Os primeiros anos de vida de um bebé são fundamentais. Saiba porquê
A forma como o bebé é tratado nos três anos iniciais de vida dita, muitas vezes, o seu futuro. O carinho, o estímulo e as respostas dos cuidadores de referência, geralmente os pais, são fundamentais para o desenvolvimento cognitivo, da empatia, da confiança e do bem-estar dos mais pequenos.
Nos últimos anos, a ciência tem demonstrado que o cérebro se desenvolve a um ritmo intenso e irrepetível nos primeiros mil dias de vida, ou seja, a forma como são tratados física e emocionalmente nos três primeiros anos de vida dita muito daquilo que os bebés serão no futuro.
Portanto, o vínculo criado com os pais ou outros cuidadores de referência é fundamental para o bem-estar dos mais pequenos. Mas será que a sociedade dá a devida atenção a este tema? Parece que não e porque é urgente agir, a Fundação Nossa Senhora do Bom Sucesso, organização que atua na área da saúde e do desenvolvimento, resolveu avançar com a campanha europeia Primeiros Anos a Nossa Prioridade, que está a decorrer em simultâneo em oito países do Velho Continente.
A importância do vínculo
Mas voltemos à ciência. Como nos diz Fernanda Salvaterra, psicóloga, professora no ISPA e investigadora no Instituto de Apoio à Criança, “a capacidade que o bebé tem de construir relações próximas com o seu prestador de cuidados tem sido objeto de um grande número de investigações, sobretudo, na área da psicologia do desenvolvimento, que mostram que o bebé já nasce com essa habilidade”.
O vínculo criado é, assim, de extrema importância. “Podemos definir vinculação como a relação emocional próxima entre duas pessoas, que é caracterizada pelo afeto mútuo e pelo desejo de manter a proximidade. No caso dos bebés, o objeto dessa vinculação é a pessoa que lhe presta cuidados, na maioria das vezes, a mãe, que retribui os sentimentos da criança, criando-se assim laços fortes nos dois sentidos – mãe-bebé e bebé-mãe. Essa ligação caracteriza-se pela procura de proximidade física, conforto e segurança”, continua a psicóloga, que realça ainda que essa vinculação pode ser segura quando os pais são sensitivos e responsivos, ou insegura, quando há negligência.
“Sabe-se ainda que os bebés apreciam a companhia humana e reagem à interação social desde os primeiros dias de vida, que se acalmam quando são pegados ao colo ou acariciados e, ao [1]m de poucas semanas, quando falam com eles, já reagem, balbuciando e sorrindo”, sublinha Fernanda Salvaterra.
Amor de mãe
Emílio Salgueiro, psiquiatra, psicanalista e professor nas faculdades de Medicina e de Motricidade Humana, da Universidade de Lisboa, assegura que, “quando tudo corre bem, esse vínculo estabelece-se naturalmente com os familiares mais próximos, sobretudo com a mãe e o pai, tendo a primeira alguma primazia. Quer a mãe quer o bebé têm uma espécie de preparação genética para esse vínculo, que pode não ser imediato, mas geralmente é muito rápido. Algures entre as três primeiras semanas, o entendimento entre ambos é muito especial, a ponto de eu lhe chamar paixão e amor-mútuo”.
Essa ligação está muito associada, realça o professor universitário, aos neurónios-espelho. No entanto, como diz o psiquiatra, “pode não acontecer pelas mais variadíssimas razões, desde a ausência ou desinteresse da mãe a doenças da progenitora ou do bebé”.
Nesses casos, diz Fernanda Salvaterra, “o papel do pai torna-se mais preponderante e, caso esta figura também não exista, essa importância passa para a figura de um cuidador”. Emílio Salgueiro considera ainda importantes “os vínculos criados com os avós e com os irmãos mais velhos”.
Mais do que sobrevivência
Esta proximidade do bebé com os familiares ou com as figuras que lhes prestam apoio é essencial, não só do ponto de vista de sobrevivência, pois precisa de ser alimentado, cuidado e protegido do perigo, mas também do ponto de vista da aprendizagem sobre o meio e interação social. “Quando o bebé se sente protegido, consegue aprender, brincar, explorar o meio onde se encontra, ou seja, desenvolve-se física e cognitivamente. Já quando experimenta de forma contínua grandes padrões de ansiedade devido a negligência ou maus-tratos, dispõe de menos tempo e menos energia para obter os benefícios do tal comportamento exploratório e isso terá consequências no seu desenvolvimento”, realça a psicóloga.
