Não é marketing. Não é publicidade. Não é um “chavão”. Mais do que um tema de conversa, a sustentabilidade é uma preocupação real e genuína do restaurante Pesca, um dos mais recentes no bairro do Príncipe Real, em Lisboa. Na cozinha está o chef Diogo Noronha.
Foi com ele que, durante cerca de uma hora, a Saber Viver conversou desta nova etapa da sua carreira, que marca a concretização de um desejo que tinha há muito: abrir um restaurante dedicado aos sabores do mar. Com 38 anos, a trabalhar na área há 16, Diogo Noronha assume o novo projeto como parte integrante do compromisso que estabeleceu ainda na adolescência: respeitar o Planeta, os animais, lutar contra o desperdício e valorizar a natureza, a terra e tudo o que dela nasce.
O contributo de Diogo Noronha, numa altura em que não restam dúvidas que a indústria alimentar é uma das grandes responsáveis pela degradação do estado do Planeta, é este: um restaurante de cozinha de autor que tenta ser o mais sustentável possível. O conceito materializa-se pelo modo de funcionamento da cozinha e do bar – chefiado por Fernão Gonçalves -, que contam com uma carta sazonal, fornecedores e ingredientes locais, criteriosamente selecionados, e o menor desperdício possível. E há diversos outros pormenores do próprio espaço que não foram deixados ao acaso: o chão feito de mosaico hidráulico, as madeiras das mesas ou balcão, fruto do reaproveitamento da demolição de um prédio pombalino, os guardanapos no bar, ou, na casa de banho, o gel biológico para lavar as mãos.
Entrevista a Diogo Noronha
Quais são os sabores da sua infância?
Cresci com duas avós que cozinhavam muito bem e de maneiras muito diferentes. Com a minha avó paterna era cozinha mais portuguesa, mais tradicional, um pouco transmontana – apesar de não ser transmontana, estava sempre uma senhora em casa dela que era. Era uma casa com mais fartura e abundância. Os meus avós maternos, como viveram muitos anos em África e nos Estados Unidos, tinham uma influência mais internacional, com algum requinte até. Depois, o facto de ter vivido em Macau até aos 4 anos, fez com que tivesse uma alimentação muito variada até aos 17.
Essa foi a idade em que decidiu tornar-se vegan. O que o leva, no auge da adolescência, a mudar o seu regime alimentar?
Aconteceu de forma natural, muito por influência da adolescência: tinha um grupo de amigos, andávamos de skate, íamos a muitos concertos de punk, de hardcore, muitos eram vegetarianos e vegan. Comecei por ler muita informação, um bocado reacionária na altura. E o que lia começou a fazer muito sentido. Comecei, como adolescente, mais radical, a dizer ‘isto está tudo errado, isto é super perverso, está tudo ao contrário. Portanto, a única maneira de ir contra isto é mudar radicalmente a minha dieta’. E mudei, não só para vegan, mas para vegan macrobiótico. Depois, como sou uma pessoa obstinada e interessada, comecei a escrever para algumas associações: a PETA, que na altura era muito mais ativa, não era tão grande e não estava tão exposta; a The Vegan Society, um coletivo inglês do qual me fiz sócio logo na altura. Comecei a comprar livros de cozinha e foi basicamente assim que comecei a cozinhar.
Ser vegan na altura não era tão fácil como hoje. Nem havia tanta informação. Como é que os seus pais aceitaram?
Cheguei a casa e avisei os meus pais: ‘A partir de amanhã sou vegan‘. A primeira e única coisa que a minha mãe fez foi compreender que tipo de dieta era aquela. Na altura não era tão comum e não havia a informação que há hoje, muito menos em Portugal. Por isso, queria perceber se era nutricionalmente equilibrada. Depois, disse-me: ‘OK. Mas agora vais ter de começar a cozinhar’. De resto, foi sempre impecável. Comprava-me sempre tudo, numa altura em que um litro de leite de soja custava 5€. A conta final era bem mais pesada do que quando comparada à dos meus cinco irmãos. E, pronto, também tive de começar a procurar soluções, porque a mudança foi radical. Tive de começar a pesquisar formas para compensar a falta de produtos de origem animal. E, entretanto, dei o passo para a cozinha.
