parceiro, se ele tiver filhos de outras relações e a mulher não, a pedopsiquiatra e terapeuta familiar aconselha-a a refletir bem naquilo que deseja para a sua vida – sobretudo se as crianças ainda estiverem na primeira infância: “É uma situação tão complicada que requer muita ponderação. Facilmente se passa por bruxa má nos primeiros anos, com as noites mal dormidas e as fraldas…”.
Em alguns casos, quando os filhos do marido são bebés, a mulher pode ter dificuldade em manter um distanciamento emocional de segurança. Todavia, Maria de Lurdes Candeias adverte para o perigo de se cair no erro de se assumir um papel que não é seu: “A criança tem mãe. mais tarde ou mais cedo, vai cobrar essa tentativa de substituição. Até pode ter uma relação ótima com a madrasta ao longo da vida, mas uma coisa é a mãe e outra é a mulher do pai”.
O dom da palavra
Geralmente, quanto mais idade tiverem os filhos do parceiro, mais complicado será para a madrasta. “Uma criança pequenina não vai questionar tanto, mas um adolescente poderá desafiar mais, principalmente, porque a forma como se expressa e comunica é completamente diferente e terá mais memórias da sua família de origem e das rotinas”, avisa
a psicóloga clínica Inês Afonso marques. o desenvolvimento emocional, cognitivo e da linguagem dos mais novos acaba por influenciar, de certa forma, o relacionamento com a figura feminina que agora partilha o dia a dia com o pai. “Tenho uma paciente cujos pais se divorciaram quando ela era pré-adolescente. A mãe era uma pessoa tolerante e relaxada
e o pai juntou-se com uma mulher muito formal, cheia de regras. e a minha paciente hostilizava a madrasta, era antipática para ela. É a própria que o reconhece. Há crianças que não suportam a separação dos pais, a desfragmentação da família, independentemente das circunstâncias. não tem nada a ver com a madrasta, mas elas vão fazer-lhe a vida negra, por assim dizer”, relata maria de Lurdes Candeias.
Harmonia delicada
Cabe aos pais orientar essa fase de ajustamento, preparando os filhos para a situação. os progenitores devem perceber que, quanto mais conflituoso for o processo de divórcio, mais acabará por se refletir no relacionamento dos seus filhos com a nova parceira. Igualmente, se as famílias de origem do casal inicial – os avós e tios das crianças – contribuírem de forma positiva, tanto melhor. Isto é, sem explorarem as questões que levaram os pais a separarem-se, sem denegrirem qualquer um dos elementos da antiga relação e sem antagonizarem as crianças contra a nova parceira do pai.
“Há famílias de origem que têm boas relações com as ex-companheiras dos filhos e que dão apoio incondicional, outras não dão apoio nenhum. Tudo isto vai interferir nas relações das crianças com as madrastas”, declara a pedopsiquiatra e terapeuta familiar.
Papel ativo
No quotidiano, a madrasta pode ter um papel ativo em muitas questões da vida dos enteados: “o horário de acordar, das refeições, dos banhos, de dormir, a hora de chegar a casa, as tarefas que há para fazer (se a criança já tiver idade para isso), etc.”, enumera Maria de Lurdes Candeias.
Regras que são necessárias para o bom funcionamento da casa e inter-relacionamento dos seus habitantes. E também participa, de forma mais direta ou indireta, na educação dos enteados. “Pode acompanhá-los no momento de estudo e dar a sua opinião em relação à escolha do percurso académico”, refere Inês Afonso marques. As situações de mau comportamento é que a especialista diz que “devem ser geridas pelos pais – a madrasta pode não concordar, mas nunca deve desautorizar o parceiro na presença da criança”.
Leituras obrigatória
Pais e filhos podem beneficiar ao lerem estes livros, no sentido de facilitar a fase de ajustamento e aumentar a empatia dos elementos por todas as partes.
Porque é que já não vivemos todos Juntos?
Emma Waddington e Christopher McCurry, 9,27€
Agora Tenho Duas Casas
Lúcia Bragrança Paulino, 4€
Vida Dupla – Ser Filho de Pais Separados
Karen Buscemi, 11,99€
Queremos Melhores Pais!
Eduardo Sá, 14,90€
Conhece alguém no papel de madrasta? Conheça ainda os prós e contras da residência alternada dos filhos.