A mesma opinião tem Emílio Salgueiro, que garante que “a ausência de uma figura cuidadora próxima tem implicações no sistema nervoso central do bebé e tem consequências a nível social e cognitivo a curto e longo prazo”.
Perante uma situação de perigo, doença, fome ou medo, o bebé ativa o comportamento de vinculação e, se obtém respostas, aprende a confiar nos adultos. “Esse padrão vai ser muito importante na formação da sua personalidade e nas relações que irá estabelecer ao longo da vida, entre as quais as amorosas. Bebés que se sentiram protegidos serão adultos que confiam nos outros; já os que têm experiências adversas e cuidados inconstantes e negligentes tendem a não confiar. Isso faz com que desenvolvam uma vinculação evitante e insegura, porque nunca sabem o que esperar do outro lado e aprendem a dispensar esses cuidados”.
Mimo nunca é de mais
Relações carinhosas, estimulantes e consistentes entre pais ou cuidadores e bebés são, portanto, fundamentais para o bem-estar e para o desenvolvimento da empatia e da confiança. E há um ambiente ideal para a criação do vínculo? “Os filhos não vêm com livros de instruções e, muitas vezes, a forma como cuidamos deles está associada ao modelo que temos dos nossos pais”, responde Emílio Salgueiro.
O importante, sublinha Fernanda Salvaterra, “é a sensitividade e a responsividade, ou seja, é estar atento aos sinais da criança e responder-lhe da forma mais adequada a cada momento. O vínculo é diferente de família para família, mas, se a qualidade da prestação de cuidados for boa – e não estamos a falar de ter mais ou menos coisas ou de fatores económicos, mas sim da capacidade de amar, dar afeto e perceber o que a criança necessita –, o bebé vai crescer sentindo-se seguro e vai-se autonomizando”. E o mimo a mais, pode ou não ser prejudicial? “Não, mas claro que, além do mimo, têm de existir regras e rotinas, até porque estas também dão segurança,” refere a psicóloga.
Alicerces para a vida
Fernanda Salvaterra lembra que as estatísticas indicam que 60 a 70% das crianças crescem num ambiente seguro, mas as restantes não, faltando-lhes segurança, amor e até as figuras de referência, e isso é comum em famílias negligentes e nos casos de crianças institucionalizadas.
“Num processo de adoção, é comum, por mais que a família seja sensível e responsiva, a criança demorar algum tempo a confiar nos outros e a sentir-se confortável, porque não foi esse o modelo que conheceu. Mas isso não quer dizer que uma criança que tenha sido maltratada ou negligenciada na primeira infância não consiga, depois, criar um vínculo se encontrar adultos cuidadores”, ressalva a psicóloga e investigadora. Posto tudo isto, não é de estranhar que a Fundação Nossa Senhora do Bom Sucesso, como referimos no início do artigo, esteja a promover a campanha Primeiros Anos a Nossa Prioridade, em parceria com 23 organizações portuguesas que atuam na área infantil.
“Em Portugal, ainda existe uma grande distância entre o que a ciência já demonstrou e o que são as políticas e as práticas”, diz Paula Nanita, diretora executiva da fundação, que lembra que “aos 3 anos, 80% do nosso cérebro já está estruturado”.
Assim, continua, “durante o resto da vida, estamos a complementar a arquitetura feita naquele período. Essa arquitetura cerebral é muito influenciada pelo ambiente de cuidado, de proteção, de estimulação e de amor incondicional que nos deram (ou não) nesse período em que estamos tão dependentes dos outros e em que criamos muitos dos nossos fundamentos como pessoas. É muito importante apostar num bom início de vida para todas as crianças. Para que isso aconteça, contribui muito o ambiente familiar. No entanto, as famílias também precisam que a sociedade respeite isso e lhes dê condições para cuidar de um bebé para que possa ser uma pessoa feliz e completa ao longo de toda a sua vida”.