Crónica. Como navegar uma relação não-monogâmica consentida de forma emocionalmente segura
Contaram-nos a história de um amor romântico entre um homem e uma mulher, da sorte de encontrar a “o tal” que nos faz feliz para a vida inteira, desde que somos crianças. Mas nem sempre a vida é linear. As pessoas e as relações amorosas não o são certamente: são fruto de uma complexidade incrivelmente interessante, assim como o mundo à nossa volta.
As últimas décadas têm sido um tremendo período de mudanças perante o que surge como pré-estabelecido e normalizado aos olhos da sociedade.
Grupos considerados minoritários – e tantas vezes marginalizados – começam agora a ganhar um olhar mais atento e justo diante dos seus direitos. Até agora, foram muitos aqueles que sacrificaram a sua segurança pessoal, liberdade e até as suas vidas por um bem coletivo de justiça, reconhecimento e normalidade.
Cada vez mais, deparamo-nos com a escolha ainda corajosa daqueles que arriscam ao assumir o seu caminho de forma autêntica, os seus valores e a sua identidade, sustentando uma profunda transformação social, a que todos assistimos. Afinal, são inúmeras as formas de ser amor e família.
Monogamia vs não-monogamia consensual
A monogamia continua a ser o modelo dominante de se ser e viver o amor e as relações. Como Esther Perel provocadoramente nos recorda, a monogamia costumava ser uma relação para a vida.
Contudo, nos nossos dias, tende a ser uma relação vivida de cada vez, o que nos faz questionar efetivamente sobre este conceito e a complexidade das relações humanas.
Já a não-monogamia consensual é absolutamente distinta de uma infidelidade. Consiste na prática de ter, simultaneamente, múltiplos parceiros sexuais ou românticos, em que todos os envolvidos estão conscientes e consentem a estrutura da sua relação.
Estas são relações que privilegiam e cultivam valores como:
- transparência;
- consentimento;
- existência de uma comunicação aberta e honesta;
- responsabilidade pessoal e afetiva diante da relação;
- autonomia dos seus elementos;
- compaixão perante estes;
- positividade sexual;
- liberdade pessoal e dos outros, considerando, por isso, que o amor não consiste num lugar de posse ou controlo, em que é possível sentir atração por mais do que uma pessoa ao mesmo tempo.
Os elementos que consideram a não monogamia consensual não só como uma forma de vida, mas como uma parte da sua identidade e, portanto, presente no seu processo de individuação, defendem a existência de múltiplas formas do amor, do sexo e da intimidade, procurando construir relações conectadas de forma consciente com os diferentes elementos.
Neste sentido, emoções, sentimentos e desafios relacionais tendem a não ser evitados ou mesmo até receados, mas sim considerados atentamente para resolução pelos seus elementos.
Isto é verdadeiramente interessante, uma vez que tantas vezes se distancia da reflexão e mesmo até da tentativa de trazer maior consciência para a relação que assistimos em consulta por casais monogâmicos.
Não obstante, o mesmo não significa que, frequentemente, os pacientes que nos chegam ao consultório e que decidem abrir a relação, não se sintam, por vezes, inseguros e perdidos em como o fazer, de modo a navegar a relação construindo sentimentos de segurança entre os elementos. E este tende a ser muitas vezes o verdadeiro desafio!
A vinculação e as relações não-monogâmicas
A teoria da vinculação considera que uma vinculação saudável é construída na base de uma relação diádica.
Deste modo, a literatura vai muitas vezes no sentido de considerar que um vínculo seguro na idade adulta consiste num par diádico que cria uma bolha à sua volta, de modo a construir segurança emocional para a relação. Assim, o outro elemento necessitaria de ser “o tal”, perante o qual iremos depender emocionalmente.
A literatura e investigação cientifica (realizada maioritariamente com casais monogâmicos) e extremamente reduzida, ainda vai no sentido de considerar comportamentos como o sexo casual, o sexo de uma noite, o sexo fora do casamento, a existência de múltiplos parceiros sexuais, o voyerismo, o sexting, como comportamentos associados a uma vinculação insegura.
Neste sentido, sendo estes alguns comportamentos adotados por pessoas que praticam a não-monogamia consensual, este aspeto representaria uma expressão de uma vinculação insegura (o que diariamente vemos em consulta que não corresponde necessariamente à verdade).
Assim, poderemos considerar que, quando elementos têm múltiplos parceiros de forma a evitar a intimidade quando se sentem inseguros, então nesses casos, sim, esses comportamentos poderão ser uma expressão de uma vinculação insegura.
Contudo, na maioria das relações não-monogâmicas consentidas, esses comportamentos advém de um lugar seguro, consentido, intencional, sintonizado e conectado com os outros elementos.
A literatura começa a concluir que não existem diferenças nos níveis de ansiedade e insegurança na vinculação entre parceiros monogâmicos, swingers ou em relações de poliamor e alguns estudos afirmam ainda a existência de maiores níveis de segurança de vínculo nestas relações com os seus parceiros.
De forma semelhante, tal como uma criança poderá apresentar uma vinculação segura com um dos seus cuidadores em simultaneamente, uma insegura com o outro, também nas relações não-monogâmicas consentidas se verifica a possibilidade de um elemento apresentar diferentes padrões de vinculação com os seus diferentes parceiros, sendo algo independente entre cada um destes.
Como uma vinculação segura poderá ajudar os casais não-monogâmicos
A construção de uma vinculação segura é um caminho possível para todas as pessoas, independentemente da orientação sexual ou da forma de experienciar a intimidade emocional e sexual.