Como é que do punk e do skate salta para o yoga?
Sempre dei alguma atenção ao espírito. Não sou religioso, nunca me senti religioso e nunca segui nenhuma religião. Nunca me senti católico, nem próximo daquela que é a nossa herança tradicional. Mas, pronto, andava em escolas católicas e, por volta dos 15/16 anos, comecei a fazer umas perguntas, às quais ninguém me quis responder. Mandavam-me não pensar nisso. E comecei, sozinho, à procura de respostas. Queria encontrar formas de me virar para dentro. Por isso, comecei a pesquisar e a aprofundar conhecimentos. Foi assim que me apareceu o budismo, que é a filosofia com que tenho mais empatia, quer nos ensinamentos, como na prática e na forma de estar e de ver a vida. A partir daí comecei a fazer cursos de introdução à meditação. Apesar do veganismo ter surgido com a consciência da indústria da alimentação e dos direitos dos animais, rapidamente comecei a olhar para a melhor dieta, para a forma como poderia comer. É por ai que entra a macrobiótica e o yoga, na vertente mais física e até espiritual.
Mantém o yoga?
Recomecei agora há pouco tempo. Tive alguns anos sem fazer porque as cozinhas são muito duras. Fiz um compromisso comigo próprio e este ano em que me prometi que ia arranjar tempo para esta prática. E comecei o yoga há 5 meses. E a ideia é continuar.
É uma pessoa de tradições?
Sou uma pessoa de hábitos, cada vez mais. Gosto de algumas rotinas e a cozinha tem muitas. Temos de encará-las como uma realidade que nos pode dar gozo ou não. Costumo dizer que, por exemplo, descascar duas sacas de cebolas ou picar a salsa, são uma espécie de momento zen. Estamos sempre a fazer o mesmo movimento e sempre a aplicar a mesma técnica. Estamos focados no presente. E cozinhar é isso mesmo: é a magia do momento. Por outro lado, o cansaço, o desgaste, comprometem o trabalho. Digo aos meus cozinheiros, ‘Vocês não são máquinas de mis en place – isto não é para produzir e produzir.” Acho mesmo importante valorizar a rotina e a repetição. Especialmente aqui no Pesca, onde vamos ter cartas mais sazonais, onde muitos dos pratos se mantém durante algum tempo, apesar de poder haver algumas alterações. O cozinheiro tem de ter o gosto da pela rotina diária, por fazer sempre melhor.
Qual é a maior virtude de trabalhar numa cozinha?
Uma das grandes dádivas desta profissão é a de estarmos a trabalhar com a Natureza. Devemos valorizar isso ao máximo. É uma condição que implica o respeito total pela maneira como manuseamos, como cozinhamos, como recebemos as coisas. Implica alguma reflexão até. Quando recebemos, por exemplo, um peixe – e sem querer parecer demasiado esotérico – devemos pensar que ele morreu para nós. Quando nos chega às mãos, não o podemos encarar como se fossem parafusos ou guardanapos. Temos de parar e observar bem: ver se está fresco, perceber a temperatura, pensar na maneira de cortar o filete, o que fazemos com a cabeça, com as espinhas, com as vísceras. Não podemos desperdiçar só porque sim, só porque queremos o filete mais bonito, mais alto e que fica melhor. Temos de desmistificar tudo isto.
É difícil criar um restaurante sustentável?
É. É um caminho. É um desafio grande. É uma descoberta diária. Quem são as pessoas, que ingredientes faz sentido usar. Trabalhar com as estações do ano. Ter a cozinha mais sazonal, mais local e o mais sustentável possível. O facto do restaurante estar só virado para o peixe e de podermos trabalhar só numa frente – só com o mar – dá-me liberdade para trabalhar uma carta em que posso, realmente, dar muito mais atenção a todos os aspetos. E, depois, fazer uma boa gestão do desperdício. Tentamos aproveitar o máximo de cada alimento. E essa é uma abordagem, uma maneira de cozinhar, que também veio muito de algumas tradições de alta gastronomia, do Guia Michelin. Não todas…
Como por exemplo?
