Relações e família

Crónica. A dor da desesperança

E o que acontece em nós, quando olhamos à volta e tudo nos entristece?

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Crónica. A dor da desesperança Crónica. A dor da desesperança
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Sílvia Coutinho, psicóloga
Escrito por
Nov. 08, 2023

Há momentos da nossa vida em que parece que entramos num longo e profundo inverno. Os dias são escuros e pesados. Sombrios. O sol, definitivamente, não espreita.

A desesperança apodera-se de nós e as nossas pernas parecem perder a força para continuar a caminhar. Adormecidos. Dormentes. Apáticos. Tantas vezes deprimidos.

Tudo ecoa dentro de nós de uma forma ensurdecedora. Ruminando ou simplesmente colocando-nos a sentir a dor da tristeza e da desesperança. O passado que existiu e nos marcou. O presente que nos parece engolir e impedir o futuro sonhado.

A desesperança que surge como uma erva daninha venenosa que nos amarra e nos impede de acreditar. Que nos corrói e destrói por dentro.

Lembramo-nos dos gritos. Das dores. Do vazio. Da impotência. Do abandono. Das coisas que deixaram de florescer.

A vida chega e, no presente, parece que nos derruba, quando poderíamos levitar. As forças que procuramos reerguer das batalhas quase vencidas parecem mais não se fazer sentir.

Um mundo caótico

Como voltar a confiar em nós, nos outros, na humanidade, quando levantamos os olhos a custo e esbarramos de frente com terror e ameaça?

É neste lugar onde estão muitos de nós. A procurar olhar de frente para o que é impossível não nos ser indiferente.

São inúmeras as pessoas que, em consulta, nos falam cada vez mais da desesperança trazida pela ausência de humanidade da guerra, das suas condições de vida que se extremam, das casas portos-seguro e da perceção de integridade que se lhes escapam.
Sílvia Coutinho, psicóloga Sílvia Coutinho, psicóloga

Arregalamos os olhos e, a muito custo, vemos a dor de outros humanos, como nós, a perder vidas e amores como os nossos, filhos amados na maior das inteirezas da alma, tal como nós, a sentir a impotência, o temor, o trauma, o abandono que nunca esperamos ter de viver e sentir na pele, mas que igualmente nos apanha e entorpece devido a uma noção maior de nós mesmos e que nos constitui.

A nossa humanidade. Somos todos iguais. Feitos de uma mesma humanidade que, quando olhamos para o lado, parece estar em vias de extinção.

Dói-nos a alma, a muitos de nós, pelo que se sucede na vida de outros. Dos que estão mais longe, dos que estão mais perto de nós.

O impacto do medo

São inúmeras as pessoas que, em consulta, nos falam cada vez mais da desesperança trazida pela ausência de humanidade da guerra, das suas condições de vida que se extremam, das casas portos-seguro e da perceção de integridade que se lhes escapam.

Sobra a ausência de saúde mental. É impossível ter saúde mental, quando não percecionamos segurança e estabilidade à nossa volta.

É impossível construirmos relações saudáveis, quando estamos em modo sobrevivência a procurar extinguir todos os focos de stresse, perigo e ameaça da nossa vida.

Não pode existir paz, segurança e relaxamento, quando sentimos gatilhos de ameaça a serem ativados diariamente e que nos mantêm em alerta.

É impossível vivermos todos num mundo melhor, mais justo, saudável ou humano, quando as pessoas sentem a agressividade, frustração, tristeza e irritabilidade latente uns dos outros, no seu dia-a-dia.

Está em falta a esperança, a segurança emocional, a saúde mental, a empatia e a compaixão de uma forma geral.

A dor da desesperança

A desesperança surge quando acreditamos que estamos presos a situações que são sentidas como intoleráveis e perante as quais sentimos que nada podemos fazer para mudar, resultando num estado de total falta de esperança.