Tal como um casal monogâmico, os casais não-monogâmicos podem usufruir positivamente da construção de uma comunicação aberta e honesta, estabelecendo vínculos de maior confiança entre si, tornando-se mais capazes de navegar os conflitos perante as mudanças tão desejadas e necessárias.
Desta forma, também o ciúme (que poderá ser um desafio nas relações não-monogâmicas consensuais), poderá transformar-se numa gigante oportunidade de aprofundar a relação, aumentar a clareza, o entendimento e a conexão, sem danificar o vínculo.
Seja como for, é possível construir um vínculo seguro com múltiplos parceiros e, ao mesmo tempo, equilibrar a segurança interna.
Assim, torna-se capaz de navegar a insegurança, o medo ou a confusão eventualmente presente nas relações não-monogâmicas, à medida que aumenta a complexidade e incerteza possível nas relações com múltiplos parceiros.
Neste sentido, é importante trabalhar e aprofundar um vínculo seguro consigo próprio e também com os múltiplos parceiros.
Não obstante, abrir a relação a múltiplos parceiros poderá ser um momento bastante vulnerável e confuso, em que os elementos poderão nem sempre compreender qual a maneira de o fazer, sem colocar as relações em risco e insegurança.
Afinal, a não-monogamia consensual poderá, por vezes, replicar algumas condições presentes em vínculos inseguros, confrontando os seus elementos com situações que ativam o sistema primário de pânico mediante a perceção de ameaça e perigo.
De modo a que os elementos se sintam seguros emocionalmente numa relação, necessitam de saber e sentir que os seus parceiros estão lá na relação para si, que podem contar emocionalmente com eles, existindo um determinado nível de compromisso e responsabilidade afetiva em estar na relação.
Isto é: de modo a construir uma base segura diante da relação com os seus múltiplos parceiros, os elementos devem procurar ser um refúgio uns para os outros, perguntando:
- “Se eu precisar de ti, estarás lá para mim?”,
- “Poderás receber-me e aceitar-me, em vez de criticar-me, julgar-me ou evitar-me?”,
- “Poderás confortar-me?”,
- “Poderás responder-me de uma maneira que acalma o meu sistema nervoso?”,
- “Eu importo para ti?”,
- “Faço alguma diferença na tua vida?”.
Devem ser também uma base segura uns para os outros e, nomeadamente:
- Encorajar o crescimento e desenvolvimento pessoal uns dos outros,
- Apoiar o trabalho e os interesses uns dos outros,
- Promover a escuta ativa perante as preocupações, desejos e necessidades dos uns dos outros,
- Escutar quando os seus parceiros partilham as suas experiências nas outras relações (assumindo que as informações partilhadas são apropriadas e consentidas),
- Permitir-se terem conversas sobre coisas intelectual e emocionalmente estimulantes uns para os outros,
- Reconhecer a capacidade de todos terem a possibilidade de crescer emocionalmente,
- Ser compassivo diante das limitações dos seus parceiros).
Ser “Poli-seguro”
A base dos elementos da relação serem “poli-seguros” passa por se tornarem num porto de abrigo e numa base segura uns para os outros.
Contudo, existem alguns pontos específicos que poderão ser trabalhados na relação, de modo a cultivar a sua polisegurança.
A literatura sugere que poderá pensar na palavra HEART, que traz em si os diferentes componentes, ingredientes, competências, capacidades e formas de ser e de se mostrar na relação. Assim, poderão ser:
• H = Here (Aqui): Reclama a necessidade em estar aqui e agora, presente e consciente na relação com os diferentes elementos. Como poderemos nós seres humanos vincularmo-nos a alguém que não está aqui, que não sentimos emocionalmente presentes connosco?
• E = Expressed Delight: Orienta para a importância de expressar alegria e satisfação diante dos parceiros por tudo aquilo que fazem juntos e constroem, mas igualmente por tudo aquilo que aqueles parceiros são na realidade. Poderemos expressar esta satisfação e reconhecimento através de palavras, ações e gestos, do nosso toque e da forma como olhamos o outro e o fazemos sentir visto, acarinhado, reconhecido e amado.
• A = Attunement: Relembra-nos a importância de se sintonizar emocionalmente com os parceiros, numa tentativa curiosa de realmente compreender as suas necessidades, valores, perspetiva, desejos, crenças, etc;
• R = Rituals e Routines: Reclama a importância para a presença e construção de rituais e rotinas progressivas e, passo a passo, permitir a construção de um sentimento de segurança e previsibilidade de todos os elementos. O nosso sistema de vinculação é extremamente sensível a partidas e afastamentos abruptos, podendo percecionar como uma ameaça que suscitará o sentimento de insegurança na relação;
• T = Turning Towards After Conflit: Em todas as relações assistimos a momentos de Conexão-Desconexão, mesmo quando temos a intenção de ser verdadeiramente atentos e responsivos aos outros. Quando o conflito acontece, torna-se importante saber como reparar a desconexão sentida, de modo a reconstruir o sentimento de um vínculo seguro e resiliência, além de estabilidade emocional da relação.
A diversidade daquilo que somos e de tudo o que sentimos tem conduzido a que inúmeras pessoas comecem por refletir e explorar os seus valores, alternativas e a forma mais consciente, honesta e clara em como poderão dar resposta a tudo aquilo que são autenticamente, sem se sentirem limitados por tudo aquilo que a sociedade se foi habituando a apontar como sendo a norma e o certo e até penalizando e discriminando.
Neste sentido, não será um excelente exemplo de como as relações devem de facto se tornar mais conscientes? Poderem ser verdadeiramente pensadas e melhor investidas pelos seus elementos com um sentido de todo e sem perder a visão de unidade?