O René Redzepi, do Noma, considerado dos melhores restaurantes do mundo, foi um dos grandes impulsionadores da cozinha nórdica. Eles vão muito para a floresta, apanhar os frutos silvestres, ervas, algas, aproveitam tudo, fazem muita conserva, muitos pickles, muitos presuntos, muitas curas, que é para preservar. Parece que está tudo a andar para trás. Parece que nos estamos a virar para os hábitos mais antigos, porque o que estava completamente instituído em imensos países, alguns deles sem grandes cultura gastronómica, era uma tradição gastronómica muito americanizada, muito descartável.
Qual é o ponto de partida para seguir o caminho da sustentabilidade?
A escolha dos fornecedores é muito importante e é onde tudo começa. São parceiros e são pessoas com quem estabelecemos relações de confiança. Queremos que eles próprios também vão à procura da melhor qualidade e produtos. Uma das nossas prioridades é ter cuidado com quem escolhemos trabalhar. Fazemos questão de trabalhar com empresas sérias, porque esta indústria pode ser um pouco perversa. É uma indústria difícil, por várias razões. E tudo começa, precisamente, na fonte, que é o produtor, o criador, o agricultor. Esses têm logo várias decisões que influenciam o caráter daquilo que têm para oferecer. Se estão muito agarrados ao preço e querem volume, já sabemos qual é o caminho. Se estão agarrados à qualidade e ao detalhe vão por outro, ainda que, também tenham muitas opções e decisões para tomar, umas mais interessantes do que outras.
A sociedade começa, finalmente, a abrir os olhos e a perceber o que está a acontecer ao Planeta…
O tema da sustentabilidade não pode ser uma moda, uma tendência, um chavão. Essa é uma das coisas a que não quero estar associado. Não quero que pensem que estou a abrir um restaurante de peixe porque a sustentabilidade está na moda. É de facto urgente – o mundo inteiro, a toda a hora – agir. Já se andam a dizer muitas coisas há muitos anos, mas só agora é que as grandes instituições, o mundo mais corporate, os grandalhões, os tubarões estão a consciencializar-se para o problema e para a realidade urgente do que é a sustentabilidade. O compromisso da sustentabilidade é a continuação do que tem sido o meu caminho nestes anos. Desde os 17 anos que se deu um clique na minha cabeça e soube que alguma coisa não estava a bater certo. Depois, comecei a trabalhar em restauração, a crescer e a perceber onde é que podia fazer a diferença, a pensar naquilo que tinha nas minhas mãos. E pensei que era aqui que ia fazer a diferença.
Conselhos práticos para as pessoas poderem mudar os seus hábitos do dia a dia?
Uma das coisas que já está assumida globalmente, é que todos temos de começar a consumir menos carne, quer sejam as vermelhas ou peixe. Temos de reduzir. Não podemos comer 5 ou 6 dias por semana bifes ou peixe. O Planeta não aguenta. Estamos num continente desenvolvido, temos acesso a muita informação, temos poder de compra, podemos mudar as nossas escolhas, fazer alterações. Devemos fazer também por comer local. Ter uma dieta variada, focada nos vegetais e nas frutas. E, depois, por decisão de cada pessoa, que pode comer carne ou peixe, valorizar muito as tradições. Não desperdiçar comida. Ter mais ligação com a terra. As pessoas na cidade, com o estilo de vida que têm, não ligam à origem das coisas. Não sabem de onde é que vêm. Temos de valorizar os ingredientes. Compreender de onde e como é que eles surgem.
Já conhecia o chef Diogo Noronha? Pense no bem do Planeta e faça tudo para o estimar.