Este sentimento de desesperança, pode ainda ser traduzido perante um pessimismo face ao futuro, da inexistência de possibilidades ou caminhos que possamos fazer em direção a algo melhor. Um lugar perigoso de dor, tristeza, desânimo e impotência, podendo ser marcado pela ausência de sentido ou propósito.

Muitas vezes, este lugar vai ocupando o seu espaço decorrente de pensamentos que surgem face ao confronto com aquilo que é doloroso, pensamentos estes absolutamente negativos, assoberbantes de vazio e de impossibilidade que nos ocupam na totalidade e nos esmagam.

São muitas vezes de tal forma intensos que exponenciam a sensação de desesperança, angústia e desespero.

Fazemos o nosso caminho pelo mundo, através da nossa humanidade, das nossas emoções, mais ou menos confortáveis.

Assumir o sentimento

A desesperança é um dos sentimentos que em determinadas situações da nossa vida nos poderá acompanhar. É um sentimento tão válido e legítimo como outro qualquer.

Por ser desconfortável, muitos de nós evitam entrar em contacto com este sentimento, procurando ignorá-lo ou evitá-lo.

Não somos a desesperança, apenas nos sentimos presentemente desesperançados.
Sílvia Coutinho, psicóloga Sílvia Coutinho, psicóloga

Contudo, para lidar com a desesperança, poderemos ter de nos permitir vulnerabilizar e reconhecer que este é o sentimento que tem feito parte dos nossos dias. Que é o lugar que temos visitado com alguma regularidade recentemente.

Apenas quando nos permitimos sentir a tristeza ou a desesperança, tornamo-nos mais capazes de olhar para nós mesmos, de nos observarmos na situação de tristeza e desesperança e sermos então mais capazes de retomar a consciência que é um sentimento temporário, um visitante que nos veio fazer companhia, mas que não faz parte da pessoa que somos e da nossa identidade.

Não somos a desesperança, apenas nos sentimos presentemente desesperançados. Não somos o inverno, estamos apenas a sentir um dia cinzento de chuva.

Contudo, estes sentimentos poderão ser tão desesperantes e cortantes que, ao se instalarem de forma mais permanente, poderão empurrar-nos para o lugar vazio e inóspito da depressão.

Enfrentar o sofrimento

O ser humano tem a maior das capacidades de criar, transformar, construir símbolos e significados, atribuindo beleza, cultura, arte e poesia à dor e ao sofrimento que acompanham a condição humana, desde o início dos tempos, pela necessidade de ressignificar e reprocessar o que nos entorpece e magoa, o que nos desalenta e congela.

Esta é uma das formas de expressão da nossa resiliência e, igualmente, da nossa humanidade, da nossa força que nos impele a que, diante da mais tenebrosa das tempestades, nos motivemos a reerguer em direção ao sol, à luz ou à paz.

O sofrimento faz parte da condição humana, como um túnel escuro que sabemos que, mais cedo ou mais tarde, possamos sempre ser convidados a atravessar. Um túnel escuro, mas que nos poderá permitir igualmente reencontrar a luz.

Um túnel que não deverá ser encarado como uma desgraça fatal da nossa existência, que nos retira tudo o que nos possa ligar à vida, mas um túnel escuro que necessita de nós com coragem e determinação para olhá-lo de frente, ressignificá-lo e devolver-lhe novas respostas éticas, de valor e de propósito que nos liguem de novo à nossa existência.

O sofrimento como uma condição de vida

Neste sentido, a desesperança surgirá sempre associada ao sofrimento com ausência de sentido e propósito.

Desta forma, quando procuramos encontrar um sentido no meio das adversidades, mais facilmente conseguiremos ressignificar a maior das tragédias em potencial de realização ou mesmo de superação, podendo-nos, por isso, conduzir a uma melhor versão de nós mesmos.

Uma versão humana vulnerável que ruma a uma maior coesão e solidez interna, ao se impor com coragem e fé perante aquilo que nos poderia fragilizar.

O sofrimento faz parte da nossa condição de vida, enquanto humanos, assim como a escolha da nossa atitude perante as dificuldades da nossa vida.

Há sempre algo que possamos escolher transformar, nem que seja a lente com que possamos olhar para as adversidades.

Somos o que decidimos fazer agora com o que nos aconteceu. Somos quem escolhemos ser diante das maiores adversidades com que a vida nos confronta.
Sílvia Coutinho, psicóloga Sílvia Coutinho, psicóloga

Existe uma parte de nós que depende unicamente de nós; de não baixar os braços, de não nos permitirmos desumanizar, de não nos permitirmos desacreditar que a vida continua e sempre continuará a ter um mundo infinito de possibilidades.

E são tantas quantas aquelas a que nos propusermos fazer com responsabilidade para transformar as piores das circunstâncias e agir em conformidade, confrontando-nos assim com a importância das nossas escolhas.

O que escolhemos fazer diante daquilo que nos entorpece e desespera, procura-nos recordar que não somos o que nos aconteceu ou o que nos está a acontecer. Somos mais. Somos sempre mais.

Somos o que decidimos fazer agora com o que nos aconteceu. Somos quem escolhemos ser diante das maiores adversidades com que a vida nos confronta.

Escolhemos sobreviver, nos dias e na vida, adormecidos e apáticos às circunstâncias difíceis ou escolhemos viver a vida, com vida, e, no mundo, com um propósito em nós diante das circunstâncias difíceis?

Qual é o seu propósito?

Todos nós encaramos a vida com uma lente muito própria. Todos temos um porquê, um sentido, uma razão muito forte e única que nos mantém ligados à vida e à nossa existência: os nossos valores pessoais, as nossas crenças, os nossos sonhos, as nossas pessoas que amamos.

Tudo isto poderá ressurgir vezes e vezes sem conta como o nosso farol. Afinal, é o que dá sentido a cada passo que damos, em cada manhã que acordamos, mesmo quando nem sempre as condições da nossa existência possam ser alteradas.

Escolher continuar a caminhar em frente, erguendo e reerguendo vezes e vezes sem conta, não é fácil. É, tantas vezes, um caminho solitário e desesperante.

Tantas vezes, na travessia do túnel, sentimos que o propósito pode ter deixado de existir ou se ter silenciado.

Esperança no amanhã

Talvez o grande propósito possa ser, agora, não evitar a dor ou encontrar rapidamente o que nos faz sentir bem, mas, sim, encontrar efetivamente o sentido e a razão da nossa vida e da nossa caminhada.

Por vezes, a nossa vida pode ter deixado de ter o mesmo sentido, convidando-nos a criar novos significados, propósitos, caminhos e possibilidades para continuarmos.

São estes propósitos que nos permitem continuar a perspetivar a existência de um novo amanhã, de novas possibilidades. São eles que nos enchem de esperança e nos mantêm de pés firmes ou prontíssimos para caminhar, com os olhos postos, com confiança, num futuro que chegará ou que nós criaremos, pedra sobre pedra.

Ancorarmo-nos no nosso propósito, no nosso sentido de tudo ou na nossa fé poderá vestir-nos da robustez emocional que necessitamos para chegar ao outro lado do túnel escuro e sentirmos finalmente a luz e o verão entrar em nós.

Como Viktor Frankl (reconhecido psicoterapeuta e escritor que esteve preso num campo de concentração nazi durante a segunda guerra mundial) nos ensinou, “sempre, e em toda a parte, a pessoa está colocada diante da decisão de transformar a sua situação de mero sofrimento, numa produção de valores”.

Neste sentido, “quando a situação for boa, desfrute-a. Quando a situação for má, transforme-a. Quando a situação não puder ser transformada, transforme-se”.

Diante de tanta desumanidade e sofrimento que nos invade, fica o convite e reflexão a que nos possamos transformar e com isto transformar as circunstâncias e o mundo que nos enchem o peito de tamanha desesperança e dor